domingo, 2 de setembro de 2018
Chão de Giz
Opinião pessoal
Chão de Giz
Clóvis Barbosa
Ninguém
quer brigar com segmentos de trabalhadores ou com corporações. Quando a escola
pública não funciona, o culpado é sempre o prefeito, o governador ou o
presidente, como se estes fossem os responsáveis pelo honroso múnus de
lecionar. Quando o médico não trabalha, idem, idem. Eu adoro a presepada
de alguns jornalistas ou radialistas ao escreverem ou falarem que o servidor
não tem culpa de nada na péssima prestação do serviço público, principalmente
nas áreas da educação, saúde e segurança pública. A responsabilidade é sempre
dos gestores. E se enveredarmos no campo da greve, aí é que a coisa se
complica. Então, saio dessa minha solidão e espalho coisas sobre um chão de giz,
lembrando-me dos velhos tempos de grevista. Duas comissões eram imprescindíveis
no movimento paredista daquela época: imprensa e propaganda e a de fundo de
greve. A primeira tinha o papel de angariar apoio da sociedade, seja através da
mídia ou na conversa direta com o povo em locais muito frequentados. Era
preciso sensibilizar e conquistar o apoio popular para a pauta de
reivindicações. A segunda também era importante, pois usava de criatividade
para arrecadar recursos para pagamento das despesas do movimento, inclusive com
parte dos salários dos empregados de menor poder aquisitivo. Valia tudo, desde
a venda de bugigangas numa feira improvisada até correr o pires em apresentações
musicais e teatrais. Na época, fazia-se greve respeitando os direitos dos
cidadãos e prevenindo-se contra o não recebimento dos salários, que garantiam a
nossa sobrevivência. Durante a ditadura militar e no período de
redemocratização participei de greve como bancário, estudante e servidor
público. Repito! Todas elas revestidas da consciência de não causar prejuízos à
população. Na de bancário, por exemplo, o cidadão era preparado adredemente da
ocorrência da paralisação e dos motivos daquela pauta de reivindicações, sempre
apontando a insensibilidade dos banqueiros sobre os parcos valores que eram
pagos aos trabalhadores, principalmente se comparados aos lucros gigantescos
auferidos a cada semestre. Muitas vezes retornávamos ao trabalho nas mesmas ou
em piores condições. Temíamos o desemprego. Como estudante, pasmem, respondi a
um processo porque reivindicava a construção da casa e do restaurante
universitário. Tudo era feito sem devaneios tolos a nos torturar.
Hoje é
diferente. Estamos vivendo um momento perigoso, em que predomina a visão
equivocada de liberdade e democracia. O princípio de que o meu direito termina
quando o do outro começa inexiste. As fotografias são recortadas em jornais de
folhas amiúde. A construção de uma sociedade democrática e socialmente crítica
é impedida por comportamentos eminentemente autoritários, que desconsideram os
direitos alheios. O instituto da greve, conquista das mais valiosas para a
classe trabalhadora, torna-se um estorvo, cujas consequências poderão ser
insanáveis para o avanço do processo democrático. Todos ainda se lembram das
greves do ABC em São Paulo, na década de 1970, onde sindicatos mais fortes
iniciaram uma campanha por melhoria salarial, redundando numa das piores crises
econômicas do país, causando a chamada estagflação, pois o sistema como um todo
não pôde absorver os reajustes que eram dados pelas grandes montadoras. Registre-se
que esses aumentos salariais eram sempre repassados para o consumidor. É
preciso que se entenda que, ao final, a conta dos reajustes é paga pelo
contribuinte, na esfera pública, e pelo consumidor na esfera privada. Por outro
lado, não foi sem razão o tratamento rigoroso dado pela Lei de Responsabilidade
Fiscal ao limitar os gastos com pessoal no serviço público, evitando
extravagâncias praticadas por gestores irresponsáveis. É preciso sempre repetir
que o Estado não pertence a grupos de pessoas, mas ao conjunto da sociedade. O
que leva, por exemplo, um segmento da mais alta importância para o
desenvolvimento de uma nação se quedar diante de um discurso nem sempre
verdadeiro de suas lideranças? Por que renunciam ao relevante papel de
transformador social para acompanhar, como uma boiada, a mentira e o logro?
Qual o motivo de se quedar inerte quando aqueles que mais precisam são jogados
num pano de guardar confetes? Já se disse que a banalidade do mal se instala a
partir da ausência da razão, ou seja, a partir da falta de atitude crítica.
Marilena Chaui, biscoito fino da inteligência nacional, nos ensina que a
palavra crítica vem do grego e possui três sentidos: 1) capacidade para julgar,
discernir e decidir corretamente; 2) exame racional de todas as coisas, sem
preconceito e sem prejulgamento; e 3) atividade de examinar e avaliar
detalhadamente uma ideia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra
artística ou científica.
Seriam
eles capazes de disparar balas de canhão? Não sei, mas acho que é inútil, pois,
se olhar bem, existe um grão vizir que tudo vê e finge-se adormecido, como uma
violeta velha sem um colibri. Esta reflexão, portanto, antes de ser um libelo
contra o direito de greve é, sobretudo, um chamar à responsabilidade pessoas
que pensam estar acima da lei e que podem postergar os direitos de outrem.
Nesse sentido, importante referir-se à Lei nº 7.783/89, que dispõe sobre o
exercício do direito de greve, define as atividades essenciais e regula o
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. O direito de greve é
assegurado ao trabalhador, a quem deve decidir sobre a oportunidade de
exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Entretanto,
sempre respeitando a forma estabelecida em lei. Embora os grevistas possuam o
direito de empregar todos os meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar
os trabalhadores a aderirem à greve, em nenhuma hipótese os meios adotados
poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem.
Não poderão, também, impedir o acesso ao trabalho e nem causar ameaça ou dano à
propriedade ou pessoa. Não se deve olvidar o conhecimento que se deve ter dos
serviços essenciais, que são tratamento e abastecimento de água; produção e
distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e
hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo;
telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas,
equipamentos e materiais nucleares;
processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de
tráfego aéreo; e compensação bancária. A lei impõe que, nesses casos, os sindicatos,
os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a
garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. O respeito às regras é o
grande condutor da democracia. E se todos assim pensarem, quem sabe, não vai
haver motivo de se usar camisa de força e a de vênus de forma fugaz. Não vai
haver necessidade de se gozar com apenas um cigarro, ou mesmo beijar gastando o
batom. Portanto, atitude crítica é importante. Não se deixe levar por discursos
preconcebidos. Inteire-se do que está sendo dito. Avalie o que está em debate e
tire suas conclusões.
Sabe aquela
sensação que nos faz crer que tal pessoa é boa, sem sê-lo? Pois bem, a
estrutura psicanalítica dessa leitura míope da realidade encontra seu arcabouço
traçado pela bíblia. Na segunda carta aos Coríntios, capítulo 11, versículo 14,
o apóstolo Paulo diz que não deveríamos nos impressionar com falsos enviados do
Messias, ressaltando que a existência desse tipo de gente “não é de admirar,
pois até Satanás pode se disfarçar e ficar parecendo um anjo de luz”. Por isso,
aprenda que sobrepor-se a direitos e garantias fundamentais de outrem é
considerado um abuso de direito e tornar-se-á ilegal, sujeitando o grevista à responsabilização
trabalhista, civil ou penal, dependendo da situação do caso concreto. Já pensou
na corrida ao poder judiciário daqueles que tiverem os seus interesses
prejudicados por uma greve? O Estado e o empregador poderão suportar as
indenizações por perdas e danos materiais ou morais? E os sindicatos de
trabalhadores terão condições financeiras de pagar essas reparações? E por que
dessas assertivas aqui registradas? Porque é preocupante o comportamento que
vem sendo adotado em algumas paralisações em Sergipe e no Brasil afora. Já se
discute, inclusive, no âmbito do judiciário, a tese de que greve não significa
férias remuneradas e que os salários devem ser cortados durante o período
paredista. Alguns anos atrás, a magistratura federal marcou uma greve para
determinada data. O Conselho da Justiça Federal (CJF), a seu turno, decidiu que
os juízes que aderissem à paralisação teriam tantos quantos fossem os dias parados
devidamente descontados nos seus salários. Recentemente, na Bahia, os
professores tiveram cortados os seus pontos durante um período de greve. O
Estado não pagou os dias parados. Foram ao judiciário baiano e este determinou
o pagamento através de liminar, contudo, esta foi cassada pelo Superior
Tribunal de Justiça sob o argumento de que “a deflagração do movimento
paredista suspende, no setor público, o vínculo funcional e, por conseguinte,
desobriga o poder público do pagamento referente aos dias não trabalhados”. Por
fim um alerta: greves no serviço público não significam uma atitude sem qualquer
risco para os grevistas. É bom ficar de orelha em pé. Livre-se das correntes
que estão no seu calcanhar, pois, como ensinava Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem
os mortos estão seguros”. No mais, estou indo embora!
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Publicado no Jornal da Cidade,
Aracaju-SE, edição de 05.07.2015, Caderno A-7.
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Postada no Blog Primeira Mão, em 05
de julho de 2015, às 18h30min, site:
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