domingo, 25 de setembro de 2016
Um Cão Andaluz
Opinião Pessoal
Um Cão Andaluz
Clóvis Barbosa
Um
Cão Andaluz foi o filme de estréia de Luis Buñuel que contou
com a colaboração do artista Salvador Dali. Lançado em 1928, é um dos marcos da
cinematografia mundial, cuja imagem que ainda hoje é lembrada como impactante e
pavorosa é o de uma navalha cortando um globo ocular. Lembrei-me desse filme no
dia de ontem ao ler a “autobiografia” de Alice B. Toklas, escrita por Gertrude
Stein, o grande amor de sua vida. É que Gertrude foi viver em Paris nos anos de
1920 e coube a ela a invenção da expressão “geração perdida”, aplicada aos
artistas que viveram naquela década na capital francesa. Confesso que sou emotivo. Quando visitei
recentemente Paris, chorei ao divisar a casa de número 27 da Rue de Fleurus, no complexo Montparnasse.
Era uma noite muita fria e poucas pessoas andavam no local. Eu estava sozinho a
imaginar Picasso (dizem que foi uma descoberta de Stein), Ernest Hemingway,
Matisse, Scott Fitzgerald, Jean Cocteau, Apollinaire e tantos outros entrando
naquela casa. Entrei num pequeno bar e pedi um conhaque. Tomei de uma só golada
e fui embora, deixando a casa para trás. Eu tinha andado muito. Praticamente
caminhei de Alesia até o final de
linha onde tinha uma estação de trem ou terminal de ônibus. Depois voltei para Alesia e fui caminhando por toda a Avenue
Maine.
No retorno, pela mesma avenida, um turbilhão de imagens passou pela minha
cabeça. A minha infância pobre no pobre Bairro da Liberdade, em Salvador de
Bahia, andando em ruas e trechos com nomes curiosos, como Ladeira de Pedra, Curuzu,
Largo da Central, Baixo da Gengibirra, Ladeira do Inferno,
Largo do Tanque, Fim de Linha da Liberdade, etc.
Lembrava-me daquele menino
raquítico, que era chamado de “amarelo empapuçado”, com 13 anos e já
trabalhando para ajudar a família de dez irmãos na época; estudava pela tarde e
trabalhava pela manhã numa loja na Baixa do Sapateiro; aos sábados à tarde
ganhava uns trocados vendendo gibis na porta do cinema Santo Antônio e aos
domingos passava cera em sete escritórios no Ed. Rui Barbosa; a minha alegria
quando passei no exame de admissão do Instituto Normal Isaias Alves; minhas
noites no Instituto Goeth, Teatro Vila Velha, Cine Rio Vermelho, Concha
Acústica do Teatro Castro Alves, programas de auditório na Rádio Sociedade da
Bahia e Rádio Excelsior, no Clube de Cinema da Bahia, carnaval no Clube
Palmeiras da Barra Avenida; tentativas, muitas vezes frustradas, de furar o
bloqueio do Fantoches, Iate Clube e Clube Espanhol nos bailes de carnaval; e
Aracaju quando aqui cheguei com as suas marinetes e kombis fazendo o transporte
coletivo; os meus primeiros amigos, a Jovreu, Editora Jovens Reunidos, o Clube
de Cinema de Sergipe, a Faculdade de Direito, a advocacia, a Universidade
Federal de Sergipe, a Prefeitura de Aracaju, o Governo do Estado, lugares onde
deixei a minha energia pela inteireza da minha dedicação; o saudoso Cacique chá; o cachorro quente de Seu João, vizinho à Catedral; a moqueca
de camarão do Bairro Soledade; o churrasco de Carioca na Rua Porto Alegre com Pernambuco, onde cada pedaço de
carne ou de osso era disputado com os
olhares tristes dos cães que rodeavam a pequena churrasqueira; a sopa
mão de vaca de Luis Ponta de Ouro, no
Bairro Santo Antônio.
Eram recordações de dias tristes
e felizes. Mas é isso: a felicidade é sempre amarga, como o sol é ilusório.
Releio Kafka. A Metamorfose. Pela
décima vez? Não sei se mais ou menos. Não quero saber do conceito que Theodor
Adorno, da Escola de Frankfurt, de
Georg Lukács e de Freud sobre a obra kafkaniana. A Metamorfose e O Veredicto
eu estraçalho em um dia. Invado o mundo de Georg Bende (Mann) e Gregor Samsa.
Pronto! Falei em contos, lá vêm as lembranças: Ezequiel Monteiro. Tudo bem, não
precisam ficar nervosos. Eu sei que Luiz Eduardo Costa é brilhante e tantos e
tantos outros que desfilam com as suas penas nos jornais de Sergipe. Mas, por favor,
não confundam as coisas. Eu sei que não sou crítico literário, mas tenho bom
senso. Certa vez tive uma discussão com um professor de teoria literária. Lá
pras tantas eu achei de defender a tese de que Chico Buarque e Vinícius de
Moraes eram poetas com “p” maiúsculo e que nada ficavam a dever aos grandes
poetas brasileiros. Pronto, o mundo desabou sobre mim e a minha ignorância.
Isso tem uns quinze anos aproximadamente. Pois bem, hoje, a intelligentsia brasileira já reconhece
Vinícius como um grande poeta. Aliás, quando vou ao Rio de Janeiro, quem quiser
me encontrar pode ir na Toca do Vinícius,
na Rua Vinícius de Moraes, em Ipanema. Ali eu recebo aulas de Teoria Literária
de um professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, que por prazer,
toca a Toca. Um dia eu disse a um
colega que se diz meu ex-amigo: meu irmão, você já viu o texto de Ezequiel
Monteiro no Jornal da Cidade? Esse cara é um louco, ele é kafkaniano.
E continuava enfático defendendo
o talento de Ezequiel. Não fui feliz na minha abordagem. Não tinha com quem
discutir. Peguei uns quinze artigos de Ezequiel e guardei. Na próxima viagem ao
Rio vou levá-los para discutir com meu amigo professor de teoria literária. E o
pior é que estou com saudade do seu texto, principalmente dos seus gostosos
contos, cheios de mágoas pelos amores perdidos ou impossíveis que faz-nos
lembrar a poesia de Florbela Espanca: “Eu
sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou a Irmã
do Sonho, e desta sorte sou a crucificada, a dolorida (...). Sou aquela que
passa e ninguém vê, sou a que chamam triste sem o ser, sou a que chora sem
saber porquê. Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo
pra me ver e que nunca na vida me encontrou”. Jean Vigo, cineasta francês e
de curta carreira, ao se reportar sobre a imagem contida no filme de Buñuel,
afirmou que “essa imagem é mais pavorosa do que o espetáculo de uma nuvem
tapando uma lua cheia”. Um Cão Andaluz,
também é retocado por uma coleção de imagens sem qualquer conexão, impactantes
e contraditórias. O que dizer de um cavalo morto em um piano? o que falar de
formigas saindo da mão de alguém? Bem, a verdade é que este filme é considerado
revolucionário na história do cinema, pois rompe com
toda a lógica e linearidade narrativa existente nos filmes daquela época, sendo
uma combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente.
Tento, aqui, hoje, fazer uma viagem ao surrealismo. Mas, o da imagem real
combinada com as recordações.
(Ensaio
republicado a pedido. Foi publicado no Jornal da Cidade, edição
de sábado, 30 de abril de 2011, Caderno B, pág. 06).
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, 25 de maio de
2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira
Mão, domingo, 25 de maio de 2014, as 18h50min, sítio:
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