domingo, 5 de agosto de 2018
A Danada da Cachaça
Opinião pessoal
A danada da cachaça
Clóvis Barbosa
Noventa anos nos distanciam
de “O Encouraçado Potemkin”. Gravada em 1925, a obra de Eisenstein retrata a rebelião
de marinheiros russos aos quais se ofereceu comida estragada. Tudo se deu em
1905, quando um cachaceiro governava a Rússia: o czar Nicolau II. Atracado no
Mar Negro, mais precisamente na Baía do Tendra, o encouraçado protagonizou a
gênese de uma série de rebeliões que resultaria na Revolução Russa de 1917.
Vinculada à revolta dos militares soviéticos estava a insatisfação das massas,
que, também em 1905, encaminharam-se até o Palácio de Inverno de Nicolau, sob o
comando de um sacerdote (o padre Gapone), no sentido de entregar ao monarca um como
que de manifesto, reclamando a observância de direitos civis, a exemplo da
jornada de trabalho, sufrágio universal, salário mínimo, etc. A manifestação
contou com algo em torno de duzentas mil pessoas. Termo da passeata: mais de
noventa mortos, entre homens, mulheres e crianças. A lente de Eisenstein
fotografou o massacre dos populares, que se eternizou como “domingo sangrento”,
dando ênfase à cena da “escadaria de Odessa”, tocante principalmente pelo
fuzilamento de duas mães, uma das quais conduzia um carrinho de bebê. Em “Os
Intocáveis” (1987), Brian De Palma imitou, sem êxito, Eisenstein, na cena da
mãe que larga o carrinho com o neném. De qualquer maneira, entre ambas as obras
cinematográficas imperam duas tênues similitudes: em primeiro lugar, os intocáveis
combatiam o crime; o povo de Odessa, o totalitarismo, que não deixa de ser uma
transgressão. Em segundo lugar, os intocáveis enfrentavam Al Capone, mafioso
que vendia cachaça durante a lei seca, instituída pela 18ª emenda à
constituição americana; o povo de Odessa, Nicolau, o déspota, não um
contrabandista de cachaça, mas um autêntico cachaceiro. O povo de Odessa morreu
lúcido. Especialmente, com lucidez cívica. Mas, civismo e civilidade não são
ingredientes muito comuns aos cachaceiros. Cachaceiros, efetivamente, gostam
mesmo é de cachaça, pois são pusilânimes quando sóbrios, mas valentes quando
ébrios.
A história da
cachaça é a história da bagaceira. Estudiosos afirmam que ela nunca gozou de
muito prestígio. Seu consumo sempre foi ligado a escravos e miseráveis. Na
Rússia de Nicolau II, um fraco, a cachaça, que por lá é chamada vodka,
produz-se a partir de centeio. Na Arábia Saudita, Índia, Egito e Grécia ela é
feita de grãos de cereais e é chamada de arak.
Do sul da cidade de Bordeaux, na França, até as montanhas dos Pirineus, na
divisa com a Espanha, elaborada a partir de um vinho branco de uvas nascidas em
solo arenoso, é conhecida como armagnac.
Em Portugal, chamada de bagaceira,
ela é obtida da destilação direta do bagaço de uva fresca. Na região francesa
da Normandia, com o nome de calvados,
ela nasce do mosto da maçã, destilada duas vezes e envelhecida por dois anos.
Na Holanda, com o nome de genever (genebra aqui no Brasil), ela é seca e
perfumada, feita de uma mistura do álcool de malte, cevada e milho, adicionada
a raiz de alcaçuz, cascas de limão ou laranja, erva-doce e canela. Exportada
para a Inglaterra, lá é conhecida como gim.
Já a cachaça brasileira vem da cana. O nosso querido advogado Sobral Pinto
certa vez disse que “Quando o Brasil criar juízo e se tornar uma potência
mundial, será a cachaça e não o uísque, a bebida do planeta”. Para se ter uma
ideia da importância da cachaça no Brasil, Belo Horizonte, por exemplo, realiza
todos os anos o “Festival Nacional da Cachaça”. A “Confraria do Copo Furado”,
criada em Ipanema no início dos anos de 1990, no Rio de Janeiro, tem bandeira,
símbolos, hino, rituais, linguagem, comportamentos e registros próprios. São os
protetores da confraria, registrados em ata, São Benedito e o poeta Tom Jobim.
Hoje, funciona, também, a Academia Brasileira da Cachaça (ABC), nos moldes da
Academia Brasileira de Letras (ABL), com fardões, reuniões - onde o chá é
substituído pela cachaça de alambique, como “orgulho e patrimônio brasileiros”
- mesmo número de cadeiras, patronos, etc. O seu patrono-mor especial é o
compositor da velha guarda da escola-de-samba Mangueira, Carlos Cachaça. A
Academia é formada por quarenta confrades, trinta homens e dez mulheres.
Tirante o aspecto
folclórico - e até degustativo - a cachaça é apreciada por grande número de
pessoas. O intrigante é que ela, de tão associada que está à esculhambação,
terminou por ver sua matéria-prima atrelada à noção de cadeia. Daí, dizer-se “entrar
em cana”. É, parece que cachaça é um troço do diabo. Até porque, muitas vezes,
ela é usada para a prática de malfeitos. Quando Cristo se apresentou a Herodes,
o governante estava “cheio de cana”, tal qual Nicolau II. Deu no que deu.
Massacre na Rússia. Crucificação em Jerusalém. Nicolau II também era antissemita.
Todo cachaceiro gosta de tachar os outros com algum epíteto depreciativo. Os
nazistas, quase todos cachaceiros, referiam-se aos judeus valendo-se do
adjetivo “imundo”. Já outros cachaceiros se deliciam com o adjetivo “picareta”.
Complicado saber qual o pior. Os cachaceiros alemães, que denominam a bebida
como kirsch, prenderam os judeus em Auschwitz-Birkenau, Bergen-Belsen,
Dachau, Mauthausen, Treblinka, etc. Mas, se o massacre de Odessa não
espezinhou a ideologia do povo russo, o que dizer de umas garrafas de cachaça?!
Se o nazismo não dizimou a nobreza do povo judeu, o que dizer de umas garrafas
de cachaça?! A cachaça só acaba com um tipo de gente: os cachaceiros. A cachaça
é uma coisa tão miserável que o direito penal cunhou a expressão actio
libera in causa para designar, por exemplo, o estado de quem se põe bêbado
para delinquir, na expectativa de não ser censurado. Pois bem, “vai em cana” do
mesmo jeito. Em alguns casos, isso é até agravante, conforme já decidiu, em 2003, a 5ª Turma do TRF da
2ª Região, através de voto do desembargador federal Antônio Ivan Athié:
“Independentemente de se cuidar aqui da famosa teoria da actio libera in
causa, o que se verifica é um ato em que a própria bebida, em tese, pelo
menos, não exclui a responsabilidade e nem o dolo, podendo até agravar”. Como
se percebe, o direito também não gosta dos cachaceiros. Há uma sentença latina
que diz: “vinum saepe facit quod homo neque ‘bu’ neque ‘ba’ scit”, ou
seja, “o vinho age de tal modo que o homem não sabe nem ‘bu’ nem ‘ba’”.
Somos nordestinos.
Dentro da liturgia cultural destas bandas, temos o acanalhado vezo de conferir
a qualquer bebida etílica o esculhambado e vulgar epíteto de “cachaça”. José
bebe vinho? A coisa se amesquinha. Ele toma é cachaça. O aperitivo de João é um
whiskyzinho? Lá vai o infame pra vala comum. Biriteiro! E o pior, se Antônio
estiver na curtição da verdadeira cachacinha, aí é que o achincalhe ganha
tônus. “Antônio? Está é cheio de cana”. Ninguém poupa o plantel dos
cachaceiros. Nem eles mesmos. É uma tribo antropofágica. O cabra, com uma
cerveja na mão, quando pensa em tirar o escalpo do desafeto, logo entoa: “Quem?
Aquele pulha? Cachaceiro!” Macaco não repara o rabo. E cachaceiro não espia o
copo. A cachaça só enxergou duas passagens em que a absolveram: as Bodas de
Caná, onde Cristo transformou água em vinho, e a Última Ceia, onde o vinho
simbolizou seu sangue. Nas próprias escrituras, porém, exemplos de avacalhação
e vinho pululam. No gênesis, há dois que inspirariam o papa a redigir uma
encíclica sobre os desalentos da cachaça. O primeiro está ali onde Noé, após
cultivar uvas e produzir vinho, se embriagou (nordestinamente: “se encheu de
pau”). Bêbado, ficou completamente nu (isso, na altura dos seus seiscentos
anos). Espetáculo digno da pequena loja dos horrores. Um velho, muxibento e
cachaceiro, exibindo a trouxa desavergonhadamente. O filho caçula flagrou o
atentado e clamou pelos irmãos mais velhos, que socorreram o patriarca. Estes,
de costas, certamente para não se assombrarem, foram na direção do ancião com
um lençol, a fim de cobri-lo e conduzi-lo à tenda, onde curou a cachaça. Mas,
como nada de bêbado tem dono (nem o juízo), Noé esconjurou o filho mais novo,
porque este o viu despido. O segundo e voluptuoso episódio se dá quando as
filhas de Ló, sob a desculpa de que não deixariam o velhinho sem descendência,
propuseram arrepiante ardil. O cenário é a pós-destruição de Gomorra. Foragidos,
Ló e filhas homiziaram-se numa caverna, na região montanhosa de Jerusalém, onde
hoje se encontra o Mar Morto.
À noite,
embebedaram o pai e, no ápice de sua suposta inconsciência, tiveram relações
sexuais das quais saíram embuchadas. Garantiram prole a Ló, num contexto de
chocar a menos carola das beatas. Pois bem, não é que cachaça e política se
assemelham? Ambas, quando não recebem
bênção divina - exemplos da Santa Ceia e das Bodas de Caná - ou desnudam e
expõem o camarada ao ridículo (que ainda amaldiçoará alguém), ou outorgam
prazer num quadro de promiscuidade (fossem só esses os esculachos). O povo
(sempre ele), todavia, é quem sai gozado no final. Aliás, tem um verso popular
do interior sergipano, do século XX, que diz assim: “São Benedito / é santo
preto / ele bebe cachaça / e ronca no peito. / São Benedito / é negro de raça,
/ ele toca pandeiro /e bebe cachaça”. Paciência! Mas, Bertolt Brecht, em Histórias
do Sr. Keuner, preleciona que “o que é sábio no sábio é a postura”. Segundo
Brecht, não interessa o objetivo daquele que não tem postura. Um cachaceiro não
tem postura. Quando age, fá-lo sem postura. Mal fica de pé. Malgrado tudo isso,
os cachaceiros se acham os melhores. E, citando novamente Brecht, um dia
indagaram de um, que se achava o “melhor”, qual seria seu próximo passo. A resposta
foi: “Tenho muito o que fazer. Preparo meu próximo erro”. É só esperar para
ver.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 21.06.2015, caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 21.06.2015, às 12h13min, site:
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