domingo, 27 de setembro de 2015
Feridas da Vida
Artigo pessoal
Feridas da
vida
Clóvis Barbosa
Ele
tinha três aninhos. Estava todo arrumado. De sapatinho, camisinha vermelha,
shortinho azul e cabelo cortado. Quem sabe, com aquele cheirinho gostoso de
lavanda. Estava vestido como se fosse passear. Ou a uma festa de aniversário
brincar com outras crianças. Exalava inocência e vida. De repente, levaram-lhe
para atravessar o mar. Sem saber, a esperança de um mundo melhor o levaria à
morte. O mar lhe trouxe intacto, como a
mostrar para todos nós o quanto da nossa insensatez e da nossa maldade. Ah,
como o mar é implacável! Por que fez isso? Logo ali, entre a areia e as
ondas que vinham e iam? Ali onde muitas crianças brincam e são felizes com seus
familiares? Mas, o impressionante foi a posição de suas mãozinhas. Ambas viradas
para trás como a pedir socorro: - por
favor, ajude-me, eu sou uma criança! Entretanto, a natureza é pródiga.
Notem que nenhum peixe, nenhum animal marinho tocou no seu corpinho, como a
homenagear a inocência. Deus! Onde estás
que não te vejo? Por que permitiste que essa criança morresse nessas
condições? É crime de lesa-natureza uma criança morrer. A criança não nasce
para morrer. Ela nasce para irradiar alegria, para nos dar exemplos da força da
ingenuidade e da pureza da alma. A criança é luz, é renovação, é a representação
da esperança de um mundo melhor. A foto acima é do menino sírio Alan Kurdi. Ao
vê-la, dá vontade de agasalhá-lo nos braços, afagando-lhe os cabelos. Ele estava
com a família num pequeno bote que carregava 17 pessoas. O barco virou bem
próximo ao balneário de Bodrum, na Turquia. Fugiam da maldade humana e de um
mundo insensato, em busca de paz e na esperança de um novo amanhã. Escapavam da
cidade de Kobane, palco de violentos embates entre militantes extremistas
muçulmanos e forças curdas oficiais. Seu irmão Galip, 5 anos, e sua mãe Rehan,
também morreram afogados, mas seu pai, Abdullah Kurdi sobreviveu. Ele disse: - meus filhos eram as crianças mais
maravilhosas do mundo. Eles me acordavam todas as manhãs para brincar.
Alguém, irresignado com a morte de uma criança, cunhou um dos mais contundentes
petardos contra a humanidade, contra o mal existente em cada um de nós: “De
cada criança morta nascerá um fuzil com olhos que terminará por lhe achar o
coração”.
Em fevereiro deste ano, aqui neste
espaço, escrevi um ensaio sobre a origem do mal. Ali, tento fazer uma reflexão
através de sete perguntas capitais: se Deus foi o criador de tudo, o mal também
foi criado por Ele? Por que existe o
mal? O bem e o mal são intrínsecos à natureza humana? O mal é uma criação do
meio em que se vive? O que é, na verdade, o bem e o mal? Por que Deus tolera o
mal? Como nasceu o mal? Todos conhecem o Hino da Criação do Universo. Ali está
dito que Deus criou o céu e a terra, as águas do mar, a noite e o dia, plantas
que geram sementes, árvores frutíferas, seres vivos nas águas e pássaros que
voam abaixo do firmamento, animais domésticos, pequenos e selvagens, segundo
suas espécies, monstros marinhos, e seres humanos à Sua imagem e semelhança.
Tudo, portanto, foi criado por Deus. E a Bíblia arremata que tudo criado por Deus
é bom, especialmente o ser humano – homem e mulher -, coroamento da criação.
Depois dessa sentença bíblica, começam a fervilhar as perguntas que não saem da
cabeça. São perguntas para reflexão diante de um mundo de predomínio da
maldade. De um mundo onde cada vez mais o homem faz questão de mostrar seus
instintos primitivos. Aliás, na própria Bíblia, Habacuque questionou Deus sobre
o mal: Tu [Deus] és tão puro de olhos, que não
podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar. Por que olhas para os que
procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais
justo do que ele? E ali eu lembrava do perigo de se fazer tantas
perguntas. Há cerca de 2.400 anos, em Atenas, por perguntar demais, um homem
foi condenado à morte, obrigado a tomar veneno preparado com cicuta: Sócrates.
Aliás, para ele, o mal seria resultado da ignorância, não teria existência real
e, assim, o homem sábio deveria superá-lo. Mas, a sua morte, ao contrário do
que se imaginava, fez estimular na história da filosofia o pensamento
perquiridor. Epicuro, por exemplo, filósofo grego que nasceu no ano 341 e
morreu em 270 a.C., foi bastante persuasivo ao falar sobre o mal moral, ou
seja, o mal causado pelos seres humanos. Epicuro questionava como poderia um
Deus bom e todo-poderoso admitir o mal? Ora, segundo ele, se Deus não pode
impedir que isso aconteça, então não é verdadeiramente todo-poderoso.
Mas foi Santo Agostinho quem
defendeu a tese de que a origem do mal estaria no livre-arbítrio concedido por
Deus. Todo mal, para ele, seria resultado do livre afastamento do bem. O mal, assim,
seria a ausência do bem. Durante muito tempo se acreditou que a bondade vinha
da alma e o mal do corpo, com todas as suas contradições. E mais ainda, a
religião maniqueísta explicava a existência do mal diante do confronto de duas
forças antagônicas, uma representando o bem, Deus, outra o mal, o Diabo. Ambos
seriam fortes e nenhum deles conseguiria destruir o outro. Embora maniqueísta na
sua juventude, Santo Agostinho se afastou dessas teses, principalmente ao
tentar explicar o motivo de Deus permitir o sofrimento em decorrência da
prática do mal. Para ele, ao receber o livre-arbítrio, teria o homem o poder de
escolha. Santo Tomás de Aquino repete Santo Agostinho, e vê o mal como ausência
do bem. Segundo Aquino, o mal não tem perfeição nem ser. O mal só
pode significar a ausência do bem e do ser; pois o ser, enquanto ser, é um bem.
Por essa razão, o mal representa algo puramente negativo, ou melhor, ele não é
nem essência nem realidade. Ele se apresenta como privação de uma propriedade que
a substância deveria possuir. O mal, portanto, seria uma
privação, ou seja, a falta daquilo que deveria estar presente. Num momento em
que a igreja associava o mal à imagem do demônio e do pecado, Jean-Jaques
Rousseau revolucionou a discussão da matéria, ao enunciar “que a primeira fonte
do mal é a desigualdade” e que “O homem nasce livre, e em toda parte é posto a
ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto
ele”. Essa visão de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe criou muitos
problemas para ele, já que esse entendimento ia de encontro aos valores da
época, principalmente aqueles defendidos pela igreja. A obra de Rousseau está
consolidada em Discursos sobre as
Ciências e as Artes, Discurso sobre a
Origem da Desigualdade, O Contrato Social, Emílio e As Confissões e é tida
como importante na história da filosofia política. Já Kant entende que o mal
está enraizado na natureza humana, diante do poder de escolha que o homem tem
para decidir o que fazer. Enfim, o bem é um imperativo categórico e tudo que
vai de encontro a ele seria o mal.
E diz Kant: (...) o fundamento do mal não pode residir em nenhum objeto que determine
o arbítrio mediante uma inclinação, em nenhum impulso natural, mas unicamente
numa regra que o próprio arbítrio para si institui para uso da sua liberdade,
i.e., numa máxima. O espiritismo também defende a pureza da alma e que nela
está armazenada bilhões de anos de existência. Para essa doutrina, a origem do
mal estaria na consciência do homem e na sua convivência com o bem, este sempre
eterno e aquele temporário. Para os Espíritos da Codificação Espírita, o bem é
tudo o que é conforme a lei de Deus, e o mal é tudo o que dela se afasta. Allan
Kardec, no Livro dos Espíritos, enuncia:
[...]
os Espíritos foram criados simples e ignorantes. Deus deixa ao homem a escolha
do caminho. Tanto pior para ele, se toma o mau caminho: sua peregrinação será
mais longa. Se não existissem montanhas, o homem não compreenderia que se pode
subir e descer; e se não existissem rochas, não compreenderia que há corpos
duros. É preciso que o Espírito adquira experiência e, para isso, é necessário
que conheça o bem e o mal. O pensamento
humano e a ideia do mal tiveram o seu ponto máximo na descoberta do inconsciente por Sigmund Freud. Para ele,
grande parte das nossas ações é movida por desejos recônditos, formulados a
partir de lembranças traumáticas reprimidas, tal qual um reservatório
de impulsos eticamente inaceitáveis para o indivíduo. Retorno a Kant, que pertenceu ao grupo que defendia uma das
matrizes do sistema ético, a chamada deontologia, onde o que importa são os
princípios. Se a regra é “não matarás”, “não roubarás”, “não mentirás”, violará
o sistema quem as descumprir, pois amparadas por ideais universais. Mas saiu de
Czeslaw Milosz - poeta, romancista e ensaísta, de naturalidade
polonesa, prêmio Nobel de literatura em 1980 - a ideia de que o bem e o
mal só existem no homem. Assim, se a espécie humana deixar de existir, eles, o
bem e o mal, também desaparecerão. É o mal existente em cada um de nós que mata
as nossas crianças, que cria os nossos medos. O corpinho de Alan de rosto na
areia, na beira do Mediterrâneo, parecia mostrar que ele dormiu cansado de
tanto brincar... quem sabe com os peixinhos, sonhando que crianças como ele
nunca mais morreriam.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, 27 de setembro de 2015, Caderno A, página 7.
- Postado no Blog "Primeira Mão", Aracaju-SE, em 27 de setembro de 2015, às 14h28min, site: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=9826&t=feridas-da-vida
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário