terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
A Morte de Deus
Opinião Pessoal
A morte de Deus
Clóvis Barbosa
Apesar de jovem ele já tinha dois filhos, o último com poucos meses de
nascido. Trabalhava numa lanchonete no Centro de Santos, cidade paulistana.
Trabalhava duro: das seis às vinte horas, de segunda a sexta e até as dezesseis
no sábado. Os amores de sua vida? A família e o Santos Futebol Clube. Naquela
noite de domingo ele estava no ponto de ônibus, com a camisa e bandeira
alvinegras. Estava alegre. O seu clube acabava de ganhar do São Paulo e assumia
a liderança do campeonato estadual. Estava voltando para casa. De repente, dois
carros param e descem vários homens armados com barras de ferro e ali mesmo
massacram impiedosamente o jovem torcedor, reduzindo-o a um monturo de carne e
sangue. Morreu no local. No seu enterro, a sua mãe, inconformada com o evento,
gritava histericamente que “Deus não existe”. Interessante, em “A Gaia
Ciência”, obra de 1882, Nietzsche coloca na boca de um personagem revoltado a
frase “Deus está morto”. Na verdade, em alguns momentos, as emoções e as forças
irracionais exercem um papel importante no comportamento humano. A propósito, o
grande debate que se trava hoje no Brasil é a cultura da violência instalada
nas manifestações públicas. As opiniões pululam diuturnamente nos meios de
comunicação, umas justificando o vandalismo, outras exigindo medidas
repressivas. Entre um e outro entendimento, todos fazem questão de esquecer as
lições primárias estabelecidas para o regime democrático: o respeito às normas
e às instituições que, para Bobbio, é o primeiro e mais importante passo para
renovação progressiva da sociedade. Para ele, a democracia é, no essencial, um
método de governo, um conjunto de regras de procedimento para a formação das
decisões coletivas, no qual está prevista e facilitada a ampla participação dos
interessados. Em outras palavras, a democracia se resume no respeito às regras
do jogo. Lamentavelmente, estamos perdendo a guerra, muitas vezes pela
leniência do Estado, que assiste de camarote o descontrole social que avança
consideravelmente pelo Brasil afora.
Anatol Rapoport é biomatemático, psicólogo, filósofo e cientista
social. Ucraniano, tornou-se cidadão americano e foi professor das
universidades de Toronto e Michigan. Morreu em 2007. No seu livro “Lutas, jogos
e debates”, ele coloca em cheque o funcionamento dos conflitos humanos. Ele diz
que na luta, o adversário é um obstáculo que precisa ser destruído
impiedosamente. No jogo é diferente, o adversário é uma peça importante. Quanto
mais forte ele for, mais respeitado ele será. E por que isso? Porque as regras
são respeitadas e isso faz o jogo valer a pena. A grande realização é
justamente ganhar a batalha pelo talento e pela estratégia montada. No debate,
os adversários dialogam procurando um convencer o outro. Lamentavelmente, quando
uma das partes não consegue ganhar pela persuasão, utiliza-se das técnicas de
luta (violência, calúnia, ameaça, etc.), o que não é recomendável eticamente. Diferentemente,
portanto, do jogo, as técnicas usadas pela violência urbana, são somente as da luta
e, em alguns momentos, as do debate com tudo de nocivo que possa existir.
Acabou-se o respeito ao direito de outrem. Por qualquer bobagem as ruas,
avenidas e estradas rodoviárias são fechadas. Mandam o direito de ir e vir de
terceiros às favas. A guerra de torcidas de futebol, os linchamentos públicos
num autêntico olho por olho dente por dente, o vandalismo nas manifestações
públicas, a desmoralização do aparelho policial por setores organizados, como a
ocorrida em Brasília, onde policiais foram acuados e agredidos, mostram o
retrato de uma cultura de violência que se enraíza no dia-a-dia do brasileiro.
O quadro é tão chocante que um membro dos “black blocs”, sobre a Copa do Mundo
que se aproxima, em entrevista ao Estadão,
disse que “Nossa tática nunca foi ferir civis,
mas, se não formos ouvidos, a gente vai dar susto em gringo. Não queremos
machucar, mas, se for preciso ‘tacar’ (coquetel) molotov em ônibus de delegação
ou hotel em que as seleções vão ficar, a gente vai fazer”. E por aí vai a
barbárie. Agora, também, pelo viés da desmoralização das instituições e dos
pilares que compõe a democracia.
Sei não! Quando a luta, no exemplo de Rapoport, vence, em detrimento
do jogo ou do debate, este sem as regras sujas, alguma coisa está fora da
ordem. E até a crença em Deus poderá deixar de ser razoável. E se Ele está
morto, os ideais de um mundo melhor, as lutas contra a barbárie e a dignidade
cidadã perdem o sentido.
POST-SCRIPTUM
– Chico Mocó, Baudelaire e Marcelo Déda
Chico Mocó era amigo de toda uma geração. Quando ele
morreu, em 2008, Marcelo Déda, emocionado com o evento, encaminhou um e-mail para vários amigos. Eis o texto:
“ontem, quando o sol se despedia pintando
o horizonte de rosas e dourados, levamos ao túmulo um homem que embriagou-se de
tudo que pôde: Chico Mocó. Com a sua embriaguez plena ajudou o mundo a ser mais
alegre; as amizades mais polêmicas (mas, também, mais sinceras, incorporando o
perdão e a compaixão nos seus ritos); o trânsito de Aracaju menos caótico; os
amigos menos pobres de memórias, boas memórias... Ao pé do caixão, uma geração,
hoje tão separada, geográfica e politicamente, se reencontrou e as lágrimas
deram lugar a um sorriso franco, às vezes irônico, como aqueles de Chico,
recordando um tempo difícil, mas que, visto de longe, dá saudades: Eu, Clímaco
(o velho Clímaco cuja influência política mudou minha vida: no fundo, no final
dos 70 e início dos anos 80 eu não queria ser governador, meu maior sonho era
ser Clímaco!), Joel, o velho Jojó, Milson, Ney dos Companheiros (velho como um
profeta, marcando audiência comigo para me entregar um exemplar da Bíblia),
Chico Buchinho, Boneca, João Manga Rosa, Ábdon, Ofélia, Genival, Rosemiro,
Clóvis, Eugênio, Goizinho... É
engraçado: quando somos jovens e juramos nossas convicções e desenhamos os
nossos sonhos, acreditamos que nunca nos
separaremos. Esperamos que todas as sextas haja um Clube onde beber cerveja
barata, discutir arte e política e encontrar o amor das nossas vidas. Queremos
nos ver 20, 30 anos depois no Raio-X, tomando conhaque de alcatrão São João da
Barra antes de ir pegar a sopa de mão-de-vaca no Tartaruga. Acreditamos que a
Didática 4 vai estar eternamente nos esperando, complacente com nossa
embriaguez de vinho, poesia, virtude e o que mais nos embriagava. A morte de um
de nós em que nos alerta da crueldade do tempo e da insensatez da vida e aí, ao
invés de nos aquecermos ao pé de uma fogueirinha de papel, como nos velhos
tempos, é o calor daquela alma que se vai quem nos mostra que o tempo passou e
que nós precisamos continuar, pois navegar – de preferência bêbado de vinho,
virtudes, amores, sonhos que ainda resistam, amizades que estão hoje tão longe,
saudades que insistem em viver tão perto – é preciso. Chico Mocó morreu. Viva
Chico Mocó!!! (Friday, May 30, 2008 10:13 AM). Logo abaixo do e-mail, Déda reproduziu o texto do poeta
Charles Baudelaire, “Embriagai-vos”: ‘É preciso estar sempre embriagado. Eis aí
tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do tempo que rompe
os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.
Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas
embriagai-vos. E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde
de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a
embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela,
ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a
tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a
estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: - É hora de embriagar-vos!
Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos. Embriagai-vos
sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira’.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo a quarta-feira, 3 a
6 de março de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, domingo, 2 de março de 2014, às 7h31min, sítio:
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