terça-feira, 26 de agosto de 2014
Pacta Sunt Servanda
Artigo pessoal
Pacta sunt servanda
Clóvis Barbosa
Estabeleceu-se no mundo jurídico brasileiro
uma discussão sobre a possibilidade da Corte da Organização dos Estados
Americanos (OEA) poder interceder na decisão do nosso STF sobre o mensalão.
Tudo começou com a intenção do deputado Valdemar da Costa Neto (PR-SP), um dos
réus, de ir à Corte Interamericana contra o julgamento sob a alegação que não
lhe foi garantido o duplo grau de jurisdição. As opiniões divergem, a uma com o
argumento de que a Constituição não se subordina a tratados ou pactos
internacionais do qual o Brasil seja signatário, a duas que sim, inclusive
havendo precedente em caso idêntico ocorrido na Venezuela. Voltaremos ao
assunto em outro artigo, contudo, interessa-nos aqui e agora tratar de um fato
mais ou menos análogo envolvendo uma servidora pública e o município de Aracaju
e que se referia a um conflito de normas, sendo uma oriunda de um pacto
internacional e outra da legislação municipal. Era o ano de 2005 e à época, ocupávamos
o cargo de Procurador-Geral da Capital. Uma professora, antes do término do
estágio probatório, requereu licença para interesse particular em virtude de
ter sido aprovada numa seleção promovida pelo Ministério da Educação (MEC) no
Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no Timor
Leste. A Procuradoria emitiu parecer opinando pelo deferimento do pedido e pela
suspensão do estágio probatório enquanto perdurasse o período de afastamento. Encaminhado
o processo à Secretaria Municipal de Educação, a Secretária foi inquirida por
ofício do sindicato da categoria que manifestava, em tom de denúncia, a
irregularidade do afastamento, tendo, em razão disso, ouvido a Assessoria
Jurídica daquela Secretaria a qual manifestou contrariedade ao parecer da
Procuradoria, opinando pela falta de respaldo legal ao pleito de afastamento. Diante
dessa manifestação, foi solicitada uma reanálise do problema. O núcleo da
procuradoria de estudos e pareceres mais uma vez, agora sob um novo ângulo
jurídico, ratificou o parecer anterior.
Diante desse quadro, onde dois órgãos
emitiam pareceres divergentes sobre um mesmo assunto, o processo voltou para que
o Procurador-Geral dirimisse o conflito. De logo, não havia necessidade da
servidora requerer a licença, uma vez que havia nos autos ofício da responsável
pela execução do Programa Timor Leste e Coordenadora-Geral de Cooperação
Internacional da CAPES/Ministério da Educação requerendo a sua liberação. Por
outro lado, a professora, para orgulho do magistério aracajuano e sergipano,
foi a única conterrânea, dentre 17 (dezessete) mil candidatas, selecionada pelo
MEC para colaborar no ensino da língua portuguesa a professores do País-irmão. Todos
conhecem a história recente desse País que tenta se firmar no cenário
internacional, e o Brasil, na sua política de ajuda aos países de língua
portuguesa, não mediu esforços no sentido de cooperar na reconstrução de seu
quadro educacional, que se encontrava devastado após longa guerra civil contra
a Indonésia, onde 90% das suas escolas foram destruídas e o sistema foi
praticamente desmontado. Diga-se que esse ato do Governo Brasileiro consagrou um
dos seus princípios constitucionais que o rege nas suas relações internacionais,
que é o da “cooperação entre os povos
para o progresso da humanidade”. Pois bem, a liberação do membro do
magistério em estágio probatório, segundo a legislação municipal, só poderia ocorrer
em três hipóteses: 1) por motivo de
doença em pessoa da família; 2) para
acompanhar cônjuge ou companheiro, que também seja servidor público, civil ou
militar, nos termos estabelecidos no Estatuto do Magistério; e 3) para ocupar cargo público eletivo. Numa
interpretação restritiva, isolada, o pedido de liberação da professora não
teria amparo legal. Acontece que a matéria apresentava outros enfoques como o
fato da tarefa a ser executada pela professora no Timor Leste ser precedido de
um pacto internacional com texto aprovado pelo Senado Federal.
Feita essa observação, perguntava-se:
Um tratado internacional tem força de lei? As normas contidas nos tratados,
acordos e pactos internacionais firmadas pelo Brasil são incorporadas ao
sistema de direito positivo interno brasileiro? Em caso de conflito de uma
norma oriunda de um pacto internacional com outra interna, qual a que deve prevalecer?
Às duas primeiras indagações a resposta foi sim. Por quê? Porque é na
Constituição da República, conforme lição do Ministro do STF, Celso de Mello, e
não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas, que se deve buscar a solução normativa para a
questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo
interno brasileiro. O exame da Constituição permite constatar que a execução
dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna
decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo,
resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional,
que resolve, definitivamente, mediante Decreto Legislativo, sobre tratados,
acordos ou atos internacionais e a do Presidente da República, que, alem, de
poder celebrar esses atos de direito internacional, também dispõe – enquanto
Chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos
tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção
internacional, de sua aprovação congressual e da ratificação pelo Chefe do Estado
– conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja
edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do
tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a
executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a
vincular e a obrigar no plano de direito positivo interno. Em outras palavras,
cumpridas as etapas referidas, o ato internacional passa a vigorar no sistema
jurídico brasileiro.
Finalmente, chegamos à última
pergunta, ou seja, quando do conflito de uma norma oriunda de um pacto
internacional com outra interna, qual a que deve prevalecer? Vimos que é ponto
pacífico a incorporação das normas internacionais oriundas de tratados, atos e
acordos ao arcabouço jurídico interno. Sobre o conflito de normas, ouçamos o Supremo
Tribunal Federal, na decisão citada anteriormente, “Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente
incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos
mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as
leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito
internacional público, mera relação de paridade. (...). No sistema jurídico
brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as
normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais
sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará
quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a
solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (‘lex
posteriori derogat priori’) ou, quando cabível, do critério da especialidade”.
Se efetivamente existiu um conflito de normas, em tese, entre o acordo de
cooperação educacional firmado pelo Brasil com o Timor Leste e uma Lei
Complementar Municipal, o assunto estava resolvido pela tese do Supremo
Tribunal Federal, ou seja, pelo critério cronológico, sendo o Acordo Internacional
de 2003 (ano em que foi publicado o Decreto Legislativo do Senado) e a Lei
Municipal é de 2001. Ai, pois, prevalece o Acordo Internacional, sem maiores
discussões. Resultado: a professora foi liberada e foi dar a sua contribuição
ao povo do Timor Leste. Era preciso respeitar o brocardo latino pacta sunt servanda, para quem os
contratos existem para serem cumpridos pela mesma razão que a lei deve ser
obedecida.
- Publicado no Jornal
da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 20 e 21 de
janeiro de 2013, Caderno B, página 9.
- Postado no site da ATRICON-Associação dos Membros dos
Tribunais de Contas do Brasil em 21 de janeiro de 2013. Link para acesso - http://www.atricon.org.br/artigos/pacta-sunt-servanda/
- Postado no Blog Primeira Mão, em 20 de janeiro de 2013, às 22:53:30. Acesso: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=5110&t=clovis-barbosa---pacta-sunt-servanda
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