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terça-feira, 6 de setembro de 2016

O amor nos tempos do cólera

Opinião

O amor nos tempos do cólera
Clóvis Barbosa
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No final de 2006 o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez reuniu um grupo de amigos íntimos para um almoço. Ali, ele comunicou que não mais desejava escrever e que encerrava a sua carreira de escritor. Era a morte de um dos mais talentosos escritores da América latina, autor do clássico “Cem Anos de Solidão”. Sim, porque um escritor morre quando deixa de escrever. Naquele dia ele começava a se despedir da vida. Mas foi agora, no dia 17 de abril deste ano, que o coração de El Gabo parou definitivamente. Mas ele vai continuar vivo. Pelo menos enquanto houver alguém que goste de boa leitura. A sua obra-prima “Cem Anos de Solidão” vendeu mais de 45 milhões de exemplares. É um dos livros mais importantes da literatura de língua espanhola, ao lado de “Dom Quixote”, de Miguel Cervantes. Mas o velho El Gabo também escreveu outras obras importantes: “A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada”, “O outono do patriarca”, “Crônica de uma morte anunciada”, “Memórias de minhas putas tristes”, “Do amor e outros demônios”, “O amor nos tempos do cólera”, dentre outras. Ele foi o primeiro colombiano e o quarto latino-americano a receber o Prêmio Nobel de Literatura, o que se deu em 1982 pelo conjunto da sua obra. Durante a premiação ele agradeceu com um discurso denominado “A solidão na América Latina”. Em entrevista ao New York Times, em 1988, ele disse: Foi a época em que fui quase completamente feliz. Gostaria que minha vida tivesse sido como naqueles anos em que escrevi ‘O amor nos tempos do cólera’”. E acrescentou, ao falar sobre as suas obras: “Todas essas coisas para mim são parte da nostalgia. Nostalgia é uma fonte incrível para inspiração literária, para inspiração poética”. Em 1999 ele passou a conviver com um câncer linfático que culminou nos últimos anos de vida em uma demência senil. Na minha posse como Conselheiro do Tribunal de Contas, em 2009, fui buscar inspiração num tema bastante utilizado por Márquez em suas obras: o amor.
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O amor foi a forma que encontrei para registrar minha gratidão à vida e a todos aqueles que conviveram comigo. E dizia, então, que nem a divindade arriscaria impor rédeas ao amor. Intemporal, ele, incessantemente, comina derrotas acachapantes à corrosão e à oxidação com as quais a rotina mostra-se capaz de sobrepujar qualquer outro sentimento. Há, por exemplo, um provérbio popular que enuncia: “a esperança é a última que morre”. Certamente, embora seja a derradeira a morrer, um dia ela efetivamente se dissipará. Com o amor, porém, isso não sucede. Ele, e tão-somente ele, é sempiterno. A morte, que nos extingue enquanto humanos, sucumbe diante do amor que, em nós, é divino e supremo. Para o amor, a propósito, qualquer adjetivação seria pífia. Quem sabe até contraproducente. Daí, garantir Nietzsche que “o que fazemos por amor, sempre se consuma além do bem e do mal”. Daí, ademais, ter sido oportuno o título atribuído pelo sumo pontífice, Joseph , à sua primeira encíclica, “Deus caritas est”: “Deus é amor”. Imortal, o amor sobressai-se pela constante marcha. Nunca recua. Nunca desanda. Avança permanentemente. Duas personagens estão aptas a demonstrar a seriedade de tal garantia. A primeira, obra do gênio Gabriel García Márquez: Florentino Ariza; a segunda – Aristófanes – extraída da poesia que Platão, subliminarmente, fez respingar em “o banquete”, seu mais popular ensaio filosófico. Florentino Ariza amou Fermina Daza. Aristófanes, ao proferir o quarto discurso de “o banquete”, provou que o amor é o que explica a busca pela completude, a busca pela nossa outra metade. Por que o paralelo entre Aristófanes e Florentino Ariza? Ora, a história de Florentino Ariza acha-se no romance “o amor nos tempos do cólera”. O enredo desenrola-se na cidade de Cartagena (Colômbia). Ali, ele descobriu a adorável Fermina Daza, que lhe entorpecia as idéias. Quis o destino, contudo, afastá-los.
Conta García Márquez que o pai de Fermina Daza (Lorenzo Daza), ao descobrir que sua jovem filha enamorara-se de um telegrafista, promoveu a separação dos dois a “fórceps”. O suplício prolongar-se-ia por cerca de cinquenta e três anos. Quis o destino afastá-los, como já afirmado. Realmente os afastou. Nesse ínterim, Fermina Daza findou por ser desposada por Juvenal Urbino, conceituado médico que erradicara a pandemia de cólera, moléstia que, à época, dizimava a Colômbia. Mas o amor reaproximou Florentino Ariza e Fermina Daza. Depois de mais de meio século, eis que ela, curtindo o luto do falecido marido, reencontra o antigo pretendente. Começava, portanto, a ser redesenhado o intenso amor que ambos houveram planejado. O clímax, no entanto, aflui exatamente da conclusão à qual Florentino Ariza chega, após ter nos braços Fermina Daza: há limites para a morte; não há limites para a vida. Em “o banquete”, Aristófanes assegura que, no princípio, os homens eram como que duplicados. Originados ou da lua, ou do sol, ou da terra, havia seres duplamente masculinos, havia aqueles que eram duplamente femininos e, finalmente, havia os que eram compostos por uma parte masculina e por outra feminina. A estes últimos, Aristófanes denominou andróginos. Sucede que os homens, nessa performance, eram tão violentos que, um dia, resolveram subir aos céus para pelejar contra os deuses. Mas perderam a batalha. Como castigo pelo atrevimento, Zeus os partiu, fazendo com que fossem separadas em duas partes. O homem, portanto, na compleição consoante a qual é hoje concebido (ou puramente masculino, ou puramente feminino), vive a vagar, procurando seu outro pedaço, do qual foi afastado pela divindade, assim como Lorenzo Daza separou Fermina de Florentino Ariza. O amor, como se constata, autoriza-nos a enxergar o mundo pelos olhos de Florentino Ariza ou de Aristófanes. Saber amar permite-nos revestir com aço a ossatura.
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A simbologia que encerrava aquela posse (amor, gratidão, grito de liberdade), se consolidaria com o discurso de que quem sedimenta o poder (o verdadeiro poder) é a voz humana que se confunde com as asas dos pássaros. Conseguir ser ouvido atribui tanta ou mais liberdade do que ter o dom de voar. Hoje, a geração – que uma corja de assassinos tentou calar com baionetas – faz ecoar seu grito de liberdade, como quem sobrevoa muralhas. Não há vida num governo de baionetas. E não há vida por uma razão: as massas não amam quem ascendeu, não porque teve asas, mas porque as pisoteou. A liberdade que o povo clama é aquela que se congrega à profecia que o cineasta judeu Ari Folman externou em “Valsa com Bashir”: ninguém escapa de si ou de sua geração. A geração das baionetas morreu. E, com o seu sepultamento, abriram-se as portas para que a minha geração, a geração que lutou pela liberdade, pudesse voar.  Por isso, concluía o discurso que, embora fosse eu quem estava tomando assento naquela corte de contas, quem de fato se empossava no cargo de conselheiro era a geração da liberdade que já está no Olimpo: Antônio Jacinto Filho (advogado), Carivaldo Lima (ferroviário), Clóvis Marques (gráfico baiano), Gervásio, o Careca (jornaleiro), Gilberto Burguesia (servidor público), Jackson Sá Figueiredo (advogado), João Cardoso Nascimento Jr. (professor e ex-reitor da UFS), João Santana Sobrinho (advogado), José Rosa de Oliveira Neto (jornalista e advogado), Mário Jorge Vieira (poeta), Osman Hora Fontes (procurador da república), Paulo Barbosa (jornalista), Pedro Hilário (ferroviário), Professor Diomedes, Silvério Leite Fontes (professor), Tonico Alfaiate, Víctor Nunes Leal (ministro do STF, cassado pela ditadura) e tantos outros.
Essa foi a geração que me credenciou a amar intensamente a liberdade, daí repetir aqui Dante, em “a divina comédia: “cuida da liberdade com a sabedoria de quem sabe que a liberdade é mais importante do que a própria vida”.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE., edição de domingo, 11 de maio de 2014, Caderno A-7.
- Postada no Blog “Primeira Mão”, em 11 de maio de 2014, domingo, às 11h51min, site:



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