terça-feira, 9 de setembro de 2014
Tratado Geral da Fofoca
Artigo pessoal
Tratado geral da
fofoca
Clóvis Barbosa
Passar o sarrafo na vida alheia é um dos esportes
mais praticados desde épocas bastante remotas. Nenhum povo, em qualquer parte
do mundo, mantém o monopólio da fofoca, mas ela está presente em todos os
lugares e é praticada pela esmagadora maioria das pessoas em todo o mundo. Ela
é tão importante, que assim como pode
prejudicar, também pode beneficiar. A rainha Elizabeth I, por exemplo, foi uma
das maiores vítimas do disse-me-disse da história. Durante dez anos (1560 a
1570) ela foi acusada de ter um caso, segundo o qual estaria grávida e que
teria tido um filho ilegítimo. Os ingleses, então, que adoram escândalos
registrados nos seus tablóides, vibraram. Existem histórias escabrosas
envolvendo principalmente nomes famosos. O grande pintor do renascimento,
Michelângelo, ao ser contratado para fazer uma escultura de Cristo, teria
realmente matado a golpes de faca um jovem que servia de modelo? Pois não é que
inventaram isso, informando, inclusive, que a morte teria sido motivada para
que o artista pudesse dissecar o cadáver e estudar minuciosamente os músculos?
Sobre o músico Brahms foi espalhado que ele era um autêntico estrangulador de
gatos, cujo objetivo era usar os seus gritos em sinfonias. Estudos biográficos
acusam o seu rival Richard Wagner de ter espalhado o boato. A rainha egípcia
Cleópatra foi outra que se utilizou da mentira para atingir seus objetivos.
Acusada de receber bens públicos de presente doados pelo seu amante Marco
Antônio, e para evitar uma guerra, espalhou que tinha se matado. O problema é
que ela não combinou com o seu amásio que, ao saber do suposto suicídio, enfiou
uma faca na própria barriga. Ah, e quando é a vítima da fofoca que estimula a
sua repercussão? Veja o caso do compositor Antonio Salieri, professor de
Beethoven, acusado de ter ódio da fama do Mozart. Não é que quando o músico
austríaco morreu, o boato correu solto que o seu assassino teria sido ele, Salieri.
Pois bem, Salieri estimulou a fofoca, chegando até a assinar uma confissão. Na
verdade, ela nada teve a ver com a morte de Mozart, que faleceu, provavelmente,
em função de uma febre reumática adquirida (fala-se também em sífilis).
Hoje existem
revistas, tablóides, programas de rádio e TVs, especializados em esmiuçar principalmente a vida de famosos. E tudo começou, no campo da imprensa, por
volta do século XVIII, com a publicação na França da La Chronique Scandealeuse, um pasquim que criava histórias picantes
sobre o dia-a-dia da corte, como os romances escabrosos de reis e rainhas.
Lembram-se da história do rei Luiz XVI, cuja mulher, Maria Antonieta, tinha
relação com todo mundo da corte, menos com o marido que, por sinal, dizia-se
não ser o pai verdadeiro do príncipe herdeiro? No começo do século XX, durante
a Primeira Guerra, um fato ficou famoso em toda a Europa. Um jornal alemão, o Kolnische Zeitung, veiculou uma matéria
afirmando que a cidade belga de Anvers havia sido ocupada pela Alemanha,
enfatizando que “Depois do anúncio da queda de Anvers, tocaram-se os sinos”. Com
base nessa notícia, o francês Le Matin
publicou em primeira pagina: “De acordo com o Kolnische Zeitung, o clero de Anvers foi obrigado a tocar os sinos
quando a fortaleza foi tomada”. E aí veio o The
Times, de Londres, que disse: “Segundo o Le Matin, os padres belgas que se
recusaram a tocar os sinos por ocasião da derrota de Anvers foram destituídos
de suas funções”. Por sua vez, o italiano Corriere
della Sera adicionou mais uma fofoca: “Segundo o The Times, os infortunados padres que se recusaram a tocar os sinos
por ocasião da queda de Anvers foram condenados a trabalhos forçados”. Finalmente,
a matéria do francês Le Matin, após a
primeira notícia, acachapou: “Segundo o Corriere
della Sera, está confirmado que os bárbaros conquistadores de Anvers
puniram os infelizes padres que se recusaram a tocar os sinos dependurando-os
de cabeça para baixo, como badalos vivos”. De uma notícia simplória, foram
dadas versões totalmente divorciadas da realidade. Mas, como diz o psiquiatra José Ângelo
Gaiarsa, autor de Tratado Geral sobre a
Fofoca, ela “é um importante veículo de controle social, por isso
não pode ser desprezada”. E adianta: “É uma maneira de ver os poderosos
despidos”.
Na Grécia antiga existiu um
tal de Diógenes Laércio que ninguém sabe de onde é e que deixou uma obra sobre
a vida dos filósofos eminentes. Apesar da sua obra não ser considerada um
clássico da bibliografia filosófica ela é muito citada pelos historiadores. O
problema é que além do aspecto informativo, a fofoca corre solta nas suas páginas. Ele conta que Sócrates foi discípulo de
Anaxágoras, Damão e Arquelau, sendo amante deste último. Registre-se que o
homossexualismo naquela época era moda, daí o termo “amor grego” dado às
relações do mesmo sexo. Fala de outros amores de Sócrates e principalmente do
mais famoso, Alcibíades. Aliás, diz-se que Alcibíades é que se apaixonou pelo
mestre, como confessado: “quando ouço a sua voz, muito mais do que o de um
coribante bate o meu coração!”. Há detalhes de como foi a conquista. Outra
fofoca de Sócrates é que ele era um chato de galocha e muito pegajoso com os
seus interlocutores, não sendo uma ou duas vezes que fora espancado com socos e
pontapés. Todos sabem que Sócrates não deixou nada escrito, por isso é dito que ele era analfabeto, não sabendo ler, nem
escrever. Até Platão contribui com essa fofoca na sua fábula Fedro. Antístenes, da escola cínica,
nascida dos ensinamentos socráticos, para quem a liberdade era entendida como o
bem supremo da alma e que só poderia ser alcançada por meio da auto-suficiência,
tinha fama de ser um sem-teto, morador de rua e que o epíteto de “cínico” que
ele tinha era motivado pelo fato dele ter passado a vida inteira como um cão de
rua. É também colocado em dúvida o
machismo de Geron, o bruto tirano de Siracusa. Ele teria se apaixonado pelo
jovem Dailoco. O boato foi repelido por ele com a frase: “é natural que eu me
sinta atraído pelo belo”. Tem também com Aristipo, filósofo cirenaico,
antagônico dos cínicos, tido como esnobe e frouxo. Numa tempestade, durante uma viagem, um
viajante insinuou: “que coisa mais estranha! Um filósofo não deveria ter tanto
medo da morte, se eu mesmo, que não sou um sábio, não estou nem um pouco
assustado”. E ele respondeu: “E tu queres comparar a tua vida inútil com a
minha?”
Mas a verdade é que a fofoca
tornou-se um passatempo universal, estando presente em todos os lugares. Se
você não quer ser vítima da fofocagem, lembre-se de um poema de Mário Quintana:
“Não te abras com teu amigo que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo
possui amigos também”.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e segunda-feira, 3 e 4 de fevereiro de 2013, Caderno C, página 4.
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