terça-feira, 26 de junho de 2018
O tambor
Opinião pessoal
O tambor
Clóvis Barbosa
Não estou nem aí para o que a direita fala do alemão Günter Grass,
falecido recentemente, e autor do romance “O tambor”. O que me interessa em
Grass é o seu personagem Oskar Matzerath. A tese defendida por ele é que Adolf
Hitler não foi o único culpado da aventura do Estado alemão na Segunda Guerra
Mundial, quando onze milhões de pessoas entre eslavos, poloneses, ciganos, homossexuais,
deficientes físicos e mentais, judeus, testemunhas de Jeová, foram assassinadas,
num dos episódios históricos que mais envergonham a humanidade. As sementes
plantadas por Hitler só atingiram o ápice graças ao apoio incondicional da
sociedade alemã, dos seus cidadãos. Se olharmos os grandes acontecimentos
históricos veremos que o povo, na sua maioria e estupidamente, sempre esteve
apoiando o lado errado. Foi assim nas ditaduras de Salazar, em Portugal, de
Franco, na Espanha, de Mussolini, na Itália, nas da América Latina, da África e
dos países de regime totalitário. No Brasil, tanto os regimes de exceção de
Vargas, nas décadas de 1930/1940, como o governo militar iniciado em 1964, só
sobreviveram pelo apoio civil que tiveram.
Em “Amnésia, repressões, mitos: como se conta o passado após uma
ditadura”, artigo do professor Bruno Groppo constante no livro “1964: 50 anos
depois, a ditadura em debate” (Editora Edise, Aracaju, 2015), consta que “Uma
das questões mais difíceis de enfrentar após o fim de uma ditadura é a do
consenso de que esse regime se beneficiava no seio da população, em vez de
discuti-lo abertamente. Prefere-se, geralmente, esquivar-se dele, negá-lo ou
reformulá-lo. A dificuldade vem do fato de que as ditaduras, ainda que sejam
por definição sistemas fundados sob a violência, não podem se manter por muito
tempo no poder somente por esse meio, e têm necessidade também de um certo
consenso. Até porque elas pretendem sempre governar em nome de um conjunto mais
vasto (o povo, a nação, uma classe) e não podem renunciar a essa ficção, destinada a legitimá-las. O consenso que elas
obtêm pode ir da adesão entusiasta à aceitação passiva, passando por uma larga
gama de atitudes intermediárias”.
A tese de Günter Grass e de seu personagem Oskar Matzerath não é
novidade. É justamente o óbvio que preferimos ignorar. Mas, por ter dito isso,
o romance “O tambor” causou furor na Alemanha quando lançado em 1959. Tal o
incômodo, que o livro foi queimado em várias cidades alemãs. No Brasil, muitos
que se serviram da ditadura e que se destacaram na sua preservação, ocupando os
mais importantes cargos, foram servis escudeiros de um regime que torturava e
assassinava cidadãos nos seus porões. Hoje, passam a imagem de democratas
extremados, que nada teriam a ver com a ditadura. Têm sim! A ditadura militar
só sobreviveu por 21 anos graças ao apoio e às benesses recebidos por esse grupo de políticos e outros membros da
sociedade civil que assinaram embaixo de todas as atrocidades praticadas contra
a cidadania e a liberdade de expressão. Essas pessoas nunca tiveram e ainda não
têm compromisso com o processo democrático. Para elas, o Estado não é
instrumento de transformação social, mas de realização de seus próprios
objetivos pessoais. Não interessa a elas que haja fome, miséria e injustiça.
São pessoas que nunca se extasiaram diante de um crepúsculo, ou como diz Ingenieros, “nem tampouco gostam de
passear com Dante, rir com Moliére, tremer com Shakespeare ou assombrar com
Wagner; nem mesmo emudecem diante de David, da Ceia ou do Partenon”. Essas
pessoas estão aí “botando pra quebrar” e se servindo de outra alcateia, aquela
formada pelo homem que passa a vida vivendo em rebanho, pensando com a cabeça
dos outros e incapaz de formar juízo próprio. Pois bem, José Saramago, o grande escritor
lusitano, no seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”, não poderia ter sido mais
feliz na escolha da epígrafe de sua obra: “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Ele nos apresenta uma narrativa
emblemática: projeta o leitor para uma comunidade em que os habitantes vão,
paulatinamente, perdendo a visão, numa autêntica “viagem ao inferno”, no dizer do compositor, violonista, crítico
literário e musical Arthur Nestrovski.
No
inferno, contudo, todos os personagens se encontram e se descobrem, numa verdadeira
desmistificação da hipocrisia. Não adianta: quem é ruim, será ruim, quem é bom,
será bom, se é que este vai para o inferno. Aliás, a leitura míope dessa
realidade encontra seu arcabouço traçado pela Bíblia. É só ver a Segunda Carta
aos Coríntios, capítulo 11, versículo 14, quando o apóstolo Paulo nos ensina
que não deveríamos nos impressionar com falsos enviados do Messias, ao
ressaltar que a existência desse tipo de gente “não é de admirar, pois até
Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz”. Quem acompanhou as
manifestações ocorridas recentemente em várias capitais brasileiras teve a
oportunidade de assistir o triunfo da hipocrisia, enquanto arte de amordaçar a
dignidade. Evidente que naquela multidão havia pessoas de boa-fé, que lutavam
contra a corrupção, a favor da melhoria da saúde e da educação públicas. Ao
mesmo tempo, havia aqueles, os “enviados do Messias”, bradando como xerifes da
sociedade, eleitos ninguém sabe por quem, acompanhados de uma turba de agiotas,
filhos de corruptos, aposentados por invalidez do serviço público no pleno
exercício de atividades laborais, enfim, uma multidão de gente que se merece.
Nem criativos são. Um grupo criou o slogan
“Basta”, outro o “Fora”. Não sabem (ou fingem não saber) que estas foram as
senhas utilizadas pelos militares para instalação da ditadura no país. Aliás, a
história é contada por Carlos Heitor Cony (Folha de São Paulo, Terça,
14.04.2015, p. A-2-Opinião): “Na manifestação do último domingo (12), em São
Paulo, vi em algumas faixas, verdes e amarelas, amarradas na testa de duas
jovens, duas palavras terríveis: Basta! E Fora! Por sinal, dois títulos dos
editoriais do ‘Correio da Manhã’ em 1964, que foram considerados pelos
historiadores, a senha para a derrubada do presidente João Goulart e o golpe
militar daquele ano. Golpe logo transformado numa ditadura que durou 21 anos,
que, além de sufocar a liberdade de todo um povo, produziu mortes e torturas
violentas, desaparecimentos até hoje não explicados, tutela sobre a justiça,
censura contra a imprensa e as artes em geral”.
Não
sei se a humanidade faliu, mas como dizia Woody Allen, mais do que em qualquer
época, ela está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O
outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber
escolher. Eu tenho insistido muito em trazer para reflexão nesses meus ensaios
temas ligados à filosofia, ética, política, sociologia e, sobretudo, sobre o
comportamento humano e sua terrível falta de memória e de conhecimento da nossa
história. Repito Oskar Matzerath em O
tambor: “Até o papel de parede tem uma memória melhor que a dos seres
humanos”.
Post Scriptum
Duas grandes
mulheres
Duas
grandes amigas
Segunda-feira, 13, mês de abril. O dia foi terrível
para mim. Logo cedo acordava com uma triste notícia: o falecimento de uma
amiga-irmã, Maria Helena Domingues Garcia, minha querida comadre Leninha. Uma
amizade de mais de trinta anos. Acompanhei todas as suas vitórias e ela as
minhas. As alegrias de seu concurso para professora do Departamento de Medicina
da UFS, a sua posse na Academia Sergipana de Medicina, as noites de poesia e música,
o amor dedicado aos meus filhos. Era uma pessoa de uma solidariedade espantosa,
com quem se podia contar nas horas difíceis. Mulher extraordinária, esposa
apaixonada, mãe dedicada, irmã-mãe e pai, filha saudosa de pais queridos.Nela
se fazia verdade o que Nietzsche dizia: “o que fazemos por amor, sempre se
consuma além do bem e do mal”. Leninha era uma mulher inteira no que fazia e
tinha no amor a grande arma em todas as relações que mantinha. Era grande até
nas divergências. A morte que lhe extinguiu enquanto humana, com certeza
sucumbiu diante do amor que, nela, era divino e supremo.Pessoana como eu,
recitava os poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos com uma beleza que
emocionava. Este poema, que ela fez para a mãe, poderia ter sido feito para ela
própria: “Esse amor em valsa é teu! / Devolve o passado qual flor / Que, de
repente, volta a brotar, te devolvendo a vida, / Pois se és poesia, jamais
morreste, querida.”
O dia me reservava nova surpresa. Na madrugada,
ainda estava no velório de Leninha, acompanhando o sofrimento do seu esposo
Eduardo e de seus filhos Eduardinho e Patrícia. Repentinamente, chega ao
velatório um novo caixão. As luzes se acendem e o letreiro começa a anunciar o
nome do falecido: Juçara Fernandes Leal de Melo, a quem eu conheci na velha
Faculdade de Direito da Rua da Frente, retratada acima. Uma dor fina toma conta
de mim. Levanto-me e vou ao encontro do caixão e de dois jovens que o acompanhavam.
Era um seu sobrinho e a namorada. Olho Juçara e vejo seus cabelos brancos.
Toco-os e um filme começa a passar em minha mente. Juçara, minha professora de
Direito Penal, minha amiga de muitas viagens pelo Brasil afora em busca de
experiências em complexos penitenciários, como os de Itamaracá, em Pernambuco,
Pedra Preta, em Salvador e tantos outros do nordeste brasileiro. Nunca me
esqueço dos seus conselhos e do cuidado que ela tinha comigo nos anos de chumbo
da ditadura militar. Achava que eu poderia cair a qualquer momento nas garras
da repressão. “Você precisa se formar e se dedicar à sua profissão. Deixe
momentaneamente essa vida clandestina de comunista”. Comigo, ela conheceu Ivan,
futuro marido e pai de seus filhos. Foi a vez de eu cobrar dela o devido
cuidado, mas terminei servindo de cupido para aquele romance que se iniciava na
capital baiana. Interessante é a vida. Vinícius tinha razão... a vida não é
brincadeira. A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela
vida. Pegava em seus cabelos e me perguntava: Por que eu nunca mais tinha visto
Juçara? 20, 30 anos? Adeus Leninha! Adeus Juçara! Adeus meninas! Obrigado por
tudo!
- Publicado no Jornal da
Cidade, Aracaju-SE, edição de 26/04/2015, Caderno A-7.
- Postada no Blog Primeira
Mão em 26/04/2015, às 18h46min, sítio:
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