Antônio Carlos Biscaia, o fim de prescrição
retroativa e o sétimo selo de Ingmar Bergman

O Sétimo Selo, filme do final da década de 1950, projeta uma imagem irresistível. Só há uma maneira de lidar com a morte: aceitá-la. Afinal de contas, ninguém é highlander. Bergman, esse extraordinário cineasta sueco, comprova isso através do seguinte ponto-de-vista: quem se preocupa demasiadamente em confrontar a morte, no mais das vezes morre primeiro. Por outro lado, quem não dá a mínima para ela, termina por não integrar as primícias de seu catálogo de convidados. Um dia, vai. Mas não vai logo.
Max Von Sydow gosta de bater naquilo que é paranormal. Também interpretou o padre que, em O Exorcista, digladiava com o diabo para expulsá-lo do corpo de uma garota. Mais uma vez, perdeu. E morreu. Não tivesse comprado a briga, ainda estaria celebrando missas. O Brasil também tem o seu Max Von Sydow: o deputado federal Antônio Carlos Biscaia, o homem que quer matar a morte. Não a morte, como ordinariamente vislumbrada, mas a prescrição, que, metaforicamente, aponta para a morte do direito de punir.
Biscaia não produziu um filme. Redigiu um Projeto de Lei, o de nº 1.383/2003. Com essa “obra-prima”, ele pretende dar fim à prescrição retroativa, uma criação do gênio brasileiro, instituto pouco conhecido no Direito alienígena. Mas o que vem a ser prescrição retroativa? Fácil. Para tanto, é interessante mergulhar no art. 4º do Código Penal. Tal dispositivo reza que o tempo do crime é o da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.
Assim, se A esfaqueia B no dia 1º de janeiro, mas este só falece no dia 20 de fevereiro, considera-se que o homicídio foi praticado naquela data (momento da ação), e não nesta (momento do resultado). Daí, uma indagação: a partir de que instante o Estado passa a deter o direito de punir? Ora, desde quando o crime é perpetrado. Sucede que esse direito de punir também morre. Com efeito, o legislador até que tentou jogar xadrez com a morte do crime, criando as causas interruptivas da prescrição. A primeira delas é o recebimento da denúncia.
Desse modo, quando A esfaqueia B, considerando que B veio a óbito, o Estado, nos termos do art. 109 do Código Penal, terá vinte anos para punir A. Mas o processo carrega seus trâmites. Haverá um inquérito policial, presidido por um Delegado de Polícia de Carreira. Após, uma denúncia, peça através da qual o Promotor pede ao Estado que aplique uma pena, por intermédio da qual A será castigado. Conseqüentemente, quando o juiz apõe seu recebido no rosto da denúncia, está interrompida a prescrição, ou seja, aqueles vinte anos começam a correr novamente. Do zero.

Tal perspectiva foi produto de construção jurisprudencial, encontrando-se emoldurada na Súmula 146 do STF, com o adendo que ela só se aplica ali onde não houver recurso da acusação, já que, nessa hipótese, não existe a possibilidade de a sanção ser majorada. Com base nisso, foi que a reforma penal de 1984 cunhou os §§ 1º e 2º do art. 110 do CP. No último, ficou patenteado que a prescrição poderia ter como marco inicial momento anterior ao do recebimento da denúncia. Isso é lógica pura. Remetendo o leitor para linhas anteriores: a partir de que instante o Estado passa a ter o direito de punir? Ora, a partir da prática do crime. Logo, é a partir daí, também, que o prazo para punir começará a correr.
Um exemplo: imagine-se que A furtou um livro em uma biblioteca no dia 15 de março de 2000. Acontece que, oferecida a denúncia, esta só foi recebida pelo juiz em 20 de agosto de 2002. Ao prolatar a sentença, o magistrado condenou A na pena mínima, vale dizer, um ano. Nesse diapasão, a punibilidade já tinha morrido. A prescrição retroativa a matou. Retroativa porque ela “retroage” a momento anterior ao recebimento da denúncia. Nada mais óbvio. Se o Estado foi uma anta para atuar, paciência! Ninguém pode ficar a vida inteira à espera da morte. A prescrição, por conseguinte, objetiva repreender o Estado desidioso, inoperante e lerdo.
Biscaia, contudo, quer pôr um fim nessa plástica arquitetura aristotélica. Biscaia joga xadrez com a morte. E parece que, dessa vez, a morte vai perder. Mas, perdendo a morte, perde toda a sociedade. Que o diga Saramago, no romance As Intermitências da Morte, onde esta resolve fazer greve e lança o caos entre os homens que, envelhecidos, doentes e agonizantes, imploram para morrer, mesmo porque morrer é necessário. Mas Biscaia, na sua ânsia demagógica de vestir a fantasia de imortal no direito de punir, quer garantir a um Estado preguiçoso a temeridade do eterno. E o Estado, que já é um colosso diante do cidadão, vai assumir a feição de titã.
Resta saber qual será a próxima jogada de Biscaia, no tabuleiro de xadrez. Queira Deus que não seja a mudança da redação do art. 4º do CP. Aquele que trata do tempo do crime. De repente, e isso não é improvável, Biscaia, cinéfilo que é, inspirado em Spielberg, quererá implantar um como que de minority report, abrindo a sucursal do pré-crime. Quando isso se der, não haverá mais prescrição. E o cidadão vai ser punido não pelo que já fez, mas pelo que iria fazer. Xeque-mate! Nesse dia, vigorarão as sábias palavras de Saramago: “não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem”. E esse homem, hoje, tem nome: Biscaia.
• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 18 e 19 de novembro de 2007, Caderno A, página 11.
• Publicado, no site jornalístico nenoticias.com.br a partir do dia 19 de novembro de 2008.
• Publicado, no site jornalístico nenoticias.com.br a partir do dia 19 de novembro de 2008.
ADOREI A COMPARAÇÃO. FICA AINDA MAIS ENGRAÇADA AGORA, POIS O PROJETO DO ANTONIO BISCAIA, QUE VIROU A L. Nº 12.234/10, NÃO ACABOU COM A PRESCRIÇÃO RETROATIVA, COMO EXPRESSADO ANO SEU ART. 1º. APENAS LIMITOU SUA INCIDÊNCIA NA METADE. DEMONSTRANDO UMA IDÉIA MIRABOLANTE QUE TRAMITOU LIVREMENTE, REFLETINDO A IGNORÂNCIA DE NOSSOS PARLAMENTARES EM CONSENTIREM NESSE RETROCESSO LEGAL. UM ABRAÇO! OCEANIRA MIRANDA/PA
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