Artigo Pessoal
Venta-Romba,
o julgamento das prostitutas
e o governo da meritocracia
Clóvis Barbosa
![]() |
Graciliano Ramos |
Mas existiam casos irrelevantes. Venta-Romba protagonizou um deles. Venta-Romba era pedinte. Toda sexta-feira, ele ia, de casa em casa, humilhar-se em busca de alguns centavos. Conta Graciliano que, em dada oportunidade, Venta-Romba chamou à porta de sua casa, mas não foi ouvido. Assim, entrou. Entrou sem obter a necessária licença. Isso enfureceu a mãe do escritor. Mulher rude e inflexível, determinou ao moleque José que fosse avisar o marido, juiz da cidade, acerca do ilícito praticado pelo mendigo. Não deu outra. Vieram o juiz e um gendarme. Apesar de não letrado, o pai de Graciliano de pronto percebeu tratar-se de um exagero da esposa. Normalmente, esposas de autoridades concebem-se como autoridades maiores do que os próprios maridos. Ainda assim, e diante da mobilização, que desviara a atenção dos populares, o juiz não podia desmoralizar-se: um dia de cadeia para Venta-Romba.
![]() |
Salomão |
Trata-se do julgamento das duas prostitutas. A narrativa, concluída no séc. VI a.C., nasceu pelas mãos do profeta Jeremias, escritor do primeiro livro dos reis. Os fatos propriamente ditos, no entanto, deram-se ali uns mil anos antes da era comum. Jeremias discorre sobre o seguinte acontecimento: duas prostitutas moravam juntas. Grávidas, ambas tiveram seus bebês dentro de um interregno de três dias. Sucede que, uma delas, tomada por um sono profundo, deitou-se sobre o filho, asfixiando-o e matando-o. Percebendo o que tinha feito, sorrateiramente trocou o seu filho, morto, pelo da outra, que dormia ao lado da mãe. Esta, ao amanhecer, constatou a troca e levou o problema a Salomão. Todavia, a primeira jurava que o bebê vivo era seu. Ante o impasse, Salomão determinou que um soldado viesse e dividisse a criança no meio, após o que daria metade para cada uma das partes. Resolver-se-ia o impasse.
Nesse ínterim, porém, a mãe verdadeira gritou: “Não! Não matem a criança! Dêem-na para a outra mulher”. A adversária, no entanto, redargüiu: “De forma alguma. Dividam a criança no meio”. Ainda bem que o juiz não era o pai de Graciliano Ramos, um medíocre. É que os medíocres, malgrado aquilatem as asneiras que fazem, normalmente não voltam atrás, por questão de arrogância ou vaidade. Mantêm o erro para não demonstrar fraqueza. Salomão, não. O mérito que o fez chegar ao trono jamais lhe permitiria deixar de enxergar que a verdadeira mãe preferiria perder seu filho a vê-lo morto. Por conseguinte, Salomão ordenou que o neném fosse entregue àquela mulher que pediu para que ele não fosse dividido em dois. E o povo descobriu o quão tranqüilizador é ser governado por um rei sábio, que chegou onde chegou, não de forma biônica, mas legítima, meritória.
![]() |
A Inglaterra mudou o método educacional com a meritocracia. Nos EUA, Randall Collins, professor de Sociologia na Pensilvânia, cunhou o vocábulo “credencialismo” para designar a situação de quem estaria credenciado para desempenhar cargos, enfatizando mais a capacitação do indivíduo do que suas origens aristocráticas ou tradicionais. Por aqui, entretanto, há quem ache que vetustos chefes biônicos teriam méritos para retornar ao poder, embora tenham recebido julgamentos nada meritórios nas urnas, instrumentos de coroação no regime popular que dão o contorno de uma república. É essa alcatéia que aplaude juízes como o pai de Graciliano e que vibra com a prisão de um Venta-Romba. Como preconizou Mel Brooks, seria bom se essas pessoas atentassem para o fato de que, numa nação que não abraça a meritocracia, “o que os governantes não fazem com suas esposas, acabam fazendo com o país”.
(*) - Publicado no Jornal da Cidade, edição de 04.05.2008, e no site nenoticias.com.br.
![]() | |
Mel Brooks |
Nenhum comentário:
Postar um comentário