Artigo Pessoal
Um Cão Andaluz
Clóvis Barbosa
Um Cão Andaluz foi o filme de estréia de Luis Buñuel, que contou com a colaboração do artista Salvador Dali. Lançado em 1928, é um dos marcos da cinematografia mundial, cuja imagem que ainda hoje é lembrada como impactante e pavorosa é o de uma navalha cortando um globo ocular. Lembrei-me desse filme no dia de ontem ao ler a “autobiografia” de Alice B. Toklas, escrita por Gertrude Stein, o grande amor de sua vida. É que Gertrude foi viver em Paris nos anos de 1920 e coube a ela a invenção da expressão “geração perdida”, aplicada aos artistas que viveram naquela década na capital francesa. Confesso que sou emotivo. Quando visitei recentemente Paris, chorei ao divisar a casa de número 27 da Rue de Fleurus, no complexo Montparnasse. Era uma noite muita fria e poucas pessoas andavam no local. Eu estava sozinho a imaginar Picasso (dizem que foi uma descoberta de Stein), Ernest Hemingway, Matisse, Scott Fitzgerald, Jean Cocteau, Apollinaire e tantos outros entrando naquela casa. Entrei num pequeno bar e pedi um conhaque. Tomei de uma só golada e fui embora, deixando a casa para trás. Eu tinha andado muito. Praticamente caminhei de Alesia até o final de linha onde tinha uma estação de trem ou terminal de ônibus. Depois voltei para Alesia e fui caminhando por toda a Avenue Maine. No retorno, pela mesma avenida, um turbilhão de imagens passou pela minha cabeça. A minha infância pobre no pobre Bairro da Liberdade, em Salvador de Bahia, andando em ruas e trechos com nomes curiosos, como Ladeira de Pedra, Curuzu, Largo da Central, Baixo da Gengibirra, Ladeira do Inferno, Largo do Tanque, Fim de Linha da Liberdade, etc.
F. Scott Fitzgerald |
Lembrava-me daquele menino raquítico, que era chamado de amarelo empapuçado, com 13 anos e já trabalhando para ajudar a família de dez irmãos na época; estudava pela tarde e trabalhava pela manhã numa loja na Baixa do Sapateiro; aos sábados à tarde ganhava uns trocados vendendo gibis na porta do cinema Santo Antônio e aos domingos passava cera em sete escritórios no Ed. Rui Barbosa; a minha alegria quando passei no exame de admissão do Instituto Normal Isaias Alves; minhas noites no Instituto Goeth, Teatro Vila Velha, Cine Rio Vermelho, Concha Acústica do Teatro Castro Alves, programas de auditório na Rádio Sociedade da Bahia e Rádio Excelsior, no Clube de Cinema da Bahia, carnaval no Clube Palmeiras da Barra Avenida; tentativas, muitas vezes frustradas, de furar o bloqueio do Fantoches, Iate Clube e Clube Espanhol nos bailes de carnaval; e Aracaju quando aqui cheguei com as suas marinetes e kombis fazendo o transporte coletivo; os meus primeiros amigos, a Jovreu, Editora Jovens Reunidos, o Clube de Cinema de Sergipe, a Faculdade de Direito, a advocacia, a Universidade Federal de Sergipe, a Prefeitura de Aracaju, o Governo do Estado, lugares onde deixei a minha energia pela inteireza da minha dedicação; o saudoso Cacique chá; o cachorro quente de Seu João, vizinho à Catedral; a moqueca de camarão do Bairro Soledade; o churrasco de Carioca na Rua Porto Alegre com Pernambuco, onde cada pedaço de carne ou de osso era disputado com os olhares tristes dos cães que rodeavam a pequena churrasqueira; a sopa mão de vaca de Luis Ponta de Ouro, no Bairro Santo Antônio.

Franz Kafka |
Florbela Espanca |
E continuava enfático defendendo o talento de Ezequiel. Não fui feliz na minha abordagem. Não tinha com quem discutir. Peguei uns quinze artigos de Ezequiel e guardei. Na próxima viagem ao Rio vou levá-los para discutir com meu amigo professor de teoria literária. E o pior é que estou com saudade do seu texto, principalmente dos seus gostosos contos, cheios de mágoas pelos amores perdidos ou impossíveis que faz-nos lembrar a poesia de Florbela Espanca: “Eu sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou a Irmã do Sonho, e desta sorte sou a crucificada, a dolorida (...). Sou aquela que passa e ninguém vê, sou a que chamam triste sem o ser, sou a que chora sem saber porquê. Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou”. Jean Vigo, cineasta francês e de curta carreira, ao se reportar sobre a imagem contida no filme de Buñuel, afirmou que “essa imagem é mais pavorosa do que o espetáculo de uma nuvem tapando uma lua cheia”. Um Cão Andaluz, também é retocado por uma coleção de imagens sem qualquer conexão, impactantes e contraditórias. O que dizer de um cavalo morto em um piano? o que falar de formigas saindo da mão de alguém? Bem, a verdade é que este filme é considerado revolucionário na história do cinema, pois rompe com toda a lógica e linearidade narrativa existente nos filmes daquela época, sendo uma combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Tento, aqui, hoje, fazer uma viagem ao surrealismo. Mas, o da imagem real combinada com as recordações.
Espetacular e tao atual seu comentario sobre os anos 1920, a epoca do surrealismo e todos os artistas considerados "loucos" de entao. Este tema tao em pauta que recentemente foi enfocado no novo filme de Woody Allen, "Midnight in Paris". Como de costume, Allen aborda a questao sempre presente do saudosismo que ha em todas as geracoes e que acompanha o ser humano desde os primordios. A velha frase: "bons tempos aqueles!", ou "nos eramos felizes e nao sabiamos". Esta é uma questao filosofica e humana, parte de nos sempre remonta ao passado e tem dificuldade de avaliar o presente como possivel "época aura". Talvez as futuras geracoes, quando olharem para traz, possam ver nosso inicio de milenio como espetacular ou fantastico. Agora, enquanto o vivemos, temos um dos olhos cortados com uma navalha...
ResponderExcluirLourdes Torgersen
Sobre o mesmo tema, leia, neste blog, artigo de minha autoria, "Banho de Civilização", postado em 17 de fevereiro de 2011. O roteiro de Woody Allen para "Meia-Noite em Paris" é mera coincidência com o livro que pretendo lançar sobre o assunto.
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