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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O TRIUNFO DA MERITOCRACIA

Opinião Pessoal


O triunfo da meritocracia
Clóvis Barbosa
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Eu já contei neste espaço dois fatos, um envolvendo o pai do escritor Graciliano Ramos e outro sobre o filho do rei Davi. O primeiro envolve a figura de um esmoler de nome Venta-Romba. Toda sexta-feira ele ia, de casa em casa, humilhar-se em busca de alguns centavos. Conta Graciliano que, em dada oportunidade, Venta-Romba chamou à porta de sua casa, mas não foi ouvido. Assim, entrou. Entrou sem obter a necessária licença. Isso enfureceu a mãe do escritor. Mulher rude e inflexível determinou ao moleque José que fosse avisar o marido, juiz da cidade, acerca do ilícito praticado pelo mendigo. Não deu outra. Vieram o juiz e um gendarme. Apesar de não letrado, o pai de Graciliano de pronto percebeu tratar-se de um exagero da esposa. Normalmente, esposas de autoridades concebem-se como autoridades maiores do que os próprios maridos. Ainda assim, e diante da mobilização que atraíra a atenção dos populares, o juiz não podia desmoralizar-se: um dia de cadeia para Venta-Romba. A primeira lição: com o coronelismo, não era adequado que homens sábios ocupassem o cargo de magistrado. Não havia certame, mas escolha infame. Não havia excelência; havia subserviência. Quem melhor servisse ao coronel receberia como recompensa o emprego de juiz. Graciliano Ramos reconheceu que seu pai “possuía conhecimentos gerais muito precários”. De qualquer forma, acolheu a nomeação “sem nenhum escrúpulo”. Convinha ao sistema governamental da época ter gente desse tipo frente à administração da justiça. Convinha a gente desse tipo agachar-se perante os donos do poder, aceitando o status dado a quem prolatava sentenças em troca da obediência paraplégica ao chefe político local, o qual, no fim de tudo, ditaria a redação dos casos relevantes. Ou seja, quem não tem mérito para exercer uma função, termina preenchendo o vazio deixado pela falta de serenidade com o enchimento do puro arbítrio. O mestre alagoano, passados vários anos, mas ainda marcado pela desmesura do episódio, declarou que ele “deve ter contribuído para a desconfiança que a autoridade” inspirava em si. É verdade. Autoridade sem mérito não merece confiança mesmo.
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Por outro lado, a autoridade que, antes de sê-lo, fez por onde merecer o cargo inspira confiabilidade. Exemplo? Salomão, filho de Davi. Ao assumir o mister de rei o monarca fez uma oração através da qual pedia sabedoria para poder guiar os difíceis passos do povo judeu. A divindade, satisfeita com a procura do mérito pelo jovem governante, não só lhe deu sapiência, como glória, longevidade e riquezas. Mas a sabedoria de Salomão precisava ser testada. E foi num capítulo que ficou consagrado no bojo da literatura hebraica. Trata-se do julgamento de duas prostitutas. A narrativa, concluída no séc. VI a.C., nasceu pelas mãos do profeta Jeremias, escritor do primeiro livro dos reis. Os fatos propriamente ditos, no entanto, deram-se ali uns mil anos antes da era comum. Jeremias discorre sobre o seguinte acontecimento: duas prostitutas moravam juntas. Grávidas, ambas tiveram seus bebês dentro de um interregno de três dias. Sucede que, uma delas, tomada por um sono profundo, deitou-se sobre o filho, asfixiando-o e matando-o. Percebendo o que tinha feito, sorrateiramente trocou o seu filho, morto, pelo da outra, que dormia ao lado da mãe. Esta, ao amanhecer, constatou a troca e levou o problema a Salomão. Todavia, a primeira jurava que o bebê vivo era seu. Ante o impasse, Salomão determinou que um soldado viesse e dividisse a criança ao meio, após o que daria metade para cada uma das partes. Resolver-se-ia o impasse. Nesse ínterim, porém, a mãe verdadeira gritou: “Não! Não matem a criança! Deem-na para a outra mulher”. A adversária, no entanto, redarguiu: “De forma alguma. Dividam a criança no meio”. Ainda bem que o juiz não era o pai de Graciliano Ramos, um medíocre. É que os medíocres, malgrado aquilatem as asneiras que fazem, normalmente não voltam atrás, por questão de arrogância ou vaidade. Mantêm o erro para não demonstrar fraqueza. Salomão, não. O mérito que o fez chegar ao trono jamais lhe permitiria deixar de enxergar que a verdadeira mãe preferiria perder seu filho a vê-lo morto. Por conseguinte, Salomão ordenou que o neném fosse entregue àquela mulher que pediu para que ele não fosse dividido em dois.
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E o povo descobriu o quão tranquilizador é ser governado por um rei sábio, que chegou onde chegou, não de forma biônica, mas legítima, meritória. Eis o triunfo da meritocracia. Criada em 1958 pelo sociólogo britânico Michael Young, a palavra dá título a um dos seus mais importantes textos: the rise of the meritocracy. A meritocracia seria, pois, um sistema de governo que seleciona os servidores em geral pela competência, ao invés de pelo apadrinhamento. O chefe do executivo, por exemplo, será meritoriamente empossado se consagrado nas urnas pelo voto popular. Diferentemente, será coronelisticamente empossado se chegar ao cargo mediante a imposição, o que faria dele um líder biônico, tirano e zambeta. Biônico porque galgou o poder mecanicamente, pela inflição fria da máquina ditatorial, sem a unção popular, conferida junto à pia batismal do voto; tirano porque fruto de um modelo avesso à democracia, o qual despreza o desejo das massas; zambeta porque cambaleia para lá e para cá, conforme seja a direção das artérias do coronel. A Inglaterra mudou o método educacional com a meritocracia. Nos EUA, Randall Collins, professor de Sociologia na Pensilvânia, cunhou o vocábulo “credencialismo” para designar a situação de quem estaria credenciado para desempenhar cargos, enfatizando mais a capacitação do indivíduo do que uma falsa igualdade existente hoje por aqui nos diversos setores do serviço público. Lembro-me de um texto que li na minha adolescência sobre a questão de tratar os desiguais de forma igualitária. O autor criticava o modelo soviético de pagar de forma igualitária aos servidores, independente da produção de cada um. Acrescentava que o maior inimigo do comunismo era o leviatã burocrático criado pelo regime e que ele iria corroer, como um câncer, suas entranhas, até a sua morte definitiva. Anos mais tarde a profecia se concretizava com a Queda do Muro de Berlim. Que entendam: não estou me referindo, aqui, da igualdade das possibilidades ou dela como laço social, mas do sucesso que o homem quer ter em sua vida individual e o reconhecimento pelo que ele é.   
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O editor do “THE” (Times Higher Education), Phil Baty, esteve no Brasil em 2012, a convite do Ministério da Educação para dissecar sobre rankings universitários internacionais. Ele foi considerado naquele ano como uma das 15 personalidades mais influentes da área de educação no mundo pelo jornal “Australian”.  Para ele, o nivelamento dos salários engessa a qualidade do ensino nas universidades brasileiras. Evidente que não precisa ser autoridade especializada para perceber o caos que se instalou no ensino público brasileiro, chegando ao ponto da nossa melhor universidade, a USP, estar enfrentando uma das suas piores crises que, no dizer do professor José Arthur Giannotti, “a USP e outras instituições de ensino tem sido privatizadas, não pelo capital, mas por suas próprias burocracias, que se aglutinam para disputar vantagens nas carreiras e nas facilidades instaladas no campi”.
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Por aqui, entretanto, há quem ache um absurdo a tese da meritocracia. Essa alcatéia aplaude paralisações, sem qualquer prestação laboral, mas com salário no fim do mês; critica, no serviço público, a progressão na carreira pela qualificação e eficiência, chegando a afirmar que premiação pela avaliação é discriminatória; e defendem que todos devem receber igual, os que trabalham, os que nada produzem e aqueles que nem trabalham, num falso igualitarismo. É essa mesma súcia que aplaude juízes como o pai de Graciliano e que vibra com a prisão de um Venta-Romba.


- Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo, 6 de julho de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão em 06 de julho de 2014, às 07h59min, sítio:


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