quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Cabeças Cortadas
Opinião
Cabeças cortadas
Clóvis Barbosa
O Brasil e o mundo assistiram estupefatos a
um vídeo chocante. As imagens foram filmadas no Complexo Penitenciário de
Pedrinhas, em São Luís, Capital do Estado do Maranhão, no dia 17 de dezembro de
2013. Duas cabeças, lado a lado, são exibidas pelos presos trogloditas como
troféus. Um terceiro decapitado tem a cabeça encostada no pescoço. E começa os
diálogos dos assassinos: - bota de frente
(o corpo) pra filmar direito. - Não puxa a cabeça dele. A câmera foca de perto as três cabeças separadas dos
corpos, todas com cortes de facas ou outro instrumento cortante, numa sensação
que antes da decapitação foram torturados sanguinariamente. Um dos presos pega
uma das cabeças e, em direção à câmera, diz: - filma esse maldito, desgraçado. – Vira de lado, vira de lado, grita outro. – Tem que ajeitar o foco, fala um terceiro. Depois dessas cenas - foi cascudo em tudo que era cabeça da
família Sarney. De repente, todos os males, inclusive as cenas violentas
trazidas ao público, eram únicas e exclusivamente culpa da chamada oligarquia
política que mandava no Estado e liderada pelo senador José Sarney. Mas nesse
caso, vou defender a governadora Roseana Sarney. Primeiro, deve-se a ela a
oportunidade que o mundo teve de conhecer o falido sistema prisional
brasileiro. Se ela tivesse negociado com os servidores do sistema penitenciário
do Maranhão, e atendido suas reivindicações, ninguém teria visto as imagens
aterrorizantes que foram encaminhadas à imprensa. Pasmem Senhoras e Senhores, o
responsável pela distribuição do filme foi o Sindicato da categoria dos
servidores desse mesmo sistema penitenciário. Ou seja: quem deveria estar
evitando fatos horrendos como aqueles, são os mesmos que assistiram e
estimularam a sua publicidade. Que pacto foi esse firmado entre uma entidade de
trabalhadores e assassinos frios para filmagem de um evento macabro? Quem é o Lumpenproletariat dessa história? Os servidores
ou os assassinos? Ou ambos? Oxalá que a moda não pegue: servidores saindo pela
rua com cabeças (bonecos) de gestores públicos ou de políticos que não
atenderem os seus pleitos.
Os fatos ocorridos no Complexo de Pedrinhas
têm muito a ver com a falência do sistema penitenciário brasileiro. A lei de
execução penal é uma das mais avançadas do mundo, porém, como muitas leis neste
país, sem qualquer possibilidade de ser executada. Faltam recursos e vontade
política, sem falar que é um tipo de serviço público que não merece qualquer
tipo de prioridade. O legislador brasileiro tem a péssima mania de fazer leis
avançadas como se estivesse no primeiro mundo, mas impossíveis de serem
efetivadas. Não o faz com base na realidade concreta, mas buscando em países
mais avançados experiências totalmente divorciadas da nossa cultura e das
nossas reais condições estruturais. Espera-se, entretanto, a abertura de um
novo debate sobre a situação, que não é somente do complexo penitenciário
maranhense, mas de todo o Brasil, onde a superlotação e outros males formam o
cotidiano desses estabelecimentos penais. O que estarrece, no entanto, é a
utilização de uma prática estatisticamente baixa dos homicídios ocorridos no
Brasil e no mundo: a decapitação. Glauber Rocha deu o título de Cabezas Cortadas ao seu filme rodado na
Espanha e que não teve boa aceitação da crítica. Mas interessa aqui a metáfora
glauberiana de uma estátua grega com a cabeça cortada. É na cabeça que se cria
tudo e onde está o raciocínio. Cortar as cabeças é fulminar com a razão, com a
criação, ou como disse André Breton, “a metáfora tem a capacidade de esculpir o
espaço do real, no caos da razão”. O filme fala de ditadores da América Latina,
ou como disse o próprio Glauber, “É um filme contra as ditaduras, é o funeral
das ditaduras”. Mas a realidade sem metáforas, é que as decapitações, durante a
história, tiveram várias significações, fossem elas como demonstração de força,
como prova da ocorrência, como exemplo para um grupo de pessoas, como um recado
para uma facção rival e até como a marca de algum serial killer, ou, também, como forma de humilhar e subjugar o
adversário. Desde a antiguidade até os dias atuais, a história está cheia de
casos de decapitações. Nem a Bíblia escapa.
No Novo Testamento, temos a história de
João Batista, o profeta que pregava o arrependimento e que batizava as pessoas
no rio Jordão. Ele teve a cabeça cortada e servida numa bandeja a mando de
Herodes sob a acusação de ter propagado um romance de Herodes com uma cunhada.
Nada disso, na verdade Herodes temia a liderança de João Batista, que era muito
querido pelo povo. No Brasil colonial, ainda no tempo das ordenações, uma das
formas de penas capitais era a decapitação. Outro exemplo brasileiro foi o do
bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, onde alguns tiveram as suas
cabeças cortadas pelas chamadas volantes e expostas por vários lugares. Outros
nomes importantes da história tiveram as suas cabeças cortadas, como
Robespierre, durante a Revolução Francesa, Luiz XVI e Maria Antonieta, todos
guilhotinados. Tiradentes foi um caso à parte. Foi enforcado, e depois de
esquartejado, teve a sua cabeça exposta em praça pública para servir de exemplo
a toda qualquer tentativa de libertar o país do jugo português. No Maranhão,
cabeças foram cortadas. Espera-se que o exemplo não contribua para a vitória do
lumpesinato. Aliás, como diria Glauber Rocha, “No Brasil só tem três coisas que funcionam: a Igreja, o Itamaraty e o
Exército, porque têm hierarquia. E país que não tem hierarquia é uma
esculhambação”.
Retratos
da vida
O
homem das duas mil virgens
Demétrio
gostava muito do Cacique Chá. Chegava sempre com um livro debaixo do braço.
Sempre estava sozinho, meditabundo, e dificilmente alguém se aconchegava para
interromper aquele estado de busca de maior equilíbrio e harmonia cósmica.
Aliás, um seu colega de profissão, Irineu, era o único que ousava invadir o seu
mundo. E justiça se faça, ele gostava da
presença de Irineu, mas pouco falava. O grande incentivador dessas suas
leituras era um conhecido advogado criminalista, bastante ilustrado e com vasto
conhecimento em filosofia do direito e em literatura marginal. Era um homem
atualizadíssimo. Era o doutor surgir no restaurante, que ele gritava – Eminente causídico, quais as novidades no
mundo da antropologia? E o advogado citava uma ou duas obras, ele anotava e
comprava. E quando voltava a encontrar o advogado, olhe ele com o livro debaixo
do braço. Fazia questão de mostrar a obra e sempre dizia: - grande autor, grande obra, mas, por favor,
quem está bem, hoje, na sociologia? E por aí ele ia formando uma das mais
ricas bibliotecas privadas de Sergipe. Hanah Arendt, Jean Paul Sartre, José
Ingenieros, Albert Camus, Goethe, George Orwell, Franz Kafka, Cícero,
Dostoiéwski, Marcel Proust, Immanuel Kant, William Faulkner, André Malraux,
André Comte–Sponville, Henry David Thoreau, Voltaire, Montaigne, Fernando
Pessoa, José Saramago, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília
Meireles, Machado de Assis, e tantos e tantos outros autores estrangeiros ou
nacionais. Ultimamente, o grande amor dele é Zygmunt Bauman, um sociólogo
polonês que fala muito sobre a fragilidade dos laços humanos. Irineu é, talvez,
o único amigo frequentador de sua casa e que sabe, amiúde, de todo acervo
existente na biblioteca escondida num dos quartos de uma casa situada no centro
da cidade, onde ele vive sozinho, ou melhor, vive com um gato e um papagaio, a
quem ele deu os nomes de “Francisco Carlos” e “Cauby”, respectivamente, em
homenagem a dois grandes cantores da década de 1950. Mas Irineu é, também, um
fofoqueiro. Segundo ele, Demétrio, nunca leu quaisquer das obras existentes na
biblioteca. Quando perguntado se Demétrio tinha mulher ele respondia: – uma não, duas mil, todas rigorosamente
virgens.
Clóvis Barbosa escreve
aos domingos, quinzenalmente.
- Publicado no Jornal da
Cidade, Aracaju-SE, domingo e segunda-feira, 2 e 3 de fevereiro
de 2014, Caderno A-7.
- Publicado no Blog Primeira
Mão, domingo, 2 de fevereiro de 2014, às 16h52min, sítio:
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