domingo, 9 de dezembro de 2018
Disque M para matar
Opinião
Disque M
para matar
Clóvis Barbosa
Há quem, na crítica literária, projete Vinícius de
Moraes de forma míope. O argumento principal está ali onde ele não seria um
poeta autêntico, porquanto tenha se envolvido com a MPB. Bobagem. Vinícius foi
um poeta ímpar e um músico de raríssima beleza. Em 1973, ao lado de Toquinho,
compôs Regra Três, cuja letra é matizada com uma admoestação: tantas você fez, que ela cansou, porque
você, rapaz, abusou da regra três, onde menos vale mais. Muitos não
compreendem o porquê da expressão “regra três”. Paciência. A construção é
futebolística. E futebol e cinema são iguarias. Assemelham-se à Filosofia.
Filosofia não é para qualquer um. Cinematografia e futebol, analogamente,
exibem conteúdos que nem todas as mentes são capazes de decifrar. Ora, “regra
três” foi uma coisa que só passou a existir a partir de 1968. É que, antes disso,
não se permitiam substituições no futebol. Daí a existência de um campeonato
paralelo ao dos profissionais, denominado campeonato dos reservas ou dos
aspirantes. Com o advento da regra três, isso findou. E, às vezes, o menos
(reserva) valia mais que o titular, como preconiza a canção de Vinícius,
ficando no banco tão-somente a título de estratégia. Só que Vinícius não estava
pensando em futebol quando burilou o samba, mas em amantes. Amantes, de quando
em vez, substituem as titulares. Às vezes, também, valem mais do que as
titulares. Mas o abuso na substituição cansa. E o “rapaz”, de tanto substituir,
poderá ser posto de escanteio. É o que está para acontecer com a Lei nº
9.296/96, que trata das interceptações telefônicas. Ela poderá ser posta de
escanteio. Pelo menos desde 2007 tentam modificá-la. Para quem quer introduzir
as modificações, a culpa é da polícia judiciária, que abusou. A rigor,
abuso decorre da falta de tato, da ausência de tirocínio e da pobreza de sensibilidade.
Em 1954, Hitchcock demonstrou a veracidade desse ponto de vista com o filme “Disque
M para matar”, com roteiro de Frederick Knott, autor de peça homônima, adaptada
para o cinema pelo mestre do suspense. A narrativa é arrebatadora. Ela passa
pelos arroubos psicológicos experimentados pelo ex-tenista Tony Wendice, que casou
com a milionária Margot Mary, interpretada pela dulcíssima Grace Kelly.
Tony vive uma crise de ciúmes quando descobre que
sua esposa havia mantido um affair com o escritor Mark Halliday, o qual,
miseravelmente, resolveu ir para Londres, onde Wendice reside com a mulher. Sucede
que Margot não queria mais nada com Mark. Tampouco Tony a amava tanto a ponto
de justificar a dimensão do ciúme que externou. Na verdade, toda a trama foi
montada por uma única causa: dinheiro. Assim, Tony chantageia um amigo,
Charles Swann, no sentido de que este invada sua casa, quando Margot estiver
sozinha, para matá-la estrangulada. A senha? Um telefonema. Mas há um
detalhe que não pode ser desprezado. Enquanto Charles ia matar Margot, Tony,
valendo-se de um álibi quase perfeito, toma uísque,
por incrível que pareça, exatamente ao lado de Mark. Todavia, tudo dá errado.
Margot, em legítima defesa, mata Charles com uma tesoura e, a partir de
então, todo o filme se transforma num laboratório de fórmulas psicanalíticas. E
Tony vai ter que escapar da arapuca que engendrou. Por quê? Porque abusou.
Nada daquilo era necessário. Discou M para matar e terminou metendo-se numa cilada.
De fato, quem disca M
para matar corre o sério risco de “entrar” na tesoura. É o que pode acontecer
com um dos mais relevantes elementos de investigação utilizados pela polícia
judiciária: a interceptação telefônica. Que o diga o projeto de lei 1.443/07,
hoje apensado ao projeto de lei 1258/1995. Interessante que, embora tramitando em
regime de prioridade, encontra-se paralisado desde 2013, mas recebendo uma
série de apensos. O projeto original nasceu na CCJ da Câmara dos Deputados e esquarteja
a Lei 9.296/96. Não que alguns pontos da mudança não sejam positivos; outros,
contudo, beiram a hecatombe. Exemplifique-se: na lei, a interceptação pode ser
utilizada tanto durante o inquérito quanto ao longo do processo; no projeto,
apenas durante o inquérito, ainda que por requerimento do MP. Na lei, a interceptação
é cabível para investigar qualquer crime punido com reclusão; no projeto, não,
só caberá para um rol taxativo de crimes, a exemplo de terrorismo, tráfico de
drogas, quadrilha, homicídio qualificado, latrocínio, estupro, ilícitos
praticados por organizações criminosas, dentre outros. No total, lista um
cardápio de dezoito crimes.
Portanto,
a interceptação não mais poderá ser empregada para qualquer infração, mas
somente àquelas que são explicitamente elencadas na pretensa futura lei. Roubo,
por exemplo, não poderá mais ser objeto de interceptação. Isso é ruim. Mas há pontos
positivos. Com a nova lei, salvo no caso de extorsão mediante sequestro e
terrorismo, o prazo da interceptação será limitado a, no máximo, sessenta
dias, improrrogáveis. Há outro, ainda melhor: as conversas entre o investigado
e seu advogado, mesmo que decorrentes de interceptação, não poderão ser usadas
como prova. Isso, inegavelmente, é um avanço. Afinal de contas, o advogado é um
profissional cuja inviolabilidade, prevista na CF, está diretamente atrelada
aos institutos da ampla defesa e do contraditório. Como, entretanto, o
causídico vai exercer, na plenitude, sua liberdade profissional? Correria o risco
de ver sua conversa com o cliente sendo usada contra este. Nesse aspecto, a
nova lei é perfeita e atende aos reclamos da OAB. Além disso, a pirotecnia
propiciada por alguns policiais mal intencionados vai acabar. Com a aprovação
da nova lei, as gravações só poderão ser liberadas para jornalistas com
autorização judicial e, ainda assim, em audiência pública para a qual sejam convocados
todos os órgãos de imprensa. Isso vai esfolar o sensacionalismo de
alguns programas paleozoicos que se alimentam do escândalo e do privilégio no
campo da informação. Há diversos outros destaques, que só a leitura de todo o
projeto de lei permitirá enxergar. Contudo, na exposição de motivos do projeto,
da lavra do deputado Leonardo Picciani, transcreve-se chocante excerto do
jurista Renato Marcão, onde este propugna que “as polícias têm-se utilizado da
interceptação telefônica de forma ilegal e, depois da exitosa prisão em
flagrante, sem que a existência da escuta venha à tona, justifica-se que as
diligências se iniciaram em razão de denúncia
anônima”. Algo terrificante. Se o tal equipamento de interceptação,
denominado guardião, vai prestar-se para tamanha truculência, necessário
faz-se que a OAB e o MP fiscalizem seu funcionamento, sob pena de a polícia
judiciária abusar na “regra três”, pois, assim como o uso de reserva é exceção,
a interceptação também deve sê-lo. O projeto 1.443/07 está aí por causa dos
abusos da polícia.
Mas se ele não for suficiente para regular a
atuação da polícia judiciária, tal qual Grace Kelly, tesoura nela, até
porque quem quer voar além dos limites acaba por perder as asas.
O cavalo que anda de moto
Toda
vez que vou à República Dominicana, onde vive uma parte de mim, surpreendo-me
com o modus vivendi do seu povo.
Passei recentemente oito dias naquele país, viajando direto por algumas de suas
paragens. Punta Cana, Bávaro, Macao, Higüey, Boca de Yuma, Bayahibe, Domínicus,
La Romana, San Pedro de Macoris, Boca Chica e Santo Domingo foram locais
visitados. Seja por uma “carretera” recém-inaugurada, que liga Santo Domingo a
Punta Cana, ou passando por estradas
estreitas e sem acostamento, vê-se de tudo, inclusive como o país vive um drama
de falta de civilidade no seu trânsito. As motos andam com cinco e até seis
pessoas, muitas delas crianças, e o capacete (eles chamam de “casco”) só é
obrigatório para o condutor. Presto atenção a tudo. Às placas nas estradas: “No
cierre el cruce”, “motorista use siempre el casco”, “Estación de peaje”, “no
olvide usar el cinturon de seguridad”, “Pare em rojo”, “Despacio”, “Redusca
velocidad”, “Verifique los frenos”, “Rebase com seguridad”, “Respete las siñales
de transito”. E a propaganda política? “Robert de La Cruz – diputado – Por el
desarollo de nuestra província”, “Hamlet
Melo, diputado”, “Juan Julio, senador 2016” , “Cholitin, senador – Voi por ti...”,
“Ramon Ramires Manolito, síndico”, “Josecito, senador”, “Socrates Dias,
regidor”, “José Maria, senador – el senador que el pueblo quiere”, “Juancito,
alcalde”, “Miguel, presidente”, “Juana Vicente, senadora – capaz e servidora”.
As eleições serão realizadas em 2016, contudo, a campanha política já está nas
ruas desde o início do ano. As motos tomam conta das pequenas localidades. Nos
fins de semana, a população mais pobre dos trabalhadores se reúne numa espécie
de bodega para tomar rum. Depois saem, muitas vezes bêbados, conduzindo as
motocicletas com até cinco pessoas. Os acidentes batem recordes. Não é a toa que
alguns políticos fazem da reivindicação de construção de hospitais
traumatológicos a sua bandeira. A par disso tudo, enfrento nesse período a possibilidade da passagem pela ilha de um
furacão (eles chamam de huracan). Estava programado para o dia 25, justamente o
dia do meu regresso, porém, aos poucos, “Danny”, como foi cognominado, foi se
debilitando e se afastando em direção à Flórida, Estados Unidos. Sigo viagem e,
após um banho nas águas do Caribe, retornando ao hotel que estava hospedado,
diviso na minha frente uma moto e, na
sua garupa, um cavalo com as patas amarradas ao corpo do condutor. Não
acreditei no que vi. Tinha que ter a certeza. Perguntei à minha mulher e ao meu
filho se eles estavam vendo aquela cena surreal. O meu filho, que mora na
República Dominicana, disse que aquilo era comum. Fiquei aturdido e, ao chegar ao
hotel, fui pesquisar na internet. E o que eu encontro? Uma foto semelhante ao
que testemunhei há alguns minutos. Na fotografia, de autoria de Amit
Dave/Reutes, mostra uma espécie de cabrito, flagrado na cidade indiana de
Ahmedabad. Vivendo e me surpreendendo!
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