domingo, 29 de setembro de 2019

Morte e Poesia

Opinião
Morte e Poesia
Clóvis Barbosa
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A morte de Cleomar Brandi, no dia 17 de julho de 2011, um dos melhores textos do jornalismo sergipano, comoveu a tudo e a todos, não somente pela figura cheia de vida que era, mas, também, pelo inusitado velório realizado na Colina da Saudade. Ao ser sepultado, no dia seguinte, uma chuva repentina misturada com um sol ardente transformou-se num arco-íris encantador, como que quisesse a natureza também prestar a sua homenagem. Andei um tempo com Cleomar pelos quiosques 39, de Eliseu, e 40 da antiga orla da Atalaia, ladeado por Eugênio Nascimento, jornalista, o José Eduardo Souza, médico, Arlinda, então musa de Cleomar, Lula Andrade, cinegrafista, Américo, um dos melhores técnicos em rádio e TV, e sua Dinha, além de outros companheiros. Estava vivendo um momento tenso de minha vida. Como presidente da OAB-SE e advogado militante, criei confusão com alguns criminosos do aparelho policial do Estado, com comerciantes e com o status político da época. Trabalhava pelo dia e à noite tentava descobrir a autoria das diversas ameaças sofridas, culminada por um tiro de escopeta desferido contra a janela de minha residência. Nessas andanças noturnas, encontrava-me com Cleomar e amigos para beber e trocar ideias sobre o cotidiano. Ali, aprendi “que era melhor morrer de vodca do que de tédio”, como diria Maiakovski. Depois, os afazeres profissionais me afastaram e só esporadicamente os encontrava nos bares da vida e de Aracaju. Mas Cleomar, antes de partir, deixou uma carta sob o título “A última saideira”, na qual ele se despedia da vida, da sua velha “bahêeêa”, da sua Aracaju e dos seus amigos. Ao final, sentenciou poetizando: “Um dia, o velho barril de carvalho pinga sua última gota de conhaque. E o poeta se despede de tudo sem tristezas nem vexames”, mas “Apenas sabendo que cumpriu seu papel com dignidade, com honestidade e com um brilho de criança nos olhos. Quem sabe, eu encontre o amarelo dos girassóis nesse novo caminho?”. Abaixo, um post-scriptum: “os amigos estão convidados para a última saideira no Bar do Camilo, assim que terminar o sepultamento. Já está pago”. E o Bar do Camilo recebeu os amigos de Cleomar Brandi após o sepultamento, oportunidade em que todos tomaram, naquele dia, ao som de boa música, a última saideira com o “guerreiro”.
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Essa criatividade de Cleomar me faz lembrar outros casos pitorescos ocorridos com o segundo evento mais importante do homem: a morte. Os sumérios, por exemplo, não davam muita importância à vida após a morte. A rainha Shudi-Ad, rainha de Ur, que viveu no ano 2.500 antes de Cristo, preparou antecipadamente o seu próprio funeral, marchando para o seu túmulo com sessenta e quatro criadas, uma carruagem de madeira contendo ornamentos em ouro e prata, puxada por dois bois, quatro mulheres harpistas e seis soldados. Cada um dos membros da festa-funeral recebia uma bebida numa pequena taça, inclusive a rainha que estava à época com quarenta anos de idade. Todos os corpos, ou esqueletos, foram encontrados em sereno repouso, sem um diadema ou adorno sequer fora do lugar. Arqueólogos identificaram na Suméria vários casos de enterros em massa precedidos por supostas festas. A paixão também tem sido lembrada no momento do velório, como na música do genial Noel Rosa, “Fita amarela”, onde ele diz: Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela. Se existe alma, se há outra encarnação, eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão. Não quero flores, nem coroa com espinho, só quero choro de flauta, violão e cavaquinho. Estou contente, consolado por saber, que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer. Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém, eu vivi devendo a todos, mas não paguei a ninguém. Meus inimigos que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim. Em Porto Rico, David Morales Colón, de 22 anos, foi velado em cima de sua moto, uma Honda Repsol, em posição de largada. Também em Porto Rico, Angel Pantoja Medina, de 24 anos, exigiu, antes de morrer, que se usasse um tipo especial de embalsamento para manter o seu corpo em pé por três dias durante o velório na casa de sua mãe, usando um boné do New York Yankees e óculos escuros. Já Jack Benny, um dos principais artistas norte-americanos do século XX, era casado com Sayde Marks há quarenta e oito anos. Segundo uma fonte, ela era amarga e muito exigente. E ele, por sua vez, era bastante mulherengo. Após o funeral de Benny, um florista passou a entregar uma única rosa vermelha a Sayde, dia após dia. Aborrecida, após algum tempo, exigiu do florista que lhe dissesse quem estava mandando as flores.


É que Benny cuidou para que a esposa recebesse uma rosa todos os dias pelo resto de sua vida. Ela ainda viveu nove anos. Malba Tahan, heterônimo do professor Júlio César de Mello e Souza, autor da festejada obra “O homem que calculava” - que narra as peripécias do calculista persa Beremiz Samir na Bagdá do século XIII, cujo problema do pagamento dos oito pães com oito moedas já foi objeto de artigo de minha autoria neste jornal - achava horrível a literatura funerária que cunhava em coroas de flores expressões tipo homenagem eterna, recordação sincera, o último adeus. Antes de morrer, aos 79 anos, após ministrar uma palestra em Recife, deixou uma carta para a família a instruindo como deveria ocorrer o seu velório. Rejeitava qualquer tipo de coroa ou flores com esse tipo de mensagem. E se alguém insistisse, a coroa deveria ser devolvida com um “delicado cartão” para que o ofertante fizesse da coroa o uso que quisesse. O funeral, como exigido pelo escritor, deveria ser o mais modesto possível, com um caixão de terceira classe. Ao seu enterro, no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, compareceu grande número de pessoas, todas religiosamente comportadas e obedecendo às exigências do falecido e, se algumas flores constavam do ato, as mesmas foram ofertadas anonimamente, sem qualquer dedicatória. Também, na oportunidade, foi lida uma mensagem de Malba Tahan, onde ele renovava a sua defesa pelo fim do isolamento e do preconceito contra os doentes de hanseníase. Por fim, citava a letra da música “Silêncio de um minuto”, de Noel Rosa, como imperativo da sua ojeriza ao luto: “Roupa preta é vaidade para quem se veste a rigor. O meu luto é a saudade e a saudade não tem cor”. Mas volto a Cleomar Brandi para registrar uma bela homenagem que lhe foi prestada por Marcelo Déda, então Governador do Estado, já falecido, e que esteve presente no velório e enterro de Cleomar, comparecendo para bebericar no Bar do Camilo A última saideira. Sete dias após a morte de Cleomar, no dia 24 de julho de 2011, Déda escreveria o mais espetacular dos seus poemas, dedicado ao amigo morto. Antes de ser uma dedicatória a Cleomar, era um grito contra a morte que também lhe espreitava: “O Lobo”:
  
Nativo da noite,
Procurei abrigo
No porto da madrugada:
Despachei em navios
De madeira e linho
Os últimos medos
E engarrafei em vasos sagrados
Minha safra de lágrimas.

Com as mãos nuas
Despi as ilusões
Vestindo-me com um sorriso
Que ganhei da lua
Quando plantava
Marés cheias.

Chorei a agonia
De mil crepúsculos
E esperei feliz
As manhãs serem paridas
Para acalentá-las
Em braços de sal e ondas.

Soldado de tantos deuses,
Sepultei velhas fés
Para que a esperança
Pudesse ser amante
Do meu cotidiano.

Revoguei o futuro
Do meu cálculo
E fiz de presentes
O tempo dos meus verbos.

Zombei da dor
E doei-me
Em nacos de carnes.
Quando roubaram
Minha estrada
Corri com as asas
Que herdei de uma
Cigana de seios fartos
E juízo curto.
(aprendi a caminhar na brisa
deixando pegadas no sereno).

Fiz-me corsário
Sem naus e sem ódios.
Surpreendi amores
Em desertas ilhas
E guardei um tesouro
De carícias e afetos,
Perfumes e madeixas,
Peles de ébano,
Pernas de alabastro,
Lábios de veludo,
Línguas vorazes...
Descartei a ira de Aquiles
E a astúcias de Odisseus:
Quando ouvi o canto das sereias
Soltei-me do mastro
E brinquei com a morte.

Vendo-me assim,
Ainda pensas que sou metade?
Pois, saibas,
Nunca ninguém foi tão inteiro:
Levantei acampamento
Em remotos bares
E lá hasteei meu estandarte
De sangue e perdões.
Fiz dos amigos
Meu invencível exército
E da fé no homem
Meu derradeiro credo.

Compartilhei o maná
Dos sonhos
E pus a letra
Numa canção de exílio
Desafiei da lei
Todos os interditos:
Imprimi na alma
Uma crônica alegre
Para que assim
Os cegos a lessem.

Certa madrugada
De breu intenso
Matei a covardia:
Ateei fogo em minhas barbas
E vivi a alegria sagrada
De Lavrar a luz
Num campo soturno de trevas.

Agora devo sangrar a alvorada;
Pisar sem medo a praia derradeira
Lanço meu uivo numa gargalhada,
Sorvo, tranquilo, a última saideira.



Post Scriptum
Quarta-Feira de Cinzas
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Gosto de brincar com os amigos. Tornei-me especialista em xeretar o conhecimento científico alheio. Coisa lúdica. Certa vez perguntei ao amigo Luiz Eduardo Oliva o que era felicidade. Ele me respondeu com esta bela crônica à qual deu o título de “Quarta-Feira de Cinzas”: Na quarta-feira de cinzas cai o pano. A vida volta à realidade. Os bacantes recolhidos salivam o sabor azedo da ressaca. Há ainda uma confusão na mente, ressoa o eco dos dias da tríade momesca. Vem a velha canção carnaval desengano, deixei a dor em casa me esperando e brinquei e gritei e fui vestido de rei, quarta-feira sempre desce o pano! Ah, a felicidade... e afinal, o que é a felicidade? Indagava-me ontem o velho Clóvis ao brindar um Pinot Noir numa cantina ítalo-sergipana nada momesca. Eis a pergunta para nenhuma resposta convincente. A única que me ocorre é que a felicidade é a festa do coração, dura enquanto durar a festa. Lembrei-lhe o grande J.Inácio, o mágico pintor do amarelo, da luz do sol e das bananeiras nas terras Del Rey que um dia, exaltando o pintor de paredes no seu ofício numa manhã nos anos oitenta dum festival de arte de São Cristóvão, disse-me: - Não sei porque os homens fazem festas. Para mim a festa é o sol que invade meu quarto trazendo todas as cores quando acordo e me diz: homem, vai pintar... Então lembrei a canção de Haroldo Barbosa e Luiz Reis ... eu abri a janela e esse sol entrou... de repente, em minha vida já tão fria e sem desejos... estes festejos, esta emoção... luminosa manhã... porque tanta luz, tanto azul... é demais pro meu coração... Vejo o quadro "Quarta-feira de cinzas", obra do pintor alemão Carl Spitzweg, e observo quanta verdade há nele para retratar o fim do carnaval... Um pierrot e sua realidade: finda a festa, de volta à prisão da vida, uma tosca moringa d'água e um exuberante raio do sol da esperança a atravessar as grades da prisão da vida... carnaval desengano... Volto à pergunta do velho Clóvis: E a felicidade...? Uma luminosa manhã...

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de fim de semana, de 20 a 22 de agosto de 2016, sábado à segunda-feira, Caderno A-7.
- Postado no Blog “Primeira Mão”, em 21 de agosto de 2016, às 09:50, site:
http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=11250&t=morte-e-poesia

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