Opinião pessoal
O Cinturão da OAB
Clóvis Barbosa
Não discuto o
momento histórico da OAB: ela vem honrando o seu passado de luta? Deixou de ser
uma entidade voltada para os interesses da sociedade? Não é mais a vanguarda da
cidadania, nem a verdadeira intérprete das aspirações sociais? Abandonou a
defesa das prerrogativas da profissão? E
assim me comporto por estar afastado temporariamente das atividades
advocatícias. Estou conselheiro do Tribunal de Contas, mas o que eu sou mesmo é
advogado. Ultimamente, uma enxurrada de críticas abate-se sobre a couraça dessa
instituição. No próprio Tribunal de Contas de Sergipe, uma representante do
Ministério Público teceu criticas desairosas à entidade. Não sei o porquê, mas
querem espinafrar a OAB. Querem dispersar os advogados. Não há registros na
história de uma profissão que tenha incomodado tanto. Nem a policia desagrada
como a advocacia. Policiais só chateiam bandidos. Advogados, não. Esses
aborrecem todas as espécies que possam se contrapor à defesa de suas teses.
Sucede que a arma do advogado está na palavra. Sabedor disso, um psicopata, Napoleão
Bonaparte, chegou a declarar que mandaria cortar a língua do advogado que a
usasse contra o seu império. A sorte do déspota francês é que, naquela época,
não existia algo que se igualasse à OAB. Mas se houvesse, ele, certamente, mandaria
destruir a entidade. Em tempos de democracia, contudo, essa conversa de
destruir está meio démodé. Só a
conversa. No íntimo, a destruição ainda é uma gana da humanidade. “Destruir
para vencer” é o lema de alguns. Mas por que a OAB como foco da destruição? Ora,
a tirania não assimila que a OAB seja o que é: combativa e independente. Com
efeito, a combatividade vem da própria ossatura da Ordem. Como o próprio nome
já indica, ela foi instituída para pôr “ordem” no sistema. A estrutura
semântica da expressão “Ordem dos Advogados do Brasil” é, no mínimo, intrigante:
“ordem ‘dos’ advogados”. Há duas interpretações. A primeira está ali onde se
entende que a entidade, ou seja, a Ordem, pertence aos advogados. Assim, a
preposição “dos” acenaria para um cenário de posse.
Sede da OAB Nacional
Por outro lado, a
segunda interpretação se alicerça na idéia de que a ordem, a organização da
advocacia brasileira, seria levada por ela à sociedade. Numa palavra, os
advogados do Brasil haveriam de impor ordem aos demais estamentos sociais. Essa
parece ser a melhor exegese, até porque acha supedâneo na linguagem que a
Constituição Federal emprega para tratar a advocacia. Por exemplo: um concurso
para a magistratura, seja ele estadual ou federal, só vale se a Ordem o
acompanhar. Concursos para delegados de polícia de carreira exigem a
participação efetiva da OAB, sob pena de nulidade do certame. Um quinto das
vagas dos tribunais estaduais e federais é composto, em sua metade, por
juristas elencados pela OAB. A OAB tem a
prerrogativa de escalar ora cinco, ora seis advogados para a composição do
Superior Tribunal de Justiça, o STJ, o que equivale à metade de um terço das
vagas desse sodalício, considerada, ademais, a alternância que deve haver entre
um maior número de advogados e um maior número de ministros egressos do
Ministério Público. A OAB tem legitimidade universal para propor ações diretas
de inconstitucionalidade em face da Constituição Federal, independentemente da
origem do ato normativo questionado. Em síntese, a OAB a todos fiscaliza. Ela
traduz um verdadeiro big brother, na
linguagem de George Orwell: um olho que tudo vê, uma mão que tudo controla.
Mas, em matéria de controle, a OAB não está só. O TCU também tem sua gênese
carimbada pela alma do controle. Na verdade, o tribunal de contas da união
auxilia o congresso nacional no que toca à fiscalização financeira dos órgãos
públicos em sua totalidade. Entretanto, o art. 70 da CF, assim como o seu
parágrafo único, estabelece que serão fiscalizadas as entidades da administração
direta ou indireta do Estado, na acepção máxima: União, Estados, Municípios e
Distrito Federal. Ademais, também deve ser fiscalizada a entidade que use
dinheiro público.
Pois bem, a OAB integra
a administração direta ou indireta? A OAB usa dinheiro público? A resposta é “não”
para ambas as indagações. E isso por uma razão ímpar: a OAB é ímpar. A OAB é uma autarquia especial. Especial exatamente porque não
existe outra autarquia que se compare a ela. A rigor, o Estatuto da Advocacia
aduz, no art. 44, § 1º, que “a OAB não mantém com órgãos da administração
pública qualquer vínculo funcional e hierárquico”, coisa que se dá com as
demais autarquias. Em agosto de 2004, o Superior Tribunal de Justiça, através
de voto do Ministro Castro Meira, decidiu que, “embora definida como autarquia
profissional de regime especial, ou sui
generis, a OAB não se confunde com as demais corporações incumbidas do
exercício profissional”, arrematando que “não se encontra a entidade
subordinada à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial, realizada pelo Tribunal de Contas da União”. Por quê? Fácil,
porque a OAB, consoante o próprio STJ, não recebe dinheiro público, já que “as
contribuições pagas pelos filiados à Ordem não têm natureza tributária”. Em
junho de 2006, o pleno do STF, ao julgar a ADIn 3026-DF, preconizou que “não
procede a alegação de que a OAB se sujeita aos ditames impostos à administração
pública direta e indireta. A OAB não é uma entidade da administração indireta
da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria impar no elenco das personalidades
jurídicas existentes no direito brasileiro. Por não consubstanciar uma entidade
da administração indireta, a OAB não está sujeita a controle da administração,
nem a qualquer das suas partes está vinculada. A OAB ocupa-se de atividades
atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada,
na medida em que são indispensáveis à administração da justiça (art. 133 da
CF). É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de
advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão
público”.
Como, então,
querer impor à OAB uma prestação de contas ao Tribunal de Contas da União nos
moldes daquilo que é feito pela administração pública em geral? Estranho! Estranho
mesmo! Mas algumas noções de justiça, por exemplo, são estranhas mesmo. Isso
lembra um conto, “Um cinturão”, que compõe o livro “Infância”, publicado por
Graciliano Ramos lá pelos idos de 1945, quando acabava a segunda guerra
mundial. Nele, o mestre alagoano narra que quando tinha uns quatro anos
brincava em um canto da casa, enquanto seu pai dormia na rede. De repente, o
velho rabugento acordou-se. O rosto amuado; o espírito, indisposto. Onde
estaria o seu cinturão? Nada de achá-lo. Graciliano ia ter que dar conta da
desgraça que o pai buscava. Não deu. Caiu no pau. Uma surra da qual nunca se esqueceu.
Não pela surra em si, mas pela cobrança indevida. Pela injustiça: o pai houvera
esquecido o cinturão na rede em que cochilava. Após encontrar o que queria, o
verdugo desapareceu. Sequer esboçou um pedido de desculpas por ter cobrado algo
de quem nada devia. Por ter fustigado alguém que não merecia reprimenda. Graciliano
diz que, miseravelmente, esse foi o primeiro contato que teve com a justiça. A
OAB, diferentemente, já teve vários contatos com a justiça. Aliás, teve até a sua
biografia estilhaçada por bombas. Que o diga agosto de 1980, quando radicais de
extrema-direita enviaram uma carta-bomba à sede da Ordem, na Avenida Marechal
Câmara, Castelo, no Rio de Janeiro, para matar seu então presidente, Seabra Fagundes.
Terminaram assassinando a secretária, Lyda Monteiro, que morreu lúcida.
Especialmente, com lucidez cívica. De fato, civismo e civilidade não são
ingredientes muito comuns aos que não sabem da história da OAB. Engraçado que,
agora, querem apresentá-la a uma nova espécie de justiça. Uma que cobra de quem
não deve. Uma que, alem de ter os olhos vendados, anda com um cinturão a
açoitar o primeiro que “vê”.
Post Scriptum
Os Insultos de Churchill
Atribui-se a Winston Churchill, um dos maiores
líderes políticos do século XX, a reputação de exímio atirador de golpes
devastadores contra os seus críticos e adversários políticos. Sabia, como
ninguém, desvencilhar-se dos ataques que lhes eram desferidos com respostas “na
lata”. Certa vez, a parlamentar inglesa Bessie Braddock, falou para ele: “Winston,
você está bêbado; mais ainda, repugnantemente bêbado”. Ele respondeu: “Bessie,
minha cara, você é feia; mais ainda, repugnantemente feia. Mas amanhã estarei
sóbrio e você ainda será repugnantemente feia”. Em outra oportunidade, num
encontro casual com a mesma parlamentar, novo embate foi travado por ambos. Ela
lhe disse: “Se eu fosse sua esposa, colocaria veneno no seu café”. E Churchill:
“Se eu fosse seu marido, eu beberia”. Ao oferecer uísque com soda a um
visitante mórmon, este indagou de Churchill, se não poderia ser servido de
água, pois “os leões bebem é água”. A resposta imediata foi: “os asnos também
bebem”. Durante um tempo breve Churchill cultivou um bigode. Uma jovem moça foi
apresentada a ele. Ela disse para ele: “Existem duas coisas que eu não gosto em
você – seu novo bigode e seu novo partido político”. Ele: “Por favor, não se
aflija, é muito pouco provável que você venha a entrar em contato com qualquer
dos dois”. Falam também que certa manhã, quando estava sentado num vaso
sanitário, um assessor bateu na porta do banheiro avisando que um burocrata
muito chato insistia ao telefone em lhe falar. O premiê não perdeu tempo: “Diga
a ele que eu só posso lidar com um cocô de cada vez”. Ao informar a um repórter
que tinha visto as Cataratas de Niágara antes dele nascer, “estive aqui pela
primeira vez em 1900”,
o mesmo indagou “se elas têm o mesmo aspecto”? Ele respondeu: “Bem, o princípio
parece que continua o mesmo. A água ainda teima em cair”. Quem quiser conhecer
outras histórias desse grande estadista, recomendo a leitura de A sutileza bem-humorada – Winston Churchill
– Suas Grandes Tiradas, organizado por Richard M. Langworth, Odisseia
Editorial.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 03/01/2016.
- As fotos constantes da presente publicação foram retiradas do Google.
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