O cobrador de impostos de Jericó,
a teoria social da ação
e o direito achado na rua

Em julho de 2003, sancionou-se a lei n° 10.695, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal. Esse artigo trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a pirataria. As penas para a pirataria variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão. Como se vê, pirataria dá cadeia, malgrado muitos dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, e até alguns que vivem acima dela, façam desse ilícito uma profissão. Ora, mas quem quereria viver com um salário de R$ 0,44 (quarenta e quatro centavos) por dia? Quarenta e quatro centavos são capazes de oferecer condições justas e favoráveis de trabalho? Quarenta e quatro centavos garantem direitos sociais, como saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos? Por coisas como essas, foi que, em 1987, um ano antes da promulgação da CF de 88, intelectuais da UNB fundaram o chamado “direito achado na rua”. Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do núcleo de estudos para a paz, essa corrente teve como grande scholar o prof. Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse de uma análise da prática social, fincada no empirismo e na disputa aberta pela vitória da justiça sobre a lei. Por conseguinte, Lyra Filho consubstanciava seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos e, antes de mais nada, não-conformistas.Numa palavra, o direito achado na rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno jurídico”.


Essa dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a bíblia (Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, Cristo hospedou-se na residência de Zaqueu, talvez um dos mais contumazes cobradores de impostos de Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o direito das suas vítimas. Em verdade, o fisco federal não extorque e tampouco acusa os cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a teoria social da ação, oriunda do gênio de Jeschech e Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí, perguntar: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando, assim, sobreviver com dignidade, como quer a declaração universal dos direitos do homem? É correto exigir conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então ministro do STJ, ao relatar o recurso especial nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica. E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”. Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de pobreza, vende um CD ou DVD pirata?
Por conta disso, é que se trata o fisco como leão. Sucede que a mesma bíblia, que apresenta um Cristo que come com cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz, assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não terem sido achadas na rua, são más. Os auditores federais, porém, embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco, também tirado da bíblia: “não fiques justo demais. Por que causar a ti mesmo a desolação?” (Eclesiastes 7,16). É suficiente a desolação de quem ganha menos do que R$ 0,44 por dia.
* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 13 e 14 de janeiro de 2008, Caderno B. página 8.