segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
O Corsário do Rei
O corsário do rei
Clóvis Barbosa
A
primeira vez que vi Darcy Ribeiro foi numa palestra que ele veio fazer na
Universidade Federal de Sergipe, onde eu exercia o cargo de Procurador Federal.
Após o término de seu compromisso, ao lado de alguns professores e estudantes,
fomos todos a um restaurante na praia de Atalaia. Passamos aproximadamente
quatro horas juntos, tempo necessário para ele se apaixonar perdidamente por
uma estudante que estava conosco e para o conhecermos como uma figura fascinante.
A mim, impressionou seu talento, seu raciocínio rápido e a capacidade de
discutir todo e qualquer assunto. Toquei num tema tabu dentro do meio acadêmico
de então, que era o livro do filósofo José Arthur Gianotti, publicado alguns
anos antes pela Editora Brasiliense, “A Universidade em ritmo de barbárie”.
Este ensaio foi uma crítica feroz ao processo de degradação que passava a
universidade brasileira, chegando o autor a afirmar que um pacto da
mediocridade havia sido firmado na comunidade de ensino superior, onde o
professor fingia que ensinava, o aluno fingia que estudava e o servidor fingia
que trabalhava. Gianotti dizia que "Se não se
apostar no poder acadêmico, se não se lhe abrir um espaço próprio, a
universidade será enervada por suas convulsões. E como o país não pode dispensar
institutos de pesquisa que alimentem o desenvolvimento tecnológico, e escolas
que formem suas elites, ela será marginalizada e posta em banho-maria, enquanto
uma burocracia ilustrada, apoiada no estado, tratará de criar centros de
excelência destinados a cumprir as tarefas que a universidade não soube
desenvolver. Uma enorme rede de ensino universitário servirá para enganar a
demanda das massas, enquanto o verdadeiro conhecimento tomará outros rumos”,
profetizava.
Quem esperava que Darcy fosse
de encontro às teses de Gianotti quebrou a cara, pois, além de ratificar, em
parte, os argumentos, levantava outros, como o pagamento de salário igual aos
professores independentemente de sua
produtividade, a falta de extensão e pesquisa, o despreparo dos professores, o
péssimo percentual de doutores, etc. Darcy falava sem parar, ao tempo que
investia com palavras dóceis e poéticas na beleza juvenil que aflorava em uma
das estudantes que nos acompanhava. Fui levá-lo no hotel e no caminho ele
falava maravilhas da encantadora jovem que acabara de conhecer. Falava da boca
gulosa, dos olhos tristes, do sorriso e do seu charme. No dia seguinte fui
levá-lo ao aeroporto. Ele não se esquecera da estudante da noite anterior.
Queria um telefone, um contato. Prometi que conversaria com ela. Mas não falei.
Ela namorava um colega estudante e ambos militavam num partido de esquerda.
Depois, tive uns 3 ou 4 contatos pessoais com ele, sempre em reuniões do PDT em
Brasília e Rio de Janeiro. Sempre se lembrava de perguntar de sua musa
“sergipense”. Era gostoso conversar com
Darcy. Ele sempre deixava uma dúvida, uma frase de efeito, uma tese que a gente
carregava para reflexão. Era um homem tremendamente preocupado com o Brasil. Por que o Brasil ainda não deu certo? Era a pergunta
que ele fazia ao chegar ao exílio, no Uruguai, em abril de 1964. Com essa idéia
na cabeça começou a pensar numa forma de responder à pergunta. Trinta anos
depois produziu, talvez, a sua maior obra, com o título de “O povo brasileiro – a formação e o sentido do
Brasil”, que, para ele, foi a melhor forma de influenciar as pessoas que
aspiravam ajudar o Brasil a se encontrar como nação.
Mas, infelizmente até hoje, sua pergunta continua sem resposta?
Na manhã do dia 18 de fevereiro de 1997
soube de sua morte em Brasília. Imediatamente segui para o Rio de Janeiro,
local do enterro, para lhe dar o meu último adeus. Na viagem e antes de chegar
à Academia Brasileira de Letras, no Castelo, onde seu corpo foi velado, um
filme passou em minha mente e passei a me lembrar das nossas conversas durante
os parcos momentos de convivência. Desde 1995 que ele enfrentava um câncer nos
ossos. No nosso último encontro até falamos sobre o assunto e eu falei de
alguns amigos que tive e também sofria desse mal. Depois da doença, conheci um Darcy que tinha pressa
em terminar alguns projetos, como a fundação que levaria o seu nome e que teria
a sede na sua residência, em Copacabana. Lá estava eu, anonimamente, no Salão
dos Poetas Românticos da ABL observando as pessoas e autoridades que vieram
prestar a última homenagem. O escritor Dias Gomes foi quem melhor traçou o seu
perfil: “O Darcy era um homem feito só de amor. Ele não tinha ódio no coração”.
Enquanto o som de Bach contribuía para a nossa melancolia, chegava uma coroa de
flores mandada por Fidel Castro com a frase “ao eterno amigo”. Era um cenário
de tristeza, principalmente quando a presidente da ABL, escritora Nélida Piñon,
fez o discurso de despedida. Na hora do enterro, ainda na sede da Academia, um
quiproquó foi marcado pela falta de um veículo que levaria o caixão. Foi o que bastou para
ataques e xingamentos serem desferidos contra o então governador do Rio de
Janeiro, Marcelo Alencar. Os ânimos foram acalmados e o enterro saiu da ABL até
o Cemitério São João Batista, num trajeto de 7 km, onde no mausoléu dos
acadêmicos, já à noite, Darcy foi enterrado.
Sim, mas o que tem a ver Darcy
Ribeiro com a peça “O corsário do rei”, texto e direção do teatrólogo Augusto
Boal? Em 1982, eleito vice-governador na chapa de Leonel Brizola do Rio de
Janeiro, Darcy Ribeiro vivenciou em Paris a experiência do Centro de Teatro do
Oprimido da capital francesa e convidou Boal, então exilado, para que aplicasse
nas escolas públicas do Rio de Janeiro uma atividade similar, dentro daquela
perspectiva revolucionária no âmbito da educação, tendo inclusive sugerido que
o mesmo montasse um espetáculo na capital carioca. Depois de 14 anos no exílio,
Boal montou a peça que trata das aventuras do corsário francês, Duguay Trouin,
que invadiu o Rio com o propósito de ocupá-lo e depois revendê-lo aos
portugueses e brasileiros. Para ele, era perder tempo e dinheiro com as meras
operações de pirataria. O rei da França autorizou a empreitada. Daí por diante,
muita sátira e denúncias da corrupção da administração e do clero, a exploração
do capitalismo e todas as mazelas do Brasil de ontem e de hoje. A peça não foi
bem recebida pela crítica. Armou-se um “bafafá" no cenário cultural
brasileiro, de um lado defensores do talento de Augusto Boal, de outro, um
segmento atrasado, provinciano, cujo espírito estaria marcado pelo chamado
jequismo. Na verdade, uma postura preconceituosa contra um brasileiro que viveu
no exílio. O sarrafo sofrido por Boal respingou em Darcy e impossibilitou as
crianças das escolas do Rio viver a experiência do teatro do oprimido, tão bem
explorado na Europa e com efeitos positivos.
Darcy disse certa vez:
“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças
brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer
uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se
autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria
estar no lugar de quem me venceu”. Perdeu, também, na ânsia de amar um amor
juvenil “sergipense”, mas neste caso, o fracasso não significa que ele fracassou;
significa que não venceu. Ou, quem sabe, ela é quem perdeu!
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Publicado no Jornal da Cidade, edição
de domingo e segunda-feira, 31 de março e 1º de abril de 2013, Caderno B,
pág. 5.
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Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, em 31 de março de 2013, domingo, às
14:21 horas:
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As fotos são do Google.
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