Opinião
Inimigos da democracia
Clóvis Barbosa
Alguns anos
atrás participamos de uma reunião das comissões de Direitos Políticos e de
Estudos Constitucionais da OAB Federal, em São Paulo. Eu fazia parte da
primeira comissão. Ao me deslocar do Hotel para o Aeroporto de Guarulhos tive a
satisfação de ter como companheiro de viagem o professor e jurista cearense,
Paulo Bonavides. Lembro-me de uma frase que ele esboçou durante o trajeto após
manifestar a sua contrariedade às modificações que eram introduzidas no texto
constitucional pelo Congresso Nacional: “Meu filho, precisamos urgentemente criar
um novo partido no Brasil: o Partido da Constituição. Um partido em defesa
diuturna dos princípios consagrados na Carta de 1988”. Bonavides era um
defensor ferrenho da nossa Carta Política, embora discordasse do princípio
representativo da nossa democracia. Na verdade, em todas as épocas do
republicanismo no Brasil, sempre prevaleceu a representação do povo pela classe
política. As conquistas por uma ordem social mais justa foram bastante lentas. A
Primeira República, que vai de 1891 a 1930, envolvendo, também, o período da
primeira ditadura de Vargas, o chamado Governo Provisório, de 1930 a 1934; a
Segunda República, de 1934 a 1937, e de 1937 a 1945, com a segunda ditadura de
Vargas (Estado Novo); a Terceira República, de 1946 a 1964, de 1964 a 1985
(ditadura militar), e de 1985 a 1988 (Transição). Tivemos, finalmente, a Quarta
República, a partir da promulgação da Constituição de 1988 até os dias atuais. Durante
a Primeira e Segunda Repúblicas praticamente não houve democracia no Brasil. Os
mecanismos eleitorais e o Estado mantinham os mesmos vícios oriundos do período
colonial e monárquico, onde prevalecia o poder das oligarquias. A Terceira
República, apesar de uma Constituição avançada, foi um período turbulento,
primeiro pelo comportamento golpista da classe política que se instaurou de
1946 a 1964; depois, o advento da ditadura militar.
Na Quarta
República, com uma constituição avançada, as expectativas para uma mudança
completa do nosso arcabouço social eram enormes. Mas o país não avançou no
quesito democracia. Tudo bem que há um descrédito no princípio representativo
do país. O sistema de representação política, onde o povo é substituído por
representantes, só tem servido para perpetuar o domínio das oligarquias, como
no passado. Estamos diante de uma viagem de aventura; ou todos nós teremos
êxito ou juntos iremos fracassar. Até agora, vive-se uma crise nas câmaras
municipais, nas assembleias legislativas e nas duas casas do Congresso, onde
predominam grupos políticos desprovidos de ética, sem nenhuma consonância com
os interesses da sociedade. O Executivo, com a sua leniência, dá também a sua
contribuição. Há hoje no Brasil um processo de descontrole social que assusta
ao conjunto da sociedade. Na semana passada, na Bahia, a sociedade se tornou
refém de uma greve organizada por um grupo de servidores, policiais militares,
que se arvoraram no direito de atazanar a vida da população, implantando a
cultura do medo e da opressão. Durante dois dias, a capital, Salvador, e a mais
progressista cidade do interior, Feira de Santana, foram palcos de violência,
onde assassinatos de pessoas inocentes e saques em patrimônio de comerciantes
se tornaram regras. A desordem fez surgir um novo tipo de movimento marginal a
que se deu o nome de “saqueador”. A justificativa para esse tipo de ação contra
o patrimônio alheio era a do ditado popular que diz que “A ocasião faz o
ladrão”. Machado de Assis, em Esaú e Jacó
contesta essa máxima na boca de um dos seus personagens, que diz: A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito.
O pior de tudo é que aquele que é responsável pela segurança do cidadão, usa da
chantagem para agredir a cidadania, repudiando a ética e ferindo de morte a
Constituição Federal.
O pior de tudo
é que o diálogo, o instrumento mais importante da democracia, é deixado de lado
pelas partes. Dá-se prioridade ao conflito que gera a desordem com o aumento da
criminalidade, estabelecimentos comerciais arrombados e saqueados, falta de
ônibus nas ruas, escolas e faculdades sem aula, shoppings fechados,
cancelamento de shows artísticos e de partidas de futebol. Os alicerces da
liberdade comunicativa cedem lugar para a beligerância e a barbárie. O pior de
tudo, hoje no Brasil, é que os interesses corporativos têm superados os
interesses da população. Se, como diz Bobbio, o respeito às normas e às
instituições é o primeiro e mais importante passo para a renovação progressiva
da sociedade; que a democracia é, no essencial, um método de governo, um
conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, no
qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados; e que a
democracia se resume no respeito às regras do jogo, representado pelo arcabouço
jurídico que rege as relações, a quem interessa a fragilização dessa ordem
jurídica e as bases do Estado Democrático de Direito? Um dos maiores inimigos
da democracia ainda são os regimes totalitários representados pelas ditaduras
de natureza nazista ou comunista. Esses nós conhecemos e vivemos a experiência
de sua prática e que causou ao mundo milhões de mortes. O grande desafio nosso
é descobrir o inimigo existente em nós e refletirmos a que tipo de sociedade
queremos chegar: se o da civilização ou o da barbárie. Nelson Rodrigues dizia
que vivemos numa época dominada pelos idiotas. De lá para cá, tudo continua
como dantes em nosso país. O que se espera é que esses mentecaptos não nos leve
a destruição. Não nos tire o sonho de uma sociedade justa e solidária. Para
isso, lembremo-nos do ensinamento de Winston Churchill: “A democracia não é uma
prostituta a ser apanhada na rua por um homem armado com metralhadora”.
POST-SCRIPTUM
Platão popozudo.
- O que você carrega aí, embaixo do braço? Parece bem
pesado.
- São as obras completas de Valesca Popozuda. Uma edição
bilíngue em capa dura.
- Valesca o que? De quem se trata? Nunca ouvi falar. É
uma escritora russa?
- Que russa, que nada. Brasileiríssima. Segundo um
professor do Distrito Federal, é uma grande pensadora contemporânea.
- O que foi que ela escreveu? Nunca li.
- Obras fundamentais para a compreensão do mundo atual.
Vou citar apenas algumas: “Pica Mole Style”, “Quero te Dar”, “Hoje eu não Vou
Dar” e “Beijinho no Ombro”. Veja esses versos: “Eu fiquei foi peladinha, na
hora, bateu neurose/ Além do ‘piru’ pequeno, e aí, ele não sobe?”
- Perto disso, o “Lepo-Lepo” parece canção de ninar. E é
assim mesmo, ‘piru’, com i?
- Sim, por isso a minha edição das obras dela é
bilíngue. Muita coisa precisa ser traduzida, não é de fácil compreensão. É como
tentar ler Kierkegaard no original.
- Mas que história é essa de pensadora contemporânea?
- Foi um professor do ensino médio que colocou na prova
uma pergunta sobre uma música de Valesca, e a introduziu, ou melhor dizendo, a
apresentou, como uma grande pensadora contemporânea. Como tudo hoje, o caso
acabou na internet, com muita gente indignada.
- Mas o professor falava sério?
- Ele disse que era apenas uma brincadeira para atrair a
mídia e mostrar que os jornalistas só se interessam por notícias ruins.
- Profundo isso, sem duplo sentido. E como é que se
chama o professor?
- Antônio Kubitschek.
- Parente do presidente?
- Nada. O pai dele também era um pensador contemporâneo
e para homenagear o presidente Juscelino deu o sobrenome ao filho.
- Será que se o filho tivesse nascido agora. Ele teria
dado o nome de Antônio Popozudo?
- Esse é um excelente exemplo de raciocínio lógico de um
clássico discípulo do popozudíssimo. Você tem certeza de que nunca leu nada de
Valesca?
(Publicado no jornal “A Tarde”, sem autoria, Caderno 2, página 3,
edição de segunda-feira, 14/04/2014, Humor, sob o título “Falam por Aí”).
- Publicado no Jornal
da Cidade, Aracaju-SE., edição de domingo, 27 de abril de 2014, Caderno
A-7.
- Postado no Blog Primeira
Mão, em 27 de abril de 2014, às 16h19min:
http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=7421&t=inimigos-da-democracia
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