Aracaju/Se,

domingo, 6 de junho de 2021

O "O do Borogodó"

 Opinião

O “Ó do Borogodó”

Clóvis Barbosa


O Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é, talvez, um dos mais preparados juristas do país. À margem disso, é dado a decisões e depoimentos polêmicos. Quem não se recorda do habeas corpus concedido ao banqueiro Daniel Dantas, do grupo Opportunity, investigado e preso por crimes financeiros e tentativa de suborno durante a Operação Satiagraha da Polícia Federal?! Sua postura foi criticada pela opinião pública, tendo sido acusado pelo Ministério Público de ter “suprimido instâncias judiciais”. Mendes atacou na época o juiz Fausto D’Sanctis, responsável pelos decretos de prisão preventiva, e a Polícia Federal, por estarem tentando consolidar no Brasil um “estado policialesco”. Os bate-bocas com colegas da Corte têm sido usuais, principalmente aqueles considerados mais graves, como os que foram travados com Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. Quando ocupava o cargo de presidente da Casa, discutiu com o ministro Joaquim Barbosa. Durante um julgamento ambos divergiram. Irritado com Barbosa, Gilmar disse que o ministro não tem condições de dar lição a ninguém. Barbosa, por sua vez, respondeu: Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro. Vossa excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso.

Mendes não esconde e faz questão de revelar as suas preferências político-partidárias. Nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, demonstrava certa ojeriza ao governo do PT. No começo da Operação Lava Jato, quando os canhões apontavam para os governos Lula/Dilma e para a cúpula do partido, foi bastante mordaz: o que se instalou no País nesses últimos anos está sendo revelado na Operação Lava Jato. É um modelo de governança corrupta, algo que merece o nome de cleptocracia. Em 2015, foi um dos três ministros do STF a votar contra o fim do financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Chegou a afirmar na época que a medida somente beneficiaria o PT, pois, segundo ele, não precisaria mais de doações por já ter acumulado muito dinheiro ao lesar os cofres públicos. Chegou a ser irônico ao enfatizar que o partido que mais leva vantagem na captação das empresas privadas agora, como madre Tereza de Calcutá, defende o fim do financiamento privado. Diz um provérbio português que “o tempo é senhor da razão”. Resultado: os ventos da Operação Lava Jato voltaram-se para figuras políticas abençoadas pelo ministro Gilmar. Os outroras encômios ao trabalho da operação transformaram-se em críticas: os investigadores da Lava Jato precisam calçar as “sandálias da humildade” e não podem se achar o “ó do borogodó”.

Ao ler esta crítica de Gilmar e a citação, voltei aos meus doze anos. Ouvia muito a frase o “ó do borogodó”. – Fulano tem borogodó, coisa que você não tem. Não entendia muito o significado. Na década de 70, assisti a um show numa boate de Ipanema. Osvaldo Sargentelli, “O rei do ziriguidum”, estava se apresentando com as suas belas mulatas. Lá pras tantas, Sargentelli, ao elencar cada uma delas, dizia: as minhas mulatas têm borogodó! Não há uma definição acabada para o termo. Para o Dicionário Michaelis, em sua versão on-line no Uol (http://bit.ly/aslVBX), o verbete  “borogodó” é apresentado como substantivo masculino popular – atrativo físico muito peculiar. Não é somente a beleza. É um algo a mais. Alguma coisa como a forma de olhar, o esmero no tratamento, o jeito encantador de se postar diante de outro, enfim, o “ó do borogodó” é algo ou alguém com alguma coisa a mais, especial. E foi nesse sentido que Gilmar Mendes se posicionou contra os jovens integrantes do Ministério Público e da Polícia Federal que participam da Operação Lava Jato – eles não podem se achar o “ó do borogodó”. Mas acredito que essa meninada não quer ser o “ó do borogodó”. Eles estarão satisfeitos quando conseguirem mudar esse quadro assustador que ameaça, a cada dia, o tecido social brasileiro, fazendo com que a decência seja a regra de comportamento e a corrupção a exceção. Não o contrário.

Contardo Calligaris, escritor e psicanalista
A verdade é que o País passa por uma verdadeira lavagem ética e é preciso que haja perseguição aos princípios e valores que deveriam estar no DNA de todo cidadão. Contardo Calligaris, em artigo na Folha de São Paulo, edição do último dia 9/02, ao abordar o tema sobre a vulgaridade do poder, diz que o poder é vulgar de duas formas básicas, que se misturam facilmente. Há a vulgaridade do poder sem cultura e há a vulgaridade do poder sem questões e dilemas morais. Segundo Calligaris, o poder sem cultura é vulgar porque ele só se exibe. Já o poder sem preocupação moral é vulgar porque seu exercício não tem nem sequer “desculpas” e revela imediatamente o gozo de quem o detém. Ou seja, o poderoso sem preocupação moral governa só para gozar de seu próprio poder. Não é por acaso que certos representantes dos poderes constituídos, flagrados na prática de comportamentos criminosos, reagem quase sempre com violência, em linguagem ralé ou grosseira, num tom ameaçador que lembra os tempos dos coronéis da casa-grande vociferando para a senzala. É salutar à ordem pública o conhecimento amplo das acusações baseadas em provas envolvendo funcionários ou agentes do Poder Público. Elas são de interesse geral. O agente público sempre está colocado numa vitrina sujeita a inspeção e controle da sociedade.

 

Montesquieu, o grande artífice da tripartição dos poderes, dizia que a corrupção de uma administração começa quase sempre com a corrupção dos seus princípios. Tal reflexão deveria ser assimilada pelos que não compreendem o real papel do Estado. O Estado não “é” deles. Tampouco é “para” eles. É para todos. A visão patrimonialista de Estado, onde não há distinção entre os limites do público e do privado, precisa ser erradicada da nossa democracia. Como diz o ministro Ayres Britto, ex-presidente do STF, “o patrimonialismo é o ovo da serpente de toda corrupção enquadrilhada”. Posso me enganar, mas o Brasil precisa dar um salto de qualidade, saindo da barbárie em busca da civilização. Para tanto, concordo plenamente com Britto, ao receber na semana passada o prêmio FGV de Direitos Humanos, concedido pelas escolas de Direito da Fundação Getúlio Vargas: o Brasil deu um tranco na cultura da impunidade de pessoas postadas nos andares de cima da sociedade, e a Lava Jato se constitui numa espécie de patrimônio da coletividade brasileira no sentido de responsabilizar quem comprovadamente tem culpa no cartório. A sociedade precisa abrir os olhos. Dirigir a sua curiosidade para a transformação verdadeira do País. Uma sociedade sem ódios, mas solidária e justa para todos. Punir severamente os desvios de conduta é o início da transformação. Por que não? Seremos o “ó do borogodó”!

 

 

 

POST-SCRIPTUM

Platão popozudo

- O que você carrega aí, embaixo do braço? Parece bem pesado. - São as obras completas de Valesca Popozuda. Uma edição bilíngue em capa dura. - Valesca o que? De quem se trata? Nunca ouvi falar. É uma escritora russa? - Que russa, que nada. Brasileiríssima. Segundo um professor do Distrito Federal, é uma grande pensadora contemporânea. - O que foi que ela escreveu? Nunca li. - Obras fundamentais para a compreensão do mundo atual. Vou citar apenas algumas: “Pica Mole Style”, “Quero te Dar”, “Hoje eu não Vou Dar” e “Beijinho no Ombro”. Veja esses versos: “Eu fiquei foi peladinha, na hora, bateu neurose/ Além do ‘piru’ pequeno, e aí, ele não sobe?” - Perto disso, o “Lepo-Lepo” parece canção de ninar. E é assim mesmo, ‘piru’, com i? - Sim, por isso a minha edição das obras dela é bilíngue. Muita coisa precisa ser traduzida, não é de fácil compreensão. É como tentar ler Kierkegaard no original. - Mas que história é essa de pensadora contemporânea? - Foi um professor do ensino médio que colocou na prova uma pergunta sobre uma música de Valesca, e a introduziu, ou melhor dizendo, a apresentou, como uma grande pensadora contemporânea. Como tudo hoje, o caso acabou na internet, com muita gente indignada. - Mas o professor falava sério? - Ele disse que era apenas uma brincadeira para atrair a mídia e mostrar que os jornalistas só se interessam por notícias ruins. - Profundo isso, sem duplo sentido. E como é que se chama o professor? - Antônio Kubitschek. - Parente do presidente? - Nada. O pai dele também era um pensador contemporâneo e para homenagear o presidente Juscelino deu o sobrenome ao filho. - Será que se o filho tivesse nascido agora ele teria dado o nome de Antônio Popozudo? - Este é um excelente exemplo de raciocínio lógico de um clássico discípulo do popozudismo. Você tem certeza de que nunca leu nada de Valesca? (Publicado no jornal “A Tarde”, sem autoria, Caderno 2, página 3, edição de segunda-feira, 14/04/2014, Humor, sob o título “Falam por Aí”).

.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição 25/02/2017, Caderno A-7.

- As fotos foram retiradas do Google. 

domingo, 16 de maio de 2021

 Opinião

REVISTA DO RÁDIO

Clóvis Barbosa

Marlene e Emilinha Borba

Entre os oito e quinze anos de idade aconteceram fatos extraordinários em minha vida na capital baiana. Diria que foi uma fase muito rica na aquisição de conhecimentos, em amadurecimento para enfrentar a vida e autoafirmação cultural e cidadã. Não fui aquela criança teorizada pelos psiquiatras/psicólogos como a que teve uma vida normal do ponto de vista de brincar e estudar. Trabalhei para sobreviver desde cedo e, ao invés de ser um elemento prejudicial à minha formação, foi muito importante para o meu crescimento, pois, em momento algum, fiquei privado de participar de brincadeiras típicas da infância e de frequentar regularmente a escola. A minha normalidade era sentida pelo bem-estar físico, mental e social e pela capacidade de adaptação ao meio. É verdade que na vida ninguém cresce sozinho. Nesse caminhar tive pessoas extraordinárias que passaram pela minha história e influenciaram de forma decisiva na formação do meu caráter e daquela lei moral, de que nos fala Kant - na Crítica da razão prática - existente em nós. Nas orações sempre agradeço por esses anjos que Deus colocou em minha vida, uns já falecidos e outros ainda vivos. Sou-lhes grato por menor que tenha sido a sua contribuição. Foi uma fase em que cada minuto era aproveitado intensamente. Aprendi a ser inteiro em tudo em que me envolvia. Na fase impúbere, não sei bem o porquê, sempre fui “do contra”. Em casa, havia uma disputa sobre todo e qualquer acontecimento do cotidiano. A briga era infernal, mas, paradoxalmente, o senso de humor, a pacificidade e a solidariedade predominavam entre nós todos – irmãos e pais. Eu, particularmente, sempre estive ao lado dos oprimidos.   

Enquanto os homens torciam pelo Vitória e as mulheres eram fãs de Cauby Peixoto e Wanderley Cardoso, eu era torcedor do Bahia e fã de Francisco Carlos - um cantor de sucesso na década de 1950 - e Roberto Carlos. Em paralelo à vida no meu lar, no labor diário e nos estudos tinha uma afeição muito grande à vida cultural proporcionada pelos cinemas de Salvador e pelo Instituto Goeth, situado no Corredor da Vitória, próximo à Praça do Campo Grande. Era admirador do cinema clássico e dos movimentos culturais da época. Acompanhei o surgimento da Nouvelle Vague Francesa, de Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Eric Rohmer e Jacques Rivette, sendo a maioria desses cineastas vinda da crítica cinematográfica feita numa revista de vanguarda, o Cahiers de Cinéma. Acompanhei o neorrealismo italiano nas figuras dos seus idealizadores, Roberto Rosselini, Luchino Visconti e Vittorio de Sica. Nunca me esqueço do filme Ladrões de Bicicleta, que fui assistir num cinema de subúrbio, em Plataforma. Vi o cinema novo no Brasil florescer - influenciado pela nouvelle vague e pelo neorrealismo -, que teve como expoentes Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Roberto Santos, Paulo César Saraceni, Olney São Paulo e Rogério Sganzerla. Vivenciei o surgimento do novo cinema alemão, também inspirado pela nouvelle vague e pelos movimentos de protesto de 1968, e que teve como nomes importantes Wim Wenders, Werner Herzog, Volker Schlondorff e Rainer Werner Fassbinder; o nascimento do cinema baiano em filmes como Redenção, Barravento, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto.

Gratas recordações tenho das filmagens de O Pagador de Promessas na Ladeira do Carmo e Pelourinho (único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes), quando testemunhei os gritos do diretor Anselmo Duarte e as interpretações dos atores Leonardo Vilar, Geraldo D’El Rey, Glória Menezes e tantos outros. Foram momentos fascinantes. Saía do IEIA (à época era Instituto de Educação Isaías Alves) no Barbalho, seguia em direção ao Santo Antônio, passando pelo Além do Carmo, até chegar à Igreja do Passo. Descia os seus 55 degraus e me sentava timidamente na Ladeira do Carmo. Não sei o porquê, mas nunca fui expulso do set dos trabalhos cinematográficos. Tenho a impressão de que era a minha farda caqui do colégio que impunha respeito ou me tornava invisível. Tinha de tudo nas gravações, e a multidão de curiosos de vez em quando era contida pela polícia e seguranças. Certo dia, se aproximou do local o famoso cordelista Cuíca de Santo Amaro, causando reboliço. A turba começou a entoar o “bota vaca no currá, Zé Coió quer mamar” e as filmagens tiveram que ser suspensas. Registre-se que foi nele, Cuíca, que Dias Gomes - autor da peça que deu nome ao filme – se baseou para criar um dos personagens. Enfim, foram momentos inesquecíveis. Outra faceta que eu tinha era a de acompanhar as programações das emissoras de rádio da Bahia e do Rio de Janeiro, principalmente. A Rádio Sociedade da Bahia, ligada ao grupo de Assis Chateaubriand, a Rádio Excelsior e a Rádio Cultura predominavam na época com um cast de fazer inveja. Até os Serviços de Alto Falante - muito comuns na época nos bairros de Salvador - primavam pelo bom gosto.
Foi no palco da Rádio Excelsior, que ficava próxima à Praça da Sé, que vi um show do grande cantor de boleros Bienvenido Granda. No auditório e nas ondas da Rádio Sociedade desfilavam nomes como Ubaldo Câncio de Carvalho, Renato Mendonça, Armando Chaves, Pacheco Filho, Antônio Laborda, José Athaide. Tinha até programa de rádio teatro. Nessas emissoras desfilavam o compositor Riachão e um cantor de voz muito bonita, Osvaldo Fahel. Existia uma exibição semanal de meia hora, intitulada PRK-30, na fase memorável da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, apresentada por Lauro Borges e Castro Barbosa, que modulava: “Cavaleiros e cavaleiras de ambos os sexos, muito boa tarde. Acaba de subir ao ar a sua PRK-30, falando diretamente do segundo andar do Edifício Espícler, enquanto não anunciam a construção do primeiro andar. É por isso que anunciamos sempre: NO AR, PRK-30!”. Eram apenas duas vozes que representavam dezenas de personagens, uma espécie de Chico Anísio das décadas de 50 e 60. Aliás, há quem diga que o humorista cearense foi muito influenciado por essa dupla de sucesso na história do rádio. Mais fascinante ainda era a acirrada disputa artística que se travava na Rádio Nacional e pelo Brasil afora, tendo como protagonistas as cantoras Emilinha Borba e Marlene, e os cantores Cauby Peixoto e Francisco Carlos. O gesto simples de girar um botão criava, repentinamente, um momento mágico. Tinha uma emissora de Pernambuco cujo locutor de vozeirão falava o seguinte bordão: “Pernambuco, você é meu”. E continuava, “Aqui é a Rádio Jornal do Comércio... É Pernambuco falando para o mundo”.
Minha mãe, fã ardorosa de Emilinha, acompanhava cantando em duo com a voz que vinha do rádio: “Chiquita bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica”, ou: “Quando a lama virou pedra e mandacaru secou, quando arribação de sede bateu asa e voou; foi aí que vim-me embora carregando a minha dor, hoje eu mando um abraço pra ti pequenina, Paraíba masculina muié macho sim senhor”, clássico de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Mas minha velha nunca foi assistir Emilinha pessoalmente. Eu era obrigado a ver os seus filmes e passava a ela o papel desempenhado pela artista ou a música que ela interpretava. Lembro-me de alguns filmes, como “Tristezas não pagam dívidas”, onde ela canta “Atire a primeira pedra”; “Aviso aos navegantes”, em que se apresenta com uma capa de plástico e sob uma chuva artificial, onde interpreta a música Tomara que chova. Enfim, foram inúmeros os filmes. O mesmo quadro era com Cauby Peixoto. Diferentemente, minha mãe não admitia as canções interpretadas por Marlene ou Francisco Carlos. Nessas horas, mudava-se imediatamente de emissora. Mas ela gostava também de Dolores Duran, Elizete Cardoso, Dalva de Oliveira, Maysa e Ângela Maria. Em outubro de 2007, eu estava em São Paulo quando minha mãe telefonou-me pedindo para comprar um CD de Emilinha Borba. Fui a uma loja da Avenida Paulista sem qualquer esperança de encontrar, contudo, achei vários CDs da cantora. Entreguei todos a ela, que vibrou com o presente. Soube que todos os dias ela tocava um a um dos CDS. Mas, na verdade, estava ouvindo pela última vez a voz daquela que durante muito tempo encheu o seu mundo de magia. É que ela faleceu poucos dias depois, mas seus duos com Emilinha permanecem vivos em minha memória.


- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 08/05/2021, Caderno A-7.

 - Fotos extraídas do Google

 

domingo, 21 de março de 2021

Em nome do Pai

Opinião 

Em nome do Pai

Clóvis Barbosa

Walt Whitman

Duas visões poéticas sobre Deus. Uma, do brasileiro nascido no Rio de Janeiro, Casimiro José Marques de Abreu (1839-1860), pertencente à segunda geração da escola romântica. A outra do americano nascido em West Hills, Walt Whitman (1819-1892), considerado o grande poeta da revolução americana. De Abreu: “Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno e brincava na praia; o mar bramia, e, erguendo o dorso altivo, sacudia, a branca espuma para o céu sereno. E eu disse a minha mãe nesse momento: ‘Que dura orquestra! Que furor insano! Que pode haver de maior do que o oceano ou que seja mais forte do que o vento?’ Minha mãe a sorrir, olhou pros céus e respondeu: - Um ser que nós não vemos, é maior do que o mar que nós tememos, mais forte que o tufão, meu filho, é Deus”. De Whitman: “Quero fazer os poemas das coisas materiais, pois imagino que esses hão de ser os poemas mais espirituais. E farei os poemas do meu corpo e do que há de mortal. Pois acredito que eles me trarão os poemas da alma e da imortalidade. E à raça humana eu digo: - Não seja curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso a respeito de Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho...”.


Quem tem o privilégio de vivenciar nas manhãs chuvosas de Aracaju o espetáculo oferecido pela natureza, não teria e não terá qualquer dúvida sobre a presença de Deus no nosso cotidiano. As nuvens espessas não permitem o surgimento do sol que, teimoso, procura nas brechas, por menor que sejam, desvirginá-las através dos seus raios, até o momento que surge radiante, imponente, retumbante. Fantástico! Na minha corrida matinal, ao passar pelas árvores que margeiam o rio na Avenida Beira Mar, sinto na pele este cenário grandioso, belo e emocionante. De repente, na direção oeste, do fundo do Parque da Sementeira, surge, altaneiro, vibrantes, multicolorido, um dos maiores fenômenos, óptico e meteorológico, da natureza: o arco-íris. É um espetáculo indescritível. Às vezes penso como alguém pode achar um dia de chuva feio. Nada disso! Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos cumprem o mesmo papel: falar com você, em nome de Deus. As árvores, as flores, o sol, o luar, os montes, o mar, o rio e todos os fenômenos da natureza são as ferramentas criadas para lhe dar a oportunidade de se encontrar, de ser humano, na maior acepção do termo. Aprendi com os anos, depois de muito tempo, que a raiva e o ódio destroem e desagregam a nossa vida e a do outro. A amargura não vale a pena, não traz solução, só dificuldades.

Não se entende o porquê de tantas atrocidades pelo mundo afora e que tanta vergonha já causou à humanidade. Muitas delas praticadas em nome do Pai. Alguns casos são inexplicáveis e mostram a involução dos homens enquanto seres humanos: O assassinato, na Segunda Guerra Mundial, pelos nazistas, liderados por Adolph Hitler, de 6 milhões de judeus entre 1939 e 1945; a matança de 200 mil bósnios, 2 milhões de refugiados e o estupro de 40 mil mulheres pela milícia e exército sérvio durante a queda da antiga Iugoslávia, entre 1992 e 1995; o massacre de Ruanda, em abril de 1994, quando 700 mil tútsis morreram e 200 mil foram refugiados, crime praticado pelas milícias hútus, numa das maiores barbáries praticadas por um grupo étnico contra outro do mesmo País; a morte em massa de 1,5 milhão de armênios e de 500 mil deportados, praticados pelos turcos otomanos; o regime de terror instaurado no Timor Leste, uma  ex-colônia portuguesa situada no sudeste asiático, pela Indonésia, que fez com que 150 mil timorenses fossem assassinados entre 1975 e 1999; o massacre praticado pelo exército do Khmer Vermelho, entre 1975 e 1979, que matou 1,7 milhão de cambojanos sob as ordens de Pol Pot, líder comunista que apoderou-se do poder no Camboja; e o genocídio ocorrido na Ucrânia entre 1932 e 1933, a mando do ditador soviético Joseph Stalin, onde 3 milhões de ucranianos foram vitimados.

Somos filhos da África. Para aqui vieram os nossos antepassados, como escravos para, com sua força de trabalho, submeter-se a uma exploração do homem pelo homem. Ao chegar ao Brasil, eram açoitados de forma severa para, de logo, acostumarem-se no contexto da opressão institucionalizada. Foram tripudiados, espancados, explorados, animalizados em sua dignidade e autoestima. A chibata era o símbolo do instrumento de tortura a ser aplicada àqueles que não se conformavam com o establishment. Certa vez, um engraçadinho, pelo twitter, ao me solidarizar com a fome na África, me mandou às favas, dizendo que eu deveria era me solidarizar com os pobres e oprimidos daqui e não querer ser um pai de povo que eu sequer conhecia. O que fazer?! A mediocridade e a insensibilidade são irmãs gêmeas, até porque o que a não ficção complica, a ficção elucida com muita clareza. Ou será o contrário? A verdade é que o meu seguidor de twitter desconhece o que foi a carnificina escravocrata em nosso país. Esquece, por exemplo, que o Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, chegando ao ponto, em 1820, dois anos antes da Independência, de ter uma população onde dois terços eram de escravos. Só nesse ano, desembarcaram no Rio de Janeiro 700 mil africanos. Documentos demonstram que o Rio de Janeiro foi a maior cidade escravista do mundo desde a Roma antiga.

E para arrematar: De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos vieram para o Brasil, dez vezes mais, por exemplo, que a quantidade levada para América do Norte. Quem se dedicar a ter uma visão mais aprofundada dos navios negreiros, vai se horrorizar com a forma desumana como eram tratados os africanos nesse meio de transporte. Os escravos sempre somavam um número bem superior que a tripulação. Viajavam com os pés presos, agrilhoados, a fim de evitar fuga. Qualquer tipo de insurreição era combatido com violência, desde a tortura, passando pelo açoite e o pau de arara, e findando na própria morte. Ademais, pelas condições promíscuas da viagem, estavam também sujeitos a todo tipo de doença. A escravidão foi um dos acontecimentos mais tristes da história da humanidade. O pior é que os escravocratas, fidelíssimos cristãos, falavam nos cultos e nas missas em nome do Pai. Quer saber mais? Compre e leia “O Navio Negreiro – Uma História Humana”, de Marcus Rediker, professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs. Mas, interessante, gostei do epíteto da vontade que supostamente eu teria de pretender ser o pai do povo somaliano, como dito pelo twitteiro. Quem me dera! Mas estou satisfeito por ser filho da África e, seja ela pai ou mãe, é minha pretensão honrá-la.

A inquisição foi outro acontecimento que envergonhou a humanidade, durante o qual 30 milhões de pessoas foram assassinadas no período mais obscurantista e corrupto da igreja católica. O pior é que esses crimes bárbaros também foram praticados em nome do Pai, contrariamente a todo o seu ensinamento. Não existe em lugar algum das Sagradas Escrituras qualquer ato desse jaez praticado por Jesus Cristo ou determinado aos seus seguidores. Em nenhum momento do Novo Testamento qualquer dos seus Apóstolos deu essa instrução à Igreja. Em Lucas, há uma passagem onde dois discípulos de Jesus, Tiago e João, estavam aborrecidos porque algumas cidades se recusaram a ouvir sua mensagem e indagaram o Senhor sobre a possibilidade da descida de fogo do céu para consumir seus habitantes. Jesus não gostou do que ouviu e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o filho do homem não veio para destruir as almas dos homens. Essa dívida impagável tem a igreja católica com a humanidade e com Deus. Durante mais de seis séculos perseguiu e matou milhões de pessoas. Não estamos aqui para manipular a palavra sagrada, mas para, em seu nome, do Filho, e do Espírito Santo, louvar e agradecer, bendizer e adorar. Em Mateus, Jesus anuncia o tipo de “espírito suave” que deixou como exemplo para todos nós: “...Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”. E olhando o arco-íris faço da leveza e da suavidade o meu caminhar... Em nome do Pai.

 

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 4/2/2017.

- As fotos foram retiradas do Google

quarta-feira, 10 de março de 2021

Opinião Pessoal 

O Último Rei da Escócia

Clóvis Barbosa

Sabe aquela sensação que nos faz crer que tal pessoa é boa, sem sê-lo? Pois bem. A estrutura psicanalítica dessa leitura míope da realidade encontra seu arcabouço traçado pela Bíblia. Parece que tudo está no livro sagrado do cristianismo. Surpreendente é que está mesmo. Na segunda carta aos Coríntios, capítulo 11, versículo 14, o apóstolo Paulo diz que não deveríamos nos impressionar com falsos enviados do Messias, ressaltando que a existência desse tipo de gente “não é de admirar, pois até Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz”. Ou seja: o diabo às vezes reside na luz. Isso, por exemplo, foi captado pela lente de Kevin MacDonald, diretor do filme “O Último Rei da Escócia”. Nele, MacDonald destrincha a carreira política do ditador de Uganda, Idi Amin Dada, interpretado pelo estonteante Forrest Whitaker, que, por conta do irretocável trabalho, ganhou o Oscar de melhor ator em 2007.
Nicholas Garrigan e Idi Amin Dada
O enredo é sedutor, assim como a luz também o é. Dizem os anais da história que Idi Amin era um amante da cultura escocesa. Por isso, contratou como seu médico particular um escocês, o doutor Nicholas Garrigan. Sucede que maior do que a paixão de Amin pela Escócia era a abnegação de Garrigan pelo ditador, em parte resultante do carisma que a oratória desse meganha implantava nos corações daqueles que o ouviam discursar. Amin chegou a declarar, em dado momento de sua célere carreira despótica, que se considerava “a figura mais poderosa do mundo”. Ora, lengalengas à parte, o certo é que o doutor Garrigan se viu em maus lençóis, sendo forçado, inclusive, a fugir de Uganda para não morrer nas garras de Amin, que governou de 1971 a 1979, tempo durante o qual chacinou mais de 300 mil ugandenses. Em síntese, um escocês lúcido, médico, acreditou que um assassino seria, digamos, “um anjo de luz”.
Houve quem acreditou, nos idos de 2008, que o STF produziu uma decisão iluminada quando declarou que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela CF de 1988. Mostramos o equívoco desse ponto de vista em artigo publicado ano passado, sob o título A Morte da Lei de Imprensa. Ainda assim, houve quem discordasse da nossa postura, lançando mão de argumentos tipicamente retóricos: “a Lei de Imprensa é um resíduo da ditadura”, “a Lei de Imprensa está na escuridão dos calabouços em que militares torturavam jornalistas” etc. Será mesmo? Procurei dialética nesses postulados. Mas não há. Parece o discurso que Idi Amin Dada usou em 1971, quando depôs o presidente Obote em Uganda. Raciocinemos, portanto (e o STF sinalizou para essa consequência natural): expurgada a Lei de Imprensa, sobejou o que para os jornalistas, em sede de abuso na liberdade de manifestação do pensamento?
Resposta: o restante do ordenamento. Vale dizer, o Código Penal, o Código Civil, a própria Constituição. E algo precisa ser categorizado, com menos poesias e mais prosa: a CF assegura, no art. 5°, inciso IV, que é livre a manifestação do pensamento. Contudo, a mesma CF, no mesmo artigo, desta feita no inciso X, apregoa que a violação da imagem das pessoas gerará direito a indenização pelo dano material ou moral dela decorrente. Por conseguinte, ainda que não haja Lei de Imprensa para “censurar” jornalistas, haverá um Código Penal e um Código Civil, o primeiro recepcionado pela CF e o segundo de constitucionalidade jamais questionada. Daí a indagação: que vantagens os jornalistas tiveram com a eliminação da Lei de Imprensa? Sinceramente, não sei. Mas permitam-me apontar as inúmeras desvantagens, dando especial enfoque ao aspecto penal, certamente o que mais interessa aos jornalistas, radialistas, etc.
(01) Pela Lei de Imprensa, alguém que, supostamente, tenha sido ofendido por um jornalista tinha, no campo penal, três meses para ajuizar queixa-crime ou ofertar representação criminal; pelo Código Penal, o prazo é maior: seis meses. Perde o jornalista com o prazo mais elástico. (02) A prescrição, pela Lei de Imprensa, independentemente da pena a ser aplicada, ocorria em dois anos; pela norma penal, poderá chegar a oito. E nem venham dizer que, como o STF não suspendeu o art. 41 da Lei de Imprensa, embora se aplique o Código Penal, o prazo prescricional continuaria sendo o de dois anos. Nada disso. O Supremo já decidiu que não pode o magistrado misturar o que há de bom em uma lei com o que há de melhor em outra, sob pena de fazer as vezes de legislador. Ou uma lei na íntegra, ou outra, também na íntegra. Sobrou o Código Penal. Quem ganhou com isso? Não sei. Só sei que os jornalistas soçobraram.
(03) Pelo art. 43, § 1º, da Lei de Imprensa, o juiz, antes de decidir se recebe, ou não, a queixa ou denúncia, garantirá ao jornalista uma defesa prévia, grande oportunidade de convencer o magistrado acerca da inexistência de qualquer ilícito, impedindo o desenvolvimento do processo. Extirpada a Lei de Imprensa, não haverá a prerrogativa. (04) Pelo art. 73 da Lei de Imprensa, só há reincidência específica, ou seja, só será considerado reincidente o jornalista que já tiver contra si prolatada, e com trânsito em julgado, sentença condenatória por outro crime de imprensa. Diante disso, pergunto por que os encômios? Paciência. O Dr. Garrigan não venerou Idi Amin Dada? Mas essa conversa de que a Lei de Imprensa foi concebida na ditadura é verborragia. O mentor da Lei de Imprensa, Freitas Nobre, a concebeu anos antes do golpe militar de 1964, tendo sido um dos maiores defensores das liberdades. Aliás, foi perseguido por isso.
Deputado e Jornalista Freitas Nobre
Intrigante é que toda essa quizila sobre a Lei de Imprensa foi conduzida à revelia da biografia de Freitas Nobre. Em 25 de outubro de 2005, por ocasião da passagem dos trinta anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura, o nome de Nobre foi lembrado de forma honorífica como defensor da imprensa, essa mesma imprensa que, à época, achava o Código Penal melhor do que a lei que nasceu para protegê-la. Abestalho-me. A norma penal saiu da cabeça de um grande jurista, Nelson Hungria, mas veio à tona em um período eminentemente ditatorial. Hungria foi nomeado Ministro do STF por um ditador, Getúlio Vargas, e manchou sua biografia com um episódio patético, em que rasgou uma decisão judicial, prolatando outra em seu lugar para agradar um sociopata, que fez história na pior fase da imprensa brasileira: Assis Chateaubriand.
Walter Benjamin
Diploma ditatorial por diploma ditatorial fico com a Lei de Imprensa. Fico com Freitas Nobre. Fico com Vladimir Herzog. Fico com a guerrilha de Uganda. Ao mesmo tempo, preocupei-me em 2008 com os jornalistas que aplaudiram o fim da Lei de Imprensa, fazendo-me recordar o jovem médico Nicholas Garrigan, que supunha ver um amigo em Idi Amin Dada. Curioso, venceu o inimigo. O perigo está exatamente aí. Porém, quando os jornalistas descobrirem que a derrocada da Lei de Imprensa interessa mais ao “inimigo” será tarde. E, como ensinava Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem os mortos estão seguros”.

Post Scriptum

O Desgosto

Dia de festa e tristeza na sede da Petrobrás na Rua do Acre, em Aracaju. Era a despedida de Frederico, conhecido como Seu Fredy, depois de quarenta anos de serviços prestados. Muita gente presente. Até José Eduardo Dutra, o presidente da Empresa, o Superintendente Derzen e vários diretores foram lá dar um abraçaço naquele homem que relevantes serviços tinha prestado à empresa petrolífera, tanto em Alagoas como em Sergipe, com passagem em Campos, Rio de Janeiro e Salvador. Era a sua tão esperada aposentadoria. Muito choro e muito discurso. Beta, a vitalina da turma - e que tinha, aqui prá nós, um amor platônico por Seu Fredy - recitou um poema sobre a despedida, culminando com a frase: despedir-se não é dizer adeus, é apoiar e desejar muita felicidade na nova jornada que está começando. Depois de muito lengalenga, veio o discurso do homenageado, dizendo que iria se dedicar ao remo, esporte que abandonou quando entrou na Petrobrás e a viver com a sua querida Lulu. Arrematou, citando Antoine de Saint-Exupery: “Cada um que passa em nossa vida passa sozinho, pois cada pessoa é única, e nenhuma substitui outra. Cada um que passa em nossa vida passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós. Levam um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito; mas não há os que não levam nada. Há os que deixam muito; mas não há os que não deixam nada. Esta é a maior responsabilidade de nossa vida e a prova evidente que nada é ao acaso. Obrigado por ter compartilhado com vocês tantos e tantos bons momentos. Eu vou ter muita saudade”. Aplausos, abraços, beijos, lágrimas e muita emoção. Fredy era tido como um homem de grande alma. Vivia de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Teve quatro filhos, todos já bem encaminhados, somente ele e sua Lulu moravam naquela ampla casa do Mar Azul. Por causa da festa de despedida chegou um pouco mais tarde em casa e sua Lulu estava à sua espera para saber tim-tim por tim-tim do ocorrido. Ainda emocionado, contou tudo, inclusive sobre a presença do presidente da Petrobrás e do Superintendente. No dia seguinte, logo cedo, foi para o Parque dos Cajueiros onde se encontrou com Reni, Geraldo e Chico Oliva no Barracão Náutico do Cotinguiba. Queria saber de um bom barco de remo e onde poderia comprar. De posse das informações, 30 dias depois chegava em sua casa um potente barco. Alegremente, chamou Lulu para conhecer aquele “lindo espetáculo”, vindo da fábrica já plotado com o nome de “Lulu”. Durante a espera, muniu-se de vários livros, do guia do remo e das aulas de Renir e Geraldo. Já sabia tudo sobre segurança, técnica e equipamentos. Lulu, quando viu o barco, gritou: - Mas que porra é isso, Fredy? Como é que você gasta o nosso dinheiro com essa merda? Pronto! A partir desse dia a vida de Fredy virou um inferno. Lulu, a meiga Lulu, se transformou numa bruxa. Era uma ladainha só. Mas no início Fredy não ligou muito, embora todo dia que voltava do remo, era admoestado com as agressões verbais: - é o velho safado querendo ser menino? No dia que me retar, velho rabugento, vou no Parque do Cajueiro e toco fogo naquela porra! A vizinhança não aguentava mais os gritos histéricos de Lulu. E não é que a ameaça se cumpriu?! Lulu, de posse de um balde de gasolina, tocou fogo no barco sob o olhar atônito de Geraldo, que tentou evitar que outros barcos tivessem o mesmo fim. A decepção de Seu Fredy foi grande. Passou a ser um homem taciturno e ensimesmado. Comprou uma bicicleta para andar pelas ruas de Ará, mas esta teve o mesmo fim do barco. Lulu, com raiva, de posse de uma marreta, quebrou-a, deixando-a em pedaços. Um processo galopante de depressão tomou conta de Seu Fredy. Não saía mais de casa e dormia no quintal, até que um dia, ao sair do banheiro, uma dor repentina e violenta tomou conta do seu peito se estendendo até o braço esquerdo. Não teve tempo nem de pedir socorro a Lulu ou, quem sabe, não quis. E partiu ali mesmo, e exatamente cinco meses após a festa de despedida da Petrobrás. Segundo o diagnóstico de uma vizinha fuxiqueira, ele morreu de desgosto.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 21/01/2017, Caderno A-7. 

- As fotos foram retirados do Google.

domingo, 8 de novembro de 2020

Tipos Populares de Aracaju - Pedro Teles, o Zé Dendê

Isto é História

Aracaju Romântica que Vi e Vivi

Tipos Populares

PEDRO TELES – ZÉ DENDÊ

Murillo Melins

                        


Pedro Teles foi em sua época um dos tipos mais interessantes de Aracaju. Participou ativa e alegremente de quase todos os movimentos culturais de nossa provinciana cidade. ZÉ DENDÊ foi o nome escolhido por ele mesmo quando começou a encarnar o tipo caipira que fez tanto sucesso nos primórdios da PRJ-6, Rádio Difusora de Sergipe, e nos palcos dos nossos cinemas. Era o cômico dos monólogos, dos esquetes, das piadas inocentes ou picantes e das inteligentes paródias, modificando letras originais de canções populares, em versões de linguajar de matuto. Registramos aqui algumas delas, criadas e interpretadas pelo Zé Dendê.



Marcha Militar – tocada nos desfiles militares e pela Banda Musical da Polícia, quando era marcha, se dirigia ao coreto da Praça Fausto Cardoso para tocar nas inesquecíveis retretas:

O padre Carlos disse/que é pecado/ficar pelas esquinas/com namorado/andar de braços dados/sem ser casado/bater coxas dançando/bem rebolado...

Obs. O padre Carlos citado era o Monsenhor Carlos Carmelo Costa, Vigário da Catedral e eloquente orador sacro e membro da Academia Sergipana de Letras.

Paródia do Fox-canção “Nada Além” do compositor Mário Lago.

 

Madalena:

Madalena peste dos infernos/ai que pena!/você tava inté no meu caderno./Aquerditei no amô fingido perdido inconoclausto,/o amô só me futuca porque sou criança.

Sai cangaço não me faça de besta retroço/eu só choro e só bebo/e posso inté levá a breca,/Madalena satanás de cueca.


Música – Dominó:

Que calor, que calor/que calor/já não posso dormir/dorme nu/dorme nu/dorme nu/com uma flor na lapela.

Se continuar/e o suor chegar/dorme nu/dorme nu.

E a lapela começa a cheirar.


Canção sucesso de Sílvio Caldas:

É tão grande o mar/e foi um tão grande o home/mas é maior a minha fome/eu que já não como/estou agora a jejuar – gostosas feijoadas/eu já papei/fritadas e rabadas/já devorei.

Porém a infelicidade/roubou minha mesada/deixando-me na orfandade/de uma belíssima fatada.

O estômago vive agora/tocando flauta em surdina/meu Deus eu vou morrer/eu vou tomar terebentina.

Sofrer não aguento mais/caminho pra centina/porque as tripas grossas/estão engolindo as finas.


Música – A saudade mata a gente:

Quem namora de noite no escuro/está arriscado a dormir no distrito/é por isso que estou lhe avisando/pra que depois não vá dar faniquito.

E depois de lá se encontrar/não há mais nenhum jeito pra dar/é por isso que eu lhe aviso/pra no escuro nunca namorar.

E o soldado não enjeita, morena.../o soldado lhe endireita, morena.../o soldado leva a gente, morena.../o soldado prende a gente.

Pedro Teles foi o precursor desse gênero chistoso. Foi um homem jovial que apreciava as artes, o vinho, as belas mulheres e o humorismo. Com ele andei pelas esquinas e bares, festejando tudo com farras homéricas. Ele, sem dúvida, muito contribuiu para o enriquecimento da cultura e, principalmente, da arte cênica de Sergipe.


Criou o grupo teatral “JHALF-PRAN”, que teve atuação primorosa no espetáculo “Tobias Vive”, peça do professor José Calazans Brandão, comemorando o cinquentenário de morte do grande sergipano, Tobias Barreto. A encenação foi a primeira irradiação do gênero em Sergipe, transmitida pela PYD-2, do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP). Atuaram no espetáculo Pedro Teles (diretor), João Teles, Jacy Menezes, Helvécio Maia Filho, João Mello, Antônio Correia e Mattos Pires, os funcionários do DEIP jornalista Armando Barreto, Virgílio Torres, poeta José Maria Fontes e o então estudante Fernando Barreto Nunes. O autor José Calazans Brandão dirigiu pessoalmente a apresentação do espetáculo.

 

O JHALF-PRAN brilhou por alguns anos no palco do Salão Nobre do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e no Cine Teatro Rio Branco, encenando peças como “Um Homem”, de Eurico Silva, “Ladrão de Brinquedos”, de Paulo Barreto, a comédia “Casal de Pombos”, dos irmãos João e Pedro Teles, dentre outros dramas e comédias. O grande sucesso do grupo deve-se, em parte, à direção artística de Pedro Teles e ao elenco composto por amigos seus dotados de pendor artístico, como a estrela cantora Jacy Menezes, João Mello, Mário Pires, Helvécio Maia Filho, Wilson Lima, Alda Diniz, Everton Valadão, Laurides Lopes, a garota Avany Souza Torres e o pintor e ator J. Inácio.

Pedro Teles atuou no Teatro do Sítio Betânia, de Corinto Mendonça, como diretor de cena e participando também como comediante no espetáculo “Brasil Maravilhoso”, comédia dramática de autoria de João Teles e Pedro Teles. Foi o idealizador da S.S.C.A – Sociedade Sergipana de Cultura Artística, cuja posse da 1ª. Diretoria foi registrada em nota do “Jornal Nordeste” de 9 de setembro de 1941:

Realizou-se ontem, às 20 horas, no salão de conferências do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a posse da primeira diretoria que irá gerir os destinos daquela sociedade, durante o biênio de 7 de setembro de 1941 à mesma data de 1943.

Uma grande assistência compareceu a essa solenidade, numa grande demonstração inequívoca do seu apoio moral a realizações que tais.

A Sociedade Sergipana de Cultura Artística, que foi inspiração do nosso conterrâneo Pedro Teles, ao qual, também, se associaram várias jovens inteligentes e cheios de boa vontade, e cuja finalidade é auxiliar o artista pobre está fadada a grandes sucessos.


O artista popular Pedro Teles (Zé Dendê), além de tantos atributos, tinha tamanha capacidade criativa para produzir paródias, aproveitando-se de temas dos grandes clássicos da música popular. Por várias vezes, antecipava-se ao lançamento local de várias daquelas músicas lançadas no Rio e São Paulo pelos grandes intérpretes da época, chegando ao ponto do querido cantor e compositor João Mello reclamar aos amigos que estava ficando difícil cantar o que hoje são os sucessos da MPB, pois Zé Dendê já antecipava-se aos originais com suas impagáveis paródias.


Esse foi o alegre, boêmio, irreverente, matuto, dramaturgo e, acima de tudo, o humano artista, que passou pela vida distribuindo bom humor e cultura. Era assim Pedro Teles, o Zé Dendê, dos tradicionais “chavões” e outras “tiradas”, como “Minino fale cum as letra” e “adeus letra”, artista que conheci e agora tento reverenciar.

-  Na próxima postagem você vai conhecer o PROFESSOR FRANCISCO PORTUGAL, um baiano de Canavieiras que veio para Aracaju e aqui fez uma brilhante carreira como professor e tradutor. Apesar de mestre exigente era um homem bem humorado e que adorava colocar apelidos nos seus alunos em francês.

- Do livro “Aracaju Romântica que vi e vivi”, de Murillo Melins, 4ª. Edição, 2011, Gráfica J. Andrade.

- As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google. 

 

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...