quinta-feira, 13 de novembro de 2014
O Homem que não fazia perguntas
Artigo Pessoal
O homem que não
fazia perguntas
Clóvis Barbosa
Volto ao tema já retratado aqui no Jornal
da Cidade em A banalidade do mal e O lavador de almas, publicado na edição
de 3 de janeiro de 2010. Tinha lido, naquela época, a obra da cientista social
judia Hannah Arendt, Eichmann em
Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Até a leitura daquela obra
tinha uma visão distorcida do Tenente-Coronel da SS, Adolf Otto Eichmann
(1906-1962). Projetava para ele a figura medonha de um homem sanguinário,
violento, de uma fera brutal, desumana, capaz de matar as suas vítimas
paulatinamente e com as mais perversas formas. Qual nada, Eichmann era um
burocrata especializado no uso do apito, clipe, carimbo e grampeador. O
espantoso era que ele se tornou conhecido como o “executor-chefe do terceiro
reich”. E tudo isso só foi possível avaliar após sua captura pela Mossad, a
polícia secreta israelense, na cidade de Buenos Aires, em 1960, local onde ele
viveu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Drogado, foi enviado para Israel
onde se submeteu a julgamento. Arendt acompanhou o julgamento para a revista
New Yorker. E a idéia que se tinha dele era a de ter participado de fatos
terríveis e praticado crimes contra a humanidade. Ao invés de um sádico, a
escritora conheceu uma figura comum, que não pensava, que não fazia perguntas e
que tinha sempre a mesma resposta: “eu cumpri com o meu dever”. Diante desse
quadro, fiquei na dúvida sobre a esfera que eu iria abordar do seu
comportamento, se na psicológica ou na moral. Dei ênfase à psicológica, uma vez
que a sua mente estava mapeada segundo ângulos direcionados à psicopatia. É
verdade que psicopatas não são doentes ou deficientes mentais, pois, no caso de
Eichmann, ele nem tinha distúrbio que afetava a sua percepção, nem tinha enfermidade
que alcançava a inteligência. Como se sabe, psicopatia é uma condição, inata e
irreversível. Ser psicopata é como ser branco, negro ou índio. Assim como um
índio nasceu e morrerá índio, um psicopata nasce e morre psicopata.
Eichmann foi um artesão na escrituração da
morte. Ele não estava preocupado com a justiça ou com a injustiça da execução
em massa dos judeus. Sua irresignação moral partia do princípio em que a morte de
judeus era uma política do Estado ao qual servia. Ele não tinha nada a ver com
isso e nem queria saber. Para ele, não importava o que iria acontecer com os judeus,
malgrado saber que o destino de seus passageiros eram os campos de concentração
da Polônia, transformados em fábricas da morte, onde centenas de pessoas eram
trancadas em câmaras de gás sob o pretexto de tomarem banho. Mas, na realidade,
elas eram intoxicadas com gás zyclon. Portanto, para o nazismo, operacionalizar
o extermínio desse povo implicava tão-somente em uma etapa da cadeia engrenada
por fases matematicamente estabelecidas, a exemplo de fazer a triagem dos que
iriam morrer, levá-los aos trens que os transportariam até a zona de execução,
cumprir rigorosamente horários de saída e de chegada das locomotivas, conduzir
os condenados às câmaras de gás e, por fim, matá-los. Era a chamada “Solução
Final” (Endlösung der Judenfrage), uma das estratégias mais hediondas do
holocausto e que tratava do genocídio sistemático do povo judeu. A tática desse
plano odiento assumia cores semelhantes às que permeiam os armários de um escritório
de contabilidade. Judeus mortos eram apenas números, vistos sem índice moral.
Nesse sentido, Eichmann banalizou o mal, transformando a fattispecie numa atividade instrumental. Aniquilar judeus, para Eichmann,
não era algo mau e, tampouco, bom, mas só uma instância, dentro do processo de
sedimentação da filosofia nacional-socialista, de cuja implementação a
manutenção de seu status dependia. Da mesma maneira que um comerciante de
livros precisava vender mais compêndios para garantir o emprego, Eichmann se
notabilizou como workaholic na
matança de judeus para ascender na escala de respeitabilidade do establishment nazista.
A essa postura, desprovida de sentimento ou
valoração, vazia de compaixão, piedade ou até mesmo de raiva, Hannah Arendt
chamou “banalização do mal”. Alguém, cuja pulsação sanguínea coordene-se pela
moralidade afeta à noção de bem e mal, sabe que a ação nazista foi perversa.
Essa assertiva não se subordina a digressões para encontrar pálio de validade.
Ali onde, todavia, burocratas vêem a trucidação de humanos com indiferença,
conferindo-lhes a envergadura de códigos de barra, o mal passa a ser
corriqueiro, trivial, como resolver uma equação de álgebra. Eichmann queria
cumprir seu múnus com extremo profissionalismo, procurando ser, inclusive, o
mais competente dentre os colegas responsáveis por outras estações. Ele
banalizou a morte, disfarçando-a atrás da performance institucional. Um grande
momento do julgamento foi quando ele disse que agia de acordo com a teoria do
dever moral de Kant, uma vez que seguia ordens e atuava no estrito cumprimento
de um dever legal, uma das excludentes de ilicitude prevista em todos os
códigos penais modernos. Kant pertenceu ao chamado grupo que defendia uma das
matrizes do sistema ético, a chamada deontologia, onde são os princípios que
importam. Se a regra é “não matarás”, “não roubarás”, “não mentirás”, viola o
sistema quem as descumprir, pois amparadas por ideais universais. Ademais, Kant
entendia que o respeito a dignidade humana era um princípio fundamental da
moral.
Mas, os argumentos de Eichmann não o
livraram de uma sentença de morte a 15 de dezembro de 1961. Menos de seis meses
depois, a 1º de junho de 1962, ele foi enforcado na prisão de Ramla, próximo a
Tel Aviv. A decisão causou muita controvérsia, principalmente entre os
juristas, isto pela prova colacionada contra o famoso réu, quase toda
testemunho de sobreviventes do holocausto. Eichmann assistiu passivamente o
desenrolar dos acontecimentos sentado atrás de um vidro à prova de balas e de som.
Não questionou a decisão. Nada perguntou sobre as regras que lhe eram dadas,
até porque ele era um homem que não fazia perguntas.
Post Scriptum
Um
editorialista do bom combate
Tive
acesso a alguns editoriais polêmicos do jornalista e membro da Academia
Sergipana de Letras, João Oliva Alves. Um particularmente me impressionou pelo
talento e lhaneza do debate, duro, mas respeitoso: João Oliva Alves versus José Aloísio de Campos, professor
e ex-reitor da Universidade Federal de Sergipe. Oliva, um católico ligado
intimamente a um grupo laico, ao lado do saudoso professor José Silvério Leite
Fontes, foi, talvez, um dos maiores editorialistas do jornalismo sergipano em
todos os tempos, tendo pontificado no jornal A Cruzada, Rádio Cultura de
Sergipe e Gazeta de Sergipe. É
imensa a sua produção jornalística e muitos foram os seus embates e polêmicas
com figuras exponenciais da cultura e política de Sergipe. João Oliva Alves precisa
urgentemente disponibilizar esse material transformando-o em livro. As novas
gerações vão agradecer. O velho Oliva é um daqueles homens que pode bater no
peito e dizer que combateu o bom combate. Duvida? Aguarde, já no prelo, Mural de Impressões, onde fala sobre
personalidades sergipanas, literatura, jornalismo, ensaios e memorialística.
Mas não basta! Que venha também, logo depois, os embates enfrentados na sua
vida jornalística. Será bom para a nossa história.
- Publicado no Jornal da
Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 17 e 18 de março de
2013, Caderno B, página 9.
- Postagem no Blog Primeira Mão em 17 de
março de 2013, às 14h51min:
- As fotos são do Google.
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