quinta-feira, 4 de outubro de 2018
E o mundo não se acabou
Opinião pessoal
E o mundo não se acabou
Clóvis Barbosa
Tudo
estava preparado há mais de mil anos. O mundo iria se acabar no segundo
milênio, exatamente no dia primeiro de janeiro do ano 1001. O Apocalipse de
João dizia no capítulo 20: Vi um anjo que
descia do céu segurando a chave do abismo e uma grande corrente. Agarrou o
dragão, a antiga serpente – isto é, o diabo, Satanás – e acorrentou-o por mil
anos; jogou-o no abismo, trancou-o e selou a porta por cima dele, para que
nunca mais seduzisse as nações. Pronto, a senha estava dada. Todos tinham
que se preparar para viver os melhores momentos de suas vidas nos dias que
antecederiam o fim do Século X. Para causar mais pavor, São João, no capítulo
13 do Apocalipse, sentenciava: Vi sair do
mar um animal com dez chifres e sete cabeças, e sobre os chifres dez diademas,
e em cada cabeça um título blasfemo. O animal parecia uma pantera, com patas de
urso e boca de leão. (...) Então todos os homens acompanharam a fera e disseram
em coro: ‘Benditos os que se parecem com a fera e podem lutar com ela’. O Apocalipse,
que não passa de uma “revelação”, foi transformado numa “catástrofe”, disso se
aproveitando as seitas místicas para se apoderarem da mentalidade popular,
incutindo nela ideias e previsões das mais escabrosas ou algum tipo de salvação
total através do sobrenatural. Claro que essa visão de fim do mundo tem origem
religiosa e é muito antiga. Zoroastro, na Pérsia, por exemplo, 1.500 anos antes
de Cristo, já previa que o final dos tempos traria um novo mundo de paz e felicidade.
O Egito e a Mesopotâmia, além de outras nações, já tinham uma visão fatalista
de que o mundo possuía um tempo limite de existência. A verdade é que, no
segundo milênio, o exército de astrólogos, magos e feiticeiros “lavou a égua”, explorando
as pessoas simples com as imagens de um mundo que seria destruído e todos iriam
morrer. Teve um frade em Roma, chamado Anselmo, que circulava seminu pela
cidade, batendo nas costas com uma corrente. Exortava o povo ao arrependimento:
Peçam perdão a Deus enquanto tiverem
tempo. Doem seus bens aos pobres e confessem seus pecados.
O
momento contribuiu para o surgimento de vários trambiqueiros, como o anão de
nome Canata, um napolitano que dizia existir
dois lugares no mundo onde a população poderia salvar-se: uma gruta em Capri e
outra em Cabo Miseno, na Itália. E afirmava com toda seriedade, principalmente
para cidadãos de posses: No fundo do
antro da Sibila, há outra gruta, e no fundo desta gruta há um buraco por onde
só eu consigo passar. No buraco há uma pequena estátua de Maria. Entreguem-me
os seus bens e eu os colocarei aos pés da Santa Virgem. Quanto a vocês, nessa
noite irão embarcar num escaler e irão esconder-se em Cala del Rio, na parte
meridional da ilha de Capri. Irão encontrar ali uma gruta só acessível por mar.
Todos aqueles que estiverem sem jóias, dinheiro e demais objetos valiosos irão
sobreviver. Então, no dia seguinte, poderão voltar a Nápoles para receber seus
tesouros de volta. Por outro lado, diga-se, a população nunca se portou tão
bem quanto nos últimos dias do ano mil. As igrejas viviam entupidas de gente.
Nunca se rezou tanto o Pai Nosso e a Ave Maria, os púlpitos sempre estavam
cheios de pregadores e todos queriam se confessar ao mesmo tempo. Os padres
nunca trabalharam tanto e as missas eram rezadas uma atrás da outra. Nas ruas,
os vendedores de bugigangas não paravam de vender produtos religiosos. Era um
doar de objetos que não cessava nunca, sempre os ricos distribuindo os seus
pertences às pessoas pobres. Os inimigos se reconciliavam e na missa todos
repetiam em voz alta: Esperamos entrar na
vida eterna com a Virgem, mãe de Deus e da Igreja, com são José, seu esposo,
com os Apóstolos e todos os santos, que na vida souberam amar Cristo e seus
irmãos. Nos intervalos dos cultos, os cantos gregorianos eram entoados sem
parar, aumentando a consternação. As senhoras ricas cuidando dos doentes e até
os leprosos eram tratados “como gente”, recebendo o carinho de todos. O
sinal-da-cruz era feito pelas pessoas a toda hora, sempre com o olhar para o
céu. A poucos minutos do término do ano mil, a choradeira e o desespero tomaram
conta de todos.
Para
complicar a crença no fim do mundo, anos antes do segundo milênio, o Vesúvio
teve uma erupção tão catastrófica que cobriu toda a cidade de material
vulcânico. Além disso, inexplicavelmente, incêndios assombrosos ocorreram em
várias partes da Itália. Até a Basílica de São Pedro teve uma parte incendiada
misteriosamente. Tudo isso contribuía para o processo de alarde vivido pela
população, inclusive quanto à forma como ocorreria a passagem do milênio. Como
bem disse Luciano de Crescenzo, em História
da Filosofia Medieval, a descrição da morte era uma coisa terrível, cada um
imaginando-a de forma diferente: a
chegada da morte com sua foice, os clarins anunciando os cavaleiros do
apocalipse, os ferozes gafanhotos, os cavalos verdes, os seres monstruosos
vindos de outros planetas, os abismos que se abrem embaixo dos pés dos
pecadores, os mosquitos gigantes que esvoaçam em cima dos moribundos, as
imensas labaredas que envolvem os seres humanos, os condenados que queimam
lentamente para que possam sofrer mais sem nunca consumir-se. Resumindo, um
inferno pior do que o próprio inferno. A cada minuto que se aproximava do
ano 1001, o desespero tomava conta da multidão. Mas, nada aconteceu. O dia
amanheceu como outro qualquer e o anão Canata desapareceu no mundo. Existe
outra versão: a de que nada disso ocorreu e nunca houve qualquer tipo de
preocupação da população com o segundo milênio. Aliás, na época, ninguém nem
sabia em que ano se encontrava, já que num lugar era 997, em outro 1001, e num
outro 1003. Sempre houve uma confusão em relação ao exato ano em que vivemos.
Mas, para os defensores dessa tese, o milenarismo não passaria de uma coisa
inventada para enganar almas ingênuas. Existindo ou não, no século XII, São
Malaquias, com as suas “Profecias”, chegou a fixar uma data para o fim do
mundo. A data seria após o pontificado de Bento XVI, ou seja, estamos próximos.
O fim do mundo seria agora com o Papa Francisco ou com o seu sucessor.
Recentemente, as teses milenaristas foram retomadas por algumas igrejas
evangélicas fundamentalistas.
O
milenarismo também teve suas andanças no Brasil, valendo destacar a guerra dos
Canudos, sob a liderança de Antônio Conselheiro, que acreditava no fim do mundo
com a vinda de um messias e do qual ele seria o seu profeta. Ficou famoso pela
frase “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. O padre Antônio Vieira,
no século XVII, tinha certeza que após os impérios da Assíria, Pérsia, Grécia e
Roma, teríamos um Quinto Império, Portugal, que tomaria o controle do mundo
inteiro. Há quem defenda, inclusive, que o comunismo, com a sua crença numa
sociedade justa e no fim da luta de classes, bem como o nazismo, cujo poder era
previsto para governar durante mil anos, tiveram também suas bases originadas no
milenarismo. Em 1937, um choro de Assis Valente gravado por Marlene, E o mundo não se acabou, dizia assim: Anunciaram e garantiram que o mundo ia se
acabar. Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar. E até
disseram que o sol ia nascer antes da madrugada. Por causa disso nessa noite lá
no morro não se fez batucada. Acreditei nessa conversa mole. Pensei que o mundo
ia se acabar. E fui tratando de me despedir. E sem demora fui tratando de
aproveitar. Beijei na boca de quem não devia, peguei na mão de quem não
conhecia, dancei uma samba em traje de maiô, e o tal do mundo não se acabou.
Chamei um gajo com quem não me dava e perdoei a sua ingratidão. E festejando o
acontecimento gastei com ele mais de quinhentão. Agora eu soube que o gajo anda
dizendo coisa que não se passou. Ih! Vai ter barulho e vai ter confusão. Mas,
com o fim do mundo ou não, eu peguei a mania de todo o dia primeiro de um novo
ano ir à praia e pular sete vezes sobre as ondas, sempre com o pé direito à
frente, e nunca deixar de levar flores para Iemanjá. De preferência, um cravo e
uma rosa.
Post Scriptum
Carlos
Ayres Britto é d’Oxum
Era
um dia de sexta-feira, oito de maio de 2015. Sentei-me na última fileira do
plenário da Assembléia Legislativa da Bahia. Estava aguardando o início da
solenidade que iria entregar o título de cidadão baiano ao sergipano de
Propriá, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto. Falo com Carlinhos e sua
mulher Rita. Mais algum tempo, formada a mesa com as autoridades, a cerimônia
de entrega da honraria se inicia. O presidente da Casa, deputado Marcelo Nilo,
dá a palavra à deputada Fabíola Mansur, autora da proposta do título de
cidadania. Ela fala da vida e da passagem do homenageado pelo Supremo Tribunal
Federal, destacando as teses ali discutidas e a defesa feita por ele de temas
polêmicos. É a vez de Carlinhos: estava emocionado. Disse que queria
transformar a sua participação naquela cerimônia em uma verdadeira festa e que
não iria falar sobre a sua trajetória no STF, mas do liame que o unia à Bahia.
“Meu coração sempre bateu pendularmente entre o Sergipe de meu pai e a Bahia de
minha mãe”, disse. Fez até uma brincadeira comigo, por três vezes, durante o
discurso: “Enquanto o conselheiro Clóvis Barbosa saiu da Bahia para casar com
uma sergipana, eu saí de Sergipe para casar com uma baiana”, a sua mulher Rita,
nascida em Vitória da Conquista. Falou de Castro Alves (“Não é o maior poeta do
mundo porque não nasceu na Inglaterra de Shakespeare”), Raul Seixas (“prefiro
ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo”) e Armandinho, a quem dedicou um poema. Repentinamente, entra no plenário
o músico Armandinho e toca na guitarra elétrica o hino do Senhor do Bonfim, o
grande padroeiro da Bahia. Emocionante a apresentação, inclusive para mim que,
coincidentemente, na tarde do mesmo dia, na missa das 17 horas da Igreja do
Bonfim, celebrada por um sergipano, o Bispo Auxiliar de Salvador, dom Marco
Eugênio Galrão Leite de Almeida, tive a graça de ser escolhido dentre os
presentes para, ao final da missa, conduzir ao altar a Cruz Secular do Senhor
do Bonfim. Mas, a festa de Carlinhos não tinha terminado. Após o seu discurso,
o presidente Marcelo Nilo, antes de encerrar a solenidade, disse que era
preciso batizar o novo baiano. Entra uma cantora e interpreta: “Nessa cidade
todo mundo é d’Oxum / Homem,
menino, menina, mulher / Toda a cidade irradia magia / Presente na água doce / Presente
na água salgada / E toda a cidade brilha / Seja tenente ou filho de pescador / Ou
importante desembargador / Se der presente é tudo uma coisa só / A força que
mora n'água / Não faz distinção de cor / E toda a cidade é d'Oxum / É d'Oxum / É
d'Oxum / Eu vou navegar / Eu vou navegar nas ondas do mar / Eu vou navegar”.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, em 19/07/2015, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 19/07/2015, às 18h10min:
- As fotos foram retiradas do Google.
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