- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 13/09/2015, Caderno A-7.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
O Direito achado na rua
Opinião pessoal
O Direito achado na rua
Clóvis Barbosa
Por coisas como essas foi
que, em 1987, um ano antes da promulgação da CF de 88, intelectuais da UNB
fundaram o chamado “Direito Achado na Rua”.
Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do Núcleo
de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, essa
corrente teve como grande scholar o
prof. Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse
de uma análise da prática social, fincado no empirismo e na disputa
aberta pela vitória da justiça sobre
a lei. Lyra Filho consubstanciava
seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos
e não-conformistas. Numa
palavra, a escola do Direito Achado
na Rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno
jurídico”, mas esse modelo de pensamento não é
invenção exclusivamente nacional. Os anglo-europeus já haviam formulado
o people’s law of the streets e os
franceses já tinham concebido o droit
qu’on trouve dans la rue. Flexibilidade é a palavra-chave do direito achado na rua. Plagiando
o próprio prof. Lyra Filho, “o direito só pode ser compreendido como a
enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Para ele, o direito “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua
filtragem, nas normas costumeiras e legais, tanto pode gerar produtos autênticos, quanto produtos falsificados”. Produtos falsificados,
para Lyra Filho, seriam, por exemplo, “as leis que representam a chancela da iniquidade,
a pretexto da consagração do direito”. Essa concepção marxista, também
cognominada “humanismo dialético”, detecta na metáfora da rua (que aponta para
a polis) a metamorfose da “multidão
de solitários urbanos em povo”, conclamando “a rua da cidade para a vida
humana”, consoante preconiza Marshall Berman, em “Tudo
que é sólido desmancha no ar”. Em suma, o operador do direito deve “reivindicar
a rua para a vida”. A vida nasce na rua. O direito nasce na rua. O povo
idealiza a rua. Em O povo ao poder,
Castro Alves canta: “A praça! A praça é do povo, como o céu é do condor”. De
modo bem simplista, o direito achado na rua pugna por uma recriação do
ordenamento, tendo nas massas seu centro gravitacional de criatividade.
A edificação de uma
cidadania sócio-jurídica é a meta do Direito Achado
na Rua, o qual ambiciona
“relações de trabalho mais livres”; deseja pôr um termo na opressão que um
indivíduo lança sobre outro. Disso, advêm algumas reflexões: estimativas dão
conta de que aproximadamente três milhões de pessoas assistiram à versão pirata
do filme “Tropa de Elite”. Ao invés de dar um
tratamento criminal a esses indivíduos, os produtores da obra foram buscar o
direito na rua e, dentro de uma concepção humanisticamente dialética,
vislumbraram a alternativa de propiciar-lhes a expiação pelo “pecado” que
cometeram. Abriu-se uma conta, na qual cada um dos “infratores” poderia fazer
um depósito, idêntico ao valor do ingresso de cinema, o qual seria revertido
em favor do Instituto Nacional do Câncer.
Bela e criativa sociabilização. O
fisco e setores policiais que desconhecem o direito
achado na rua,
entretanto, lançam mão de outra postura. Durante algum tempo
apreenderam CDs e
DVDs piratas que estiveram sendo comercializados no itinerário das festas, bares
e onde ocorria aglomeração de pessoas, enquadrando os “marginais” nos rigores
da lei. Não é assim que quer o art. 184 do Código Penal? Parabéns ao fisco, a setores da polícia e do judiciário
que
não acharam o direito na rua, mas nos códigos. Não deixa de ser
uma perspectiva. Nada zetética;
totalmente dogmática. Esses
servidores,
certamente, cumpriram a lei. Difícil é saber se aperfeiçoaram o os
ditames da justiça, em face de um povo que vive abaixo da linha de pobreza e
que perscruta na rua os seus direitos. Essa
dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos
sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a Bíblia
(Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, como todos sabem, Cristo
hospedou-se na residência de Zaqueu, considerado um dos
mais contumazes e fervorosos cobradores de impostos de
Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que
praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o
direito das suas vítimas.
Em verdade, o fisco federal, a
polícia, o judiciário não extorquem e tampouco acusam os
cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é a lei.
Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por
exemplo, tutelou-se a Teoria Social da Ação,
oriunda dos gênios de Jescheck e
Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí
perguntar: é socialmente relevante a
conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando,
assim, sobreviver com dignidade, como quer a Declaração Universal
dos Direitos Humanos? É razoável
exigir
conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então
ministro do STJ, ao relatar o Recurso Especial
nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica.
E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”.
Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de
pobreza, vende um CD ou DVD pirata? Por conta disso é que se
trata o fisco como leão. Sucede que a
mesma Bíblia, que apresenta um Cristo que come com
cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz,
assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria
precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não
terem sido achadas na rua, são más. Esses setores de
funcionários públicos (fisco, polícia, ministério público e judiciário), porém,
embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada
em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no
gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um
ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco e aos
demais servidores, também tirado da Bíblia: “já vi de tudo em minha vida
vã: o justo que perece, apesar da sua justiça, e o ímpio que sobrevive
longamente, apesar de sua maldade. Não sejas demasiado justo e
nem te tornes sábio demais: Por que arruinar-te?” (Eclesiastes 7,15
e 16). Portanto,
por que arruinar-se? Já não é ruína bastante ganhar menos
de R$ 0,93 por dia?
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 13/09/2015, Caderno A-7.
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