terça-feira, 27 de maio de 2014
Confissões
Artigo Pessoal
Confissões
Clóvis
Barbosa
Aurélio Agostinho, ou santo Agostinho, era
argelino, de Tagaste, uma pequena cidade situada no norte da África. Viveu de 354 a 430, depois de Cristo.
Apesar da vida atribulada, contraditória e cheia de aventuras amorosas, uma coisa
ninguém pode falar dele: que era hipócrita. Foi um filósofo que tratou de
quatro temas: o pecado, o tempo, a Cidade de Deus e a
controvérsia sobre o pelagianismo. Começou a sua vida religiosa optando
pelas doutrinas maniqueístas, tornando-se um destemido defensor de suas idéias.
Platão dizia que o mal não é algo, mas ausência de algo. Agostinho criou o
silogismo: os humanos são seres racionais. Para que sejam racionais os humanos
devem ter o livre arbítrio; isso significa que devem ser capazes de escolher
entre o bem e o mal; os humanos podem, portanto, agir bem ou mal; Logo, Deus
não é a origem do mal. Durante a sua militância na escola maniqueísta, ele
dizia: “fui seduzido e sedutor, enganado e enganador” (Confissões,
tomo IV, cap. 1). Foi um apaixonado pelo estudo das estrelas, mas um inimigo figadal dos astrólogos: “Nunca acreditei
naqueles embusteiros que se proclamam astrólogos e que dizem: isto se deve a
Vênus, e aquilo a Marte. Se a data de nascimento realmente influísse na vida
dos seres humanos, dois gêmeos deveriam ter o mesmo destino” (Confissões,
tomo IV, cap. 3). Aos dezesseis anos apaixonou-se por uma mulher bem mais velha
do que ele e com quem teve um filho, de nome Adeodato. Viveu com ela em
concubinato durante longos doze anos. Namorou muito e entre uma cama e outra se
descobriu cristão pela influência de santo Ambrósio, bispo de Milão.
Tornou-se um ermitão após o seu batismo e
foi morar num mosteiro onde escreveu as suas grandes obras, as Confissões,
A cidade de Deus, a Trindade, a Doutrina cristã, o Sermão
da montanha, as Cartas aos Romanos, Sobre a verdadeira religião
e outras obras. Mas mesmo na sua vida isolada, não deixou de se recordar do seu
passado erótico, como dito em algumas partes de suas Confissões: “O
desejo de amar e ser amado tornava-se maior quando unido à posse do corpo da
amante” (tomo III, cap. 1); “Do desvio da vontade nasce a devassidão, da
devassidão o hábito, do hábito a necessidade”; “Ame, e depois faça o que
bem quiser”; “Atrevi-me a conceber desejos impuros até entre as paredes
da Tua Igreja” (tomo III, cap. 3); “Ai de mim, não consigo dormir uma
noite sequer sozinho” (tomo VI, cap. 15); “Deus meu Senhor, dá-me a
castidade e a continência, mas não de imediato” (tomo VIII, cap. 7).
Ainda nas Confissões reconheceu ser
um ingrato com as noites de prazer e concupiscência amorosa que inundou a sua
vida mundana: “Aos dezesseis anos não amava as mulheres, mas sim a idéia de
amar. (...) Então um belo dia contaminei a minha inocência com a imundície da
luxúria e ofusquei o brilho do verdadeiro amor com o inferno do desejo e dos
sentidos” (tomo III, cap. 1). Talvez por causa da sua vida boêmia, ele
criou uma terceira alternativa entre o Céu e o Inferno: o purgatório. Vejam em Cidade
de Deus: “Senhor, sejais misericordioso comigo: fui pecador e sei que
não posso almejar o Paraíso, mas também sei que não fui mau a tal ponto de
merecer o inferno. Precisaria de algum lugar no meio, um lugar onde expiar os
pecados de que sou culpado, para poder então ser recebido entre as almas dos
beatos” (tomo XXI). Mas santo Agostinho também era um gozador: “O que é
o tempo? Se ninguém perguntar, eu sei. Mas se tiver de explicar a quem
pergunta, já não sei”. O óbvio de suas explicações era mais que ululante,
pois, para ele, como ratifica Luciano de Crescenzo, em História da filosofia
medieval, o passado não existe na medida em que já não é, o futuro não
existe por ainda não ser, e o presente não existe enquanto é uma separação
entre duas coisas que não existem. Enfim, para ele, só existem três tipos de
tempo, o presente do passado, que é a memória, o presente do futuro, que é a
esperança, e o presente do presente, que é a intuição.
Mas, tirando esse passado de orgia, a
verdade é que ninguém pode alegar que santo Agostinho não possuía o dom do arrependimento.
A sua vida sofreu uma guinada de 360 graus após assumir o bispado de Hipona
(hoje Argélia) e de se dedicar à leitura e a escrever as suas obras. A
dedicatória de Confissões é uma mistura de humildade, de pleito ao
perdão e de sinceridade: “Recebe este livro de minhas Confissões que tanto
desejaste. Contempla-me, para que não me louves mais do que sou. Julga-me não
pelos que os outros dizem de mim, mas pelo que eu digo nelas. Contempla-me
nelas e vê o que fui, na realidade, quando estive abandonado a mim mesmo”.
A confissão, como se sabe, é uma
autoacusação e, do ponto de vista religioso, ela deve ser livre, espontânea,
sincera, e deve vir acompanhada do firme propósito de não tornar a cometer os
mesmos erros. Santo Agostinho, com as suas Confissões, foi um homem que
procurou avançar entre os seus erros e acertos; alguém que, como dizia Jean
Paul Sartre, pensa contra si mesmo. Ao escrever a sua obra, ele não estava
interessado em comprovar a história de sua vida, mas a de penitenciar-se perante
Deus, ou melhor, ele quer renunciar a si mesmo para estar com Ele, o Pai. E
este encontro só se dá quando se vence as forças da sua natureza.
Santo Agostinho é uma das grandes
vertentes do pensamento cristão. Nas suas confissões ele foi o seu próprio juiz
e onde lhe faltou sabedoria, fez minucioso exame de si. Como seria bom que
todos conhecessem a sua obra e pudessem refletir sobre as suas lições de vida.
Lembro-me que certa vez, assistindo a um filme, Crimes e Pecados, o
personagem vivido por Woody Allen dizia que “nós somos a soma das nossas
decisões”. E é verdade. Se a estrada da vida é longa, o tempo é curto. Nunca é
tarde para o grande encontro com Deus.
- Publicado
no Jornal da Cidade, Aracaju-SE,
edição de 11 e 12 de novembro de 2012, Caderno A, página 4.
-
Postado no Blog Primeira Mão,
Aracaju-SE. em 11.11.2012, às 14:54:33, site:
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