quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017
Estadismo e Anarquia
Opinião Pessoal
Estadismo e
Anarquia
Clóvis Barbosa
Em junho de 2013 teve início no Brasil uma
série de manifestações populares. O foco inicial de reivindicação era a redução
das tarifas do transporte coletivo, mas se ampliou para a melhoria dos serviços
públicos e no combate à corrupção, dentre outros pleitos. A rede social foi o
instrumento usado para a eclosão dessa reunião de milhares de pessoas em cada
cidade do país. Os sindicatos e os políticos, responsáveis por métodos
ultrapassados de mobilização, ficaram de queixo caído. Por mais que se
procurasse uma liderança, um grupo, ou mesmo um referencial orgânico, nada era
encontrado. Sociólogos, políticos, professores, articulistas, todos tentavam
explicar o fenômeno, alguns criticando pela ausência de lideranças, outros
elogiando pelo novo tempo que surgia com a sociedade participando de forma
efetiva da vida brasileira. Todos eram chamados à responsabilidade. Os
sindicatos e os partidos políticos foram rejeitados de participação nas
manifestações, pois, na sua maioria, são tidos como desprovidos de ética,
responsáveis pelo descontrole social e sem nenhuma consonância com os
interesses da sociedade. Tais manifestações espontâneas do povo brasileiro
que ocorreram naquela ocasião em várias cidades brasileiras levaram-nos a uma
reflexão profunda. Acostumamos a pensar que somente os formadores de opinião
são os donos da verdade histórica, isto por serem os detentores do
conhecimento. O povo seria um mero espectador, que não pensa e não opina. Só
teria deveres, principalmente o de trabalhar para manter os privilégios desse
grupo que se apoderou do sistema. A questão do aumento das tarifas do
transporte coletivo não foi a razão principal para sua eclosão. O Brasil é um
país cheio de contradições e de ilogicidade. Há um pacto nas elites, aí
incluídos os novos donatários do poder, que apenas visam a manutenção de seus privilégios. Só enxergam o
próprio umbigo, pois, para eles, o Estado não é o instrumento para o
estabelecimento do bem comum.
Essa indignação social espontânea, que
eclodiu nessas manifestações, foi gerada por aqueles que estão cansados de
serem objeto da história e de assistirem passivamente a impunidade que corrói o
tecido social, os gastos astronômicos com obras faraônicas, os empréstimos
milionários a países em situação de risco, a corrupção, a roubalheira, a
violência, a intolerância, o péssimo serviço de transporte público, as obras
superfaturadas, a leniência governamental em relação a gestão pública, as
concessões inexplicáveis, a saúde e a educação precárias, o ócio remunerado das
greves no serviço público sem respeito à cidadania, a ruim prestação do serviço
público e a falta de compromisso da classe política com a ética e o respeito ao
mandato que lhe foi outorgado. O recado foi claro às elites donatárias do
poder: o povo está cansado de ser enganado. Não aceita mais o discurso do
futuro, que é, como bem diz Camus, “a única espécie de propriedade que os
senhores concedem de bom grado aos escravos”. Mas os manifestantes se quedaram
diante da invasão do movimento por parte de setores que justamente eles queriam
afastados. Depois, vieram os grupos anárquicos, baderneiros, para realizar todo
tipo de violência contra o patrimônio público e privado. O país passou a viver
com uma nova realidade. Tornavam-se corriqueiras as práticas de atos violentos.
O debate, desses grupos, se materializava nos coquetéis molotov, incêndios de
veículos, bombas de fragmentação, promessa de execução de policiais militares e
ameaças à imprensa. Enfim, o descalabro tomou conta de vários setores da nossa
vida pública. A morte de um cinegrafista de televisão foi o estopim para que o
aparelho policial do Estado começasse a agir. Um processo de investigação
profunda foi instaurado com a participação do setor de inteligência; policiais
militares infiltraram-se nos movimentos ganhando a confiança dos seus líderes.
A casa caiu e 26 ativistas criminosos tiveram as suas prisões preventivas
decretadas por um juiz do Rio de Janeiro.
Para surpresa de todos que esperavam os
maiores encômios ao trabalho investigativo, eis que surgem juristas,
instituições respeitáveis, partidos políticos e tudo que é político demagogo a condenar
a ação do juiz que decretou as prisões. Um professor de direito, ironizando,
chegou a afirmar que se tratava de uma “versão jabuticaba do filme Mirority Report, em que as pessoas eram
presas antes do crime – o sistema detectava o crime antes de ele ser cometido.
Só que o filme, com Tom Cruise, era ficção, mas os presos de forma antecipada
(no Brasil) são reais”. E todos eles diziam que houve flagrante arbitrariedade
na prisão cautelar dos ativistas, uma vez que o direito de manifestação e
reunião encontra-se expressamente previsto na Constituição, no artigo 5º,
inciso XVI. Mas, à proporção que as provas eram apresentadas pela mídia, como
as gravações das conversas entre os acusados, depoimentos testemunhais e até a
estrutura montada para o cometimento de ilícitos, todos se calaram. Ora, todos
nós sabemos da previsão constitucional sobre o direito de manifestação, mas por
que não ser honesto e reproduzir o dispositivo na sua inteireza? Veja o que diz
a norma: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente”. Um ex-namorado de uma das líderes do movimento
descreveu para a Folha de São Paulo, com riqueza de detalhes, como atuavam os
grupos e seus mentores intelectuais, cujos integrantes, na maioria, eram
professores das redes estadual e municipal, que disseminavam a filosofia
anarquista, incentivando depredações a patrimônio, enfrentamento a policiais,
pichações, utilização de bombas molotov e resistência nas ocupações de áreas
urbanas. O processo investigativo que culminou nas prisões foi corretíssimo,
pois o seu objetivo foi evitar o cometimento do crime de dano, da incitação ao
crime e da associação criminosa.
Mas, por detrás dos ativistas, estão quatro
grupos: a OATL (Organização Anarquista Terra e Liberdade), que reúne, dentre
outras pessoas, professores da rede estadual e municipal; o MEPR (Movimento
Estudantil Popular Revolucionário), de ideologia maoista, que prega a luta de
classes; a FIST (Frente Internacionalista Sem Teto), que luta pelas ocupações
em terrenos urbanos; e a UV (Unidade Vermelha), que reúne militantes de
esquerda. Tudo bem, estamos numa democracia! Mas, há a necessidade desses
grupos respeitarem as regras do jogo democrático. Não interessa ao povo brasileiro a instauração do caos. Sabemos que
a democracia não é um regime acabado. A tensão é permanente, pois todos querem
manter os seus interesses, mas não pode ser a qualquer custo. Não se chegará a
lugar nenhum sem o estabelecimento de critérios éticos. A decência é que tem
que ser a regra, não a corrupção e a desordem. Não se pode deixar que a crise
do processo democrático se aprofunde, porque a continuar esse desequilíbrio,
todos vão perder. Para o bem de todos, é preciso que haja preponderância da
“razão dialógica”, de que nos fala Jurgen Habermas, na sua obra Modernidade versus Pós-Modernidade. Para
ele, o
último grande racionalista, a razão
crítica de Adorno cede campo para a “razão dialógica”, onde a linguagem e a
argumentação preponderam. Mas não basta a intenção. As armas devem ser deixadas
em casa. O argumento é o que deve prevalecer, enfim, a razão dialógica. Dizia
Winston Churchill, premier inglês,
que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido
tentadas de tempos em tempos.
Pois bem, esses grupos anarquistas têm como
farol Mikhail Aleksandrovitch Bakunin, teórico político russo, um dos expoentes
do anarquismo do século XIX, autor de Deus
e o Estado, Estadismo e Anarquia. Ele não acreditava em constituições nem
em leis, pois, como afirmava, “a mais perfeita constituição não conseguiria
satisfazer-me. Necessitamos de algo diferente: inspiração, vida, um mundo sem
leis, portanto livre”. Para Bakunin, a paixão pela destruição é uma paixão
criativa e descarta a Divindade ao apregoar que se Deus realmente existisse,
seria necessário aboli-lo. O bom dele é a sua sinceridade: “Se você pegar no mais ardente dos revolucionários, e der poder
absoluto a ele, dentro de um ano ele será pior do que o próprio czar.” Acho que os ativistas não sabem que
Bakunin morreu, com suas idéias, em 1876.
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Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, 3 de agosto de
2014, Caderno A-7.
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Postado no Blog Primeira Mão no dia 3
de agosto de 2014, domingo, às 13h20min, conforme sítio:
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