segunda-feira, 23 de março de 2015
O Homem Revoltado
Artigo pessoal
O homem revoltado
Clóvis Barbosa
Albert Camus
(1913-1960), jornalista, escritor, romancista, ensaísta, dramaturgo,
ex-comunista e filósofo franco-argelino, reconhecido pela Academia Sueca com o
Nobel de Literatura de 1957, autor de uma obra vasta onde se destaca O estrangeiro, O Mito de Sísifo, Estado de
sítio, A queda e A peste. Ele
também escreveu o polêmico livro O homem
revoltado que, à época do lançamento, em 1951, recebeu as mais pesadas
críticas do mundo intelectual francês, principalmente do romancista e filósofo
Jean Paul Sartre, seu amigo até então. O pau quebrou na moleira de Camus,
acusado de ser um direitista inveterado, cão nazista, proxeneta do imperialismo
e tantos outros adjetivos. Camus não reagiu aos ataques, mas os seus estudiosos
justificaram a reação à sua obra pelo momento apaixonante do socialismo. Negar
a prática criminosa stalinista naquele momento era ir de encontro à revolução.
Mas todos sabem que toda obra de Camus contém as presenças do absurdo e da
revolta. Não era nenhuma novidade. Só que, diferentemente de determinadas
práticas filosóficas, ele pretendeu discutir e colocar o homem no mesmo patamar
de equidade e de respeito mútuo. Qual o sentido da existência humana? Esse é o
tema explorado em toda a sua obra, principalmente em O homem revoltado, onde exemplos bíblicos, da literatura e da
filosofia, extraídas das obras de André Breton, Hegel, Saint-Just, Marques de
Sade, Nietzsche, Jean-Jacques Rosseau, Pierre Naville, Dostoiévski, além das
escolas do niilismo, surrealismo e existencialismo, são colocados de forma a
justificar as suas teses. Esta obra é considerada por muitos como uma das mais
importantes do século XX. Dentro dessa perspectiva é que Camus entende que o
homem revoltado é aquele que se contrapõe à ordem de quem o oprime e reage
quando sente que não deve ser oprimido. Sumaria o seu texto naquele silogismo
de René Descartes: “Eu me revolto, logo existimos”.
A propósito
dessa reviravolta do povo brasileiro, gritando nas ruas contra o aumento da
passagem dos transportes, da classe política, dos sindicalistas, dos gastos com
a copa e da melhoria dos serviços nas áreas da educação e saúde, soa como
providencial conhecer o pensamento de Camus e do seu homem revoltado: “A
revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus direitos”; “O
indivíduo não pode aceitar a história tal como ela ocorre. Ele deve destruir a
realidade para afirmar o que ele é, não para colaborar com ela”; “(...) a
verdadeira revolta é criadora de valores”; “Se não há natureza humana, a maleabilidade
do homem, na verdade, é infinita”; “O escravo, na verdade, não está ligado à
sua condição, ele quer mudá-la. Ele pode, portanto, educar-se, ao contrário do
senhor; o que se denomina história não é mais que a sequência de seus longos
esforços para obter a liberdade real. (...) A história identifica-se, portanto,
com a história do trabalhador e da revolta. Não é de admirar que o
marxismo-leninismo-stalinismo tenha tirado dessa dialética o ideal
contemporâneo do soldado-operário”; “É por isso que o ateísmo e o espírito
revolucionário são apenas as duas faces de um mesmo movimento de liberação.
Essa é a resposta à pergunta sempre formulada: por que o movimento
revolucionário se identificou com o materialismo em vez de se identificar com o
idealismo? Porque subjugar Deus, fazer dele um escravo, é o mesmo que destruir
a transcendência que mantinha o poder dos antigos senhores, preparando, com a
ascensão dos novos, os tempos do homem-rei”. “Um décimo da humanidade terá
direito à personalidade e exercerá a autoridade ilimitada sobre os outros nove
décimos. Estes perderão a sua personalidade, tornando-se uma espécie de
rebanho, restritos à obediência passiva, sendo reconduzidos à inocência
primeira, por assim dizer, ao paraíso primitivo, onde, de resto, deverão
trabalhar”.
As manifestações
espontâneas do povo brasileiro que estão ocorrendo em várias cidades
brasileiras levam-nos a uma reflexão profunda. Acostumamos a pensar que somente
os formadores de opinião são os donos da verdade histórica, isto por serem os
detentores do conhecimento. O povo seria um mero espectador, que não pensa não
opina. Ele só tem dever, principalmente o de trabalhar para manter os
privilégios desse grupo que se apoderou do sistema. O aumento das tarifas do
transporte coletivo foi o sinal para sua eclosão. Mas não foi a razão
principal. O Brasil é um país cheio de contradições e de ilogicidade. Há um
pacto nas elites, aí incluídos os novos donatários do poder, aqueles que só
enxergam o próprio umbigo, para quem o Estado não é o instrumento para o
estabelecimento do bem comum, mas o de manutenção de seus privilégios. Essa
explosão social espontânea (não me refiro aos baderneiros, pois, para esses
aproveitadores a repressão policial), mas àqueles que estão cansados de serem
objeto da história e de assistirem passivamente a impunidade que corrói o
tecido social, os gastos astronômicos com obras faraônicas, os empréstimos
milionários a países em situação de risco, a corrupção, a roubalheira, a
violência, a intolerância, o péssimo transporte público, as obras
superfaturadas, a leniência governamental em relação a gestão pública, as
concessões inexplicáveis, saúde e educação precárias, o ócio remunerado das
greves no serviço público sem respeito à cidadania, a ruim prestação do serviço
público e a falta de compromisso da classe política com a ética e o respeito ao
mandato que lhe foi outorgado. Aqui pra nós, as elites donatárias do poder
estão recebendo um recado claro: o povo nas ruas está cansado de ser enganado.
Não aceita mais o discurso do futuro, que é, como bem diz Camus, “a única
espécie de propriedade que os senhores concedem de bom grado aos escravos”.
O que está
acontecendo no Brasil, diferentemente das primaveras estrangeiras em países
ditatoriais, é que não há uma estratégia clara ou qualquer comando organizado
que vise um fim preciso. Os políticos fracassaram? Nós fracassamos? Fica o
grande desafio: o da possibilidade de fazermos uma reflexão, antes que o
movimento se transforme numa primavera de verdade.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e terça-feira, 23 a 25 de junho de 2013, Caderno A, página 7.
- Postado no Blog
Primeira Mão em 25 de junho de 2013, às 19h11min, conforme site: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=5915&t=o-homem-revoltado
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