quarta-feira, 9 de março de 2016
O Homem que Amava os Cachorros
Opinião Pessoal
O homem que amava os cachorros (I)
Clóvis Barbosa
Concordo com Ismar Barreto na sua música “Parece,
mas não é”. É que a língua portuguesa dá a determinadas palavras um sentido
totalmente dissonante. E ele dizia: “Pederasta devia ser um homem culto.
Aquele senhor é um grande pederasta. E não viado, como diz a palavra.
Esfíncter, o músculo do ânus, devia ser um meteorito. Vai cair um grande
esfíncter no deserto do Arizona. Períneo seria uma coisa de tempo: vai chegar
um períneo em que a humanidade e tal, uma distância para um longo tempo... Já
xoxota parece caroço de manga, fruto macio, alongado e doce. E entendido...
Ainda bem, é mesmo coisa de marico”. Se você quiser conhecer a vida e a
obra desse grande artista sergipano, leia “Ismar Barreto, da esbórnia ao
sublime”, de Marcelo da Silva Ribeiro. E Ismar tem razão. Por que, por exemplo,
associar a figura do cão ao diabo? A figura do cachorro ao vagabundo, safado,
mau-caráter? A da cadela a uma mulher leviana? Por que, se o cachorro é tido e
havido como o melhor amigo do homem? Quanta felicidade nos traz a presença de
um cachorro em casa! As vantagens são inúmeras e são atestadas por estudos de
grandes universidades pelo mundo: donos de cães vão menos ao médico, tomam
menos remédio e quando ficam doentes, saem do hospital antes dos demais;
apresentam taxas normais de pressão arterial. A companhia dos seus cachorros evita
a depressão, principalmente em pessoas de terceira idade; faz as tarefas de o
dia-a-dia ser mais relaxantes; contribui para que as mulheres produzam mais
ocitocina, que é conhecida como o hormônio do amor; contribui para que os
casais briguem menos; também para que as pessoas fiquem mais sociáveis e
acessíveis a novos amigos, diferentemente das pessoas que não possuem este
animal de estimação. Durante a minha vida convivi com três cachorros: na minha
infância com Tarzan, que era do meu irmão mais velho; Há uns trinta anos
com uma cadelinha de nome Bubba. Durante dezesseis anos viveu comigo um
poodle de nome Rebecca. Morreu no ano passado e me deixou muito triste.
Vivemos momentos de alegria e de muito amor
recíproco.
Ivan era um veterinário em Havana. Ao
conhecer um homem que passeava com os seus cães, este confia ao veterinário
informações importantes dos últimos anos da vida do revolucionário russo Liev
Davidovitch Bronstein, conhecido como Trotski, que vivia exilado na cidade do
México. Dizendo-se amigo íntimo de Ramón Mercader, voluntário das Brigadas
Internacionais da Guerra Civil Espanhola e responsável pelo assassinato de
Trotski, reconstrói todo o caminho que levou a este ato extremo que abalou o
mundo em 1940. Todos conhecem a história. Trotski foi político, intelectual
marxista, escritor e revolucionário bolchevique. Comandou o Exército Vermelho
durante a Revolução de Outubro de 1917, que derrubou o czarismo na Rússia. Após
ter assumido o controle do Partido Comunista e da URSS, Joseph Stalin perseguiu
nomes proeminentes da revolução. Trotski foi uma de suas vítimas. Na verdade, a
morte de Lênin em 1924 redundou numa luta fratricida entre os dois grandes
herdeiros do sistema russo: De um lado, um intelectual de mão cheia, Trotski;
de outro, Stalin, um brutamontes insignificante do período
revolucionário, mas que ascendeu à secretaria-geral do Partido Comunista
soviético. Um parêntese: na minha adolescência fui stalinista e
anti-trotskista, e isso me envergonha por ter defendido um dos maiores criminosos
do século XX. Culpo a ditadura militar brasileira que impediu o acesso de
informação à minha geração. Tudo que era dito sobre Stalin era atribuíamos à
propaganda norte-americana. Somente aos trinta anos é que melhor pude avaliar,
criticamente, a revolução soviética e o papel do psicopata Joseph Stalin. Claro
que a história não trata de hipóteses, mas só com o que ocorreu. Contudo, não
tenho dúvida que a história seria outra se Trotski e não Stalin assumisse o
poder após 1924.
Diante da crescente burocratização do
estado soviético por Stalin e da substituição do poder da classe operária para
o partido, Trotski disse: “Em um país cujo único empregador é o Estado,
oposição significa morte por fome. O velho princípio daquele que não trabalha
não deverá comer, foi substituído por um novo aquele que não obedece não deverá
comer”. Cada vez mais me convenço da importância da democracia. Embora a
situação esteja “feia” em vários lugares, ainda é pela democracia que temos
condições de mudar o homem e a sua estupidez. A não ser que tenhamos que
continuar adotando a máxima de Alexandre Herculano, escritor romântico e
historiador lusitano: “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os
animais.”
POST-SCRIPTUM
O sangue
itabaianense de Dolores Duran
Há uns seis meses passei a twittar
sobre o sangue sergipano de Dolores Duran e sobre o fato do grande ator e
cantor norte-americano, Frank Sinatra, ter gravado uma música de uma filha de
uma sergipana de Itabaiana. Foi um Deus nos acuda! Mentiroso, diziam os mais
indignados; informação sem qualquer veracidade, falavam os mais comedidos. Mais
um casal amigo e fraterno, o promotor de justiça Eduardo Seabra e a juíza de
direito Mary Nadja se interessaram na pesquisa do tema. Eis que recebo um
presente do casal: “Dolores Duran – a noite e as canções de uma mulher
fascinante”, de Rodrigo Faour, Editora Record. Pois é, pessoal! Está lá no
livro:
“Nascida Adiléia Silva da Rocha, Dolores
Duran era a terceira dos quatro rebentos a aparecer no lar do sargento da
Marinha Armindo José da Rocha (1887-1948) e da dona de casa e eventualmente
costureira - Josepha Silva da Rocha (1912-99). Casa de gente simples, vida sem
riqueza, mas tudo dentro dos conformes daquele tempo. Contudo, nem todas as
crianças eram do mesmo pai e da mesma mãe. Do primeiro casamento de Armindo
nasceram Hilton (1925-94) (...) e Hilda (1926-99) (...) Armindo ficou viúvo, e
(...) acabou casando (...) com dona Josepha. Foi ali onde os dois filhos haviam
nascido que também viria ao mundo Adiléia em 7 de junho de 1930 (...). A última
do clã, Irley, apareceu apenas seis anos depois (...). Seu Armindo era
pernambucano. Como a maioria dos militares (e nordestinos) daquele tempo, era
um sujeito durão, resmungão e fumava muito (...). Dona Josepha por sua vez era
sergipana, da cidade de Itabaiana. Semianalfabeta, mas muito inteligente, teve
uma criação sofrida. Ficou órfã muito cedo, sendo criada pelos tios numa
fazenda. Contava sempre às filhas que era do tempo em que as mulheres não
podiam aprender a ler e a escrever porque senão acabariam por escrever cartas
para namorados, e isto seria inadmissível. Na roça era assim, se a menina
quisesse sair de casa para dar uma voltinha na rua, o pai cuspia no chão e ela
tinha que voltar antes de o cuspe secar. Por conta disso, levou surras
homéricas, a ponto de ter de ficar com o corpo de molho na água morna com sal
grosso numa banheira para sarar os ferimentos (ou seja, amenizando a ferida,
mas ao mesmo tempo impingindo a ela uma dor insuportável), tudo em nome de uma
educação um tanto conservadora e tacanha a que as mulheres eram submetidas nas
regiões menos favorecidas do Brasil. Certa vez, o primo mais velho de Josepha,
que servia na Marinha, veio para o Rio, então a capital federal e, diga-se, o
lugar mais promissor em termos de oportunidades no Brasil daquela ocasião.
Sendo assim, por volta dos 12 anos, ela acabou aportando também em terras
cariocas numa longa viagem, vindo de trem e navio. Chegando ao seu destino,
outra prima foi logo arrumando algumas tarefas para ela dar cabo (...). Deveria
entregar costuras na oficina de uma costureira. Ela então - sem saber ler nem
escrever - ia levar as tais costuras em lugares que jamais tinha visto, sem
nenhum traquejo até mesmo para conseguir ler os letreiros dos bondes (...).
Assim como o marido, ela tinha gênio forte, sendo rígida na educação das filhas
(mas não tão enjoada quanto ele), e - vejam só! - também apresentava dotes
artísticos. Nas horas vagas, gostava muito de cantar, compor e improvisar. Era
boa de gogó, afinada, mas nunca chegou a se aventurar na carreira artística
propriamente dita. Pode ter vindo daí parte do gene musical da menina Adiléia.
Embora não escrevesse, guardava muitas melodias e letras de cabeça.
Cantarolando em casa o dia inteiro, a qualquer hora do dia ou da noite (foi
assim até morrer), era possível ouvir quadrinhas como esta, de sua autoria: Eu
vim aqui pra falar com você / Que eu agora vou deixar de beber / Eu vou gritar
que a alegria é só minha / Eu não bebo mais em copo / Eu só bebo em garrafinha
/ No carnaval, sou eu quem vai decidir / Vou sair fantasiado de ‘Zé, pague um
olho aí’ / E a fantasia ninguém tem igual a minha / Eu 'vou sair fantasiado de
cachaça Praianinha. Dona Josepha tinha o dom do repente. Se visse uma pessoa e
estivesse inspirada, era capaz de pegar o nome da criatura e improvisar rimas
riquíssimas na hora, criando uma embolada ali, na frente do sujeito. Tinha lá
suas vaidades. Ciente das próprias limitações, fazia questão de pedir às filhas
que corrigissem seu português, caso dissesse alguma palavra errada em público -
mas que não lhe chamassem a atenção na frente dos outros, óbvio, mas em off”.
- Publicado no Jornal
da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, 16 de março de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, segunda-feira, 17 de março de 2014, às 11h31min,
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