quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
Carta de Araripe
Opinião pessoal
Carta de Araripe
Clóvis Barbosa
No dia 22 de maio
de 2011, às 13 horas e sete minutos, recebi um e-mail do poeta e jornalista Araripe Coutinho. Era um texto sobre
as fotos que ele tirou no museu do palácio Olímpio Campos quando do seu
processo de restauração. As fotos de Araripe, em poses sensuais, bombou nas redes sociais com as piores
maledicências e carregadas de preconceitos, ironias e zombarias. Li alguns dias
depois e me impressionei com o seu teor, não só pela riqueza do estilo, mas,
principalmente, pela qualidade das informações contidas. Não sei se ele
publicou em vida. Se o fez, vale a pena rever esse talento que transportava
para a prosa toda a essência de sua poesia: “As fotos no museu. Durante a
apresentação da peça Tristão e Isolda em 2003, Gerald Thomas não gostou das
vaias do público e respondeu mostrando a bunda e simulando uma masturbação. O
fato chocou a plateia e rendeu um processo para o diretor. O Supremo Tribunal Federal
decidiu que Gerald não cometeu nenhum crime, seus atos mesmo que obscenos fazem
parte da liberdade de expressão, ainda que em um espaço público. As fotos que
tirei no museu Olímpio Campos, nem a bunda eu mostrei. Fotos meramente artísticas e poéticas – uma visita
à Botero, Modigliani e Caravagio. Não houve propósito em macular a imagem do local,
- uma vez que eu o usei com uma orquestra para lançar meu livro há 10 anos,
ali. Algo tão devastador, tão simulacramente divino, que todos poderiam deixar
o prédio vir ao chão, menos eu, que o amo – desde quando Eurico Luiz, que foi
quem primeiro começou a restaurar no Governo Valadares, e morreu à míngua sem nenhum apoio.
Araripe com Jô Soares
Não pude acreditar em tudo que
aconteceu: fotos nos sites, montagens, histórias em quadrinhos, ofensas, e-mails
enviados a milhares de pessoas, notas oficiais e etc. Do alto dos meus bem 42
anos, vendo a arte sempre como algo que tem que tirar as pessoas da poltrona, caminhei
pelo corredor da minha casa dando explicações aos radialistas por mais de duas horas.
No mesmo mês em que John Lennon é a capa da Rolling Stonnes, completamente nu,
de cabeça para baixo, em cima de Yoko Ono, de calça jeans. E Caetano com a mulher
e o filho nu na capa do vinil, quase foram queimados. Que mal poderia haver
naquelas fotos, por ser em palácio-museu? Mas não estava abandonado, detonado,
fechado, sem segurança, totalmente destituído de qualquer cuidado? Como eu não poderia
fazer as fotos renascentistas para o meu livro, guardadas para uma futura
exposição, e detonadas na net com
tamanho furor? Qualquer pessoa ao olhar para as fotos, não vê absolutamente nada
de vulgar, infame, imoral. A verdade, mesmo o episódio tendo me levado à nocaute,
à cama, eu pude ver como a sociedade de uma maneira geral tem sede do novo, do
inusitado, do grupo galpão, do Imbuaça em alguns espetáculos, das peças que vão
de encontro ao establishment. Comumente, as pessoas aproveitam fatos assim para
expor suas complexidades internas, traumas infantis, preconceitos vários e
defesa do patrimônio que é do povo, mas que nesta hora é sacralizado como algo
intocável, santo.
No meu
girar de percepções acreditei mais uma vez em Marcelo Déda, governador do estado,
que não emitiu opinião falso-moralista, mandando apenas apurar o que aconteceu
à época. No fundo, ele percebeu que não havia nenhum tsunami vindo em direção
ao nu artístico, perpetrado por um poeta em fim de carreira. Havia arte.
Mexendo, aí sim, com a falta de coragem de uma sociedade conservadora e cruel.
Se o fato não é o que mostrar, mas onde foi mostrado, que diferença há de haver
se não feriu em nada, tais fotos, não mostram nada, não há ninguém, ao fundo,
insinuando nada, apenas o poeta, deitado numa cheese long, mais comportado que
os anjos da capela sistina, pintados por Leonardo da Vinci. A quem pedir
desculpas, peço. Não houve desejo de afrontar nada nem a ninguém. Precisamos
nos despir do nosso falso moralismo, abrir as mentes para que ‘afinal floresça’,
algo novo. Destituído de qualquer capa de culpa, preconceituosos que somos com
tudo que não conhecemos, ao fundo. Desconhecemos nossos próprios monstros e
apontamos o desconhecido como legítimo demônio. Água para elefantes. Quando
Galileu Galilei, Joana D´arc, Giordano Bruno foram levados à fogueira a Igreja
eximia-se da culpa no famoso caça às bruxas e morte na fogueira. Muito
contrário do que as pessoas pensam, a morte na fogueira já existia na Roma e na
Grécia antiga. Foi abolida com a ascensão do Cristianismo, mas retornou na idade
Média não por ação da Igreja, mas pela ação do rei Roberto, o Piedoso, que
mandou queimar 14 cátaros no ano de 1022 na cidade de Orleans (França) e também
pela ação de reis como Raimundo VIII e Raimundo V. Hoje ainda mandamos sempre
alguém para a fogueira.
Araripe com o governador Marcelo Déda
Assim,
como ensina Sartre comparando a vida humana a um jogo de rúgbi a que se assiste
sem conhecer as regras: ‘Vi alguns adultos se golpeando uns aos outros e
derrubando-se para fazer passar uma bola de couro entre dois paus.
Recapitulando o que vi, não lhe alcancei o sentido, parecendo-me tudo uma
piada. Não há dúvida de que, se a vida do homem se resume a um jogo em que se
luta para alcançar uma meta, a custa de golpes e empurrões, ainda que o êxito
seja obtido, uma hora acaba a partida, como termina a vida. Quando o entusiasmo
do campo já não tem valor algum, foi porque aquele jogo nunca teve algum sentido.’
Despojemos nossas vestes rotas, caminhemos sobre trigais amarelecidos e plenos
como dizer ‘olhais os lírios do campo, eles não tecem nem colhem...’ Aviltados,
sonhamos com um mundo ideal mas nascemos imperfeitos e morremos sós. No começo
do século XX, Marcel Duchamp resolveu enviar a uma exposição de arte um
mictório deitado ao contrário e pintar bigode e cavanhaque sobre uma cópia
barata da Mona Lisa, mudando o nome do famoso quadro de Da Vinci para “LHOOQ” (uma
brincadeira com os sons dessas letras que, em francês, significa “ela tem fogo
no rabo”). Por que esses dois atos se tornaram famosos e até hoje são
discutidos em rodas intelectuais e aulas de belas-artes é justamente a razão
pela qual se discute a função da obra de arte. De modo subversivo e ao mesmo
tempo iconoclasta, isto é, com desejo de ver a obra de arte livre do ambiente
fechado em interesses mercadológicos e conceituais, Duchamp reinventava a
questão “o que é arte”, propondo que mesmo os objetos já prontos (os chamados
ready made) podem ser vistos como artísticos.
Araripe com o jornalista Anselmo Góis
A
partir de Duchamp, como classificar o que é um objeto de arte? Ligar arte à
subversão não é um privilégio, nem mesmo uma primazia de Duchamp. Hieronymus
Bosch e Pieter Bruegel, nos séculos XV e XVI, já traduziam em suas pinturas a
vontade de se rebelar contra normas estéticas e sociais. – diz Alexandre Amorim
em belíssimo ensaio. Quando teremos, afinal, um Botero em praça pública, um gay
assumido na Academia de Letras, ou na reitoria do Campus? Não há como prever.
Hitler está vivo. Ele caminha desesperadamente entre nós, com sua câmara de
gás, seu kit-mídia, sua internet de leprosos. Somos aqueles, que assistem
calados, o inocente que vai ao cadafalso. A cada hora, a cada minuto, matamos o
Deus que nos deu a vida. Destituídos de qualquer misericórdia, confundimos sexo
com religião, saúde pública com plano particular, arte com puritanismo. Quando
Gerald Thomas mostrou a bunda no teatro, ao ouvir “mande esse judeuzinho de
volta pra casa”, ele estava certo. Não esperava que depois de tantos anos, em
pleno século XXI, mesmo depois da queda impossível do muro de Berlim, com uma
mulher na Presidência do Brasil e um negro na dos EUA, pudéssemos continuar os
mesmos e vivendo como nossos pais.
Post Scriptum
A desmunhecada baiana
Jorginho, Luizinho e Paulinho - um deles já avô, os
demais pais de família com filhos adolescentes - na sua juventude, tinham um sonho
que era o de conhecer a bela capital baiana. Faziam teatro no início da década
de 70 movimentando a ambiência cultural de Aracaju. Juntaram os trocados e
resolveram conhecer a metrópole. Nunca tinham viajado. No máximo, São
Cristóvão, Estância e Propriá. Luizinho sempre ia ao Riachão do Dantas, sua
terra natal. Estavam ansiosos. Paulinho, no entanto, exagerou. Levou uma mala gigantesca
para uma viagem tão breve. Na mala apenas duas cuecas, três camisetas, um
suspensório, uma pasta dental, escova, um sabonete phebo e um Lancaster,
perfume da moda à época. Tudo caberia numa pequena sacola. Os três apenas
levaram uma calça jeans. Saltaram na rodoviária das Sete Portas em Salvador e
foram caminhando pela Baixa dos Sapateiros, Pelourinho (na época era também
conhecido como Maciel de Cima e Maciel de Baixo, zona do baixo meretrício), até
chegar no Terreiro de Jesus, onde se hospedaram na pensão do sergipano
Gonorreia. Eles ficaram impressionados ao passar pelo Maciel com as putas
oferecendo seus serviços. Teve uma que, para mostrar a sua expertise na arte
secular da prostituição, pegou uma banana de uns 40 centímetros e, num movimento
de vai-e-vem na boca, engoliu a fruta totalmente. Uma espécie de garganta
profunda que abismou a meninada. Fizeram os planos para os locais que desejavam
conhecer. Luizinho, a praça Castro Alves e a Lagoa do Abaeté; Paulinho, a
Igreja do Bomfim; e Jorginho, o teatro
Vila Velha e o Instituto Cultural Brasil-Alemanha, o ICBA, no Corredor da
Vitória. Paulinho tinha ouvido na música de Caymmi que pra ir ao Bonfim tinha
que ter balangandan. Encheu o saco de Gonorreia para saber o que era aquilo e
onde se comprava tal apetrecho. Gonorreia, que não era besta, vendeu uns
colares velhos do afoxé “Mercadores de Bagdá”, dizendo que ele estava pronto
para conhecer a Igreja do Bonfim, na sagrada colina. No dia seguinte, seguiram
pela rua Chile, o point de Salvador.
Iam conversando amenidades, como as 365 igrejas, uma para cada dia do ano, os
novos baianos, Paulinho Boca de Cantor, Pepeu, Gil, Caetano, Gal, Bethânia,
cinema baiano, quando, de repente, Jorginho, que era o mais animado, vestido à la Fred Mercury, com suspensório e
camisa colante, pegou nas mãos dos dois colegas, olhou de soslaio para um lado
e para outro e não se conteve: “Gente, já que estamos em Salvador, a terra
libertina, des-mu-nhe-que-mos! Uau!!!”. E desceram saltitantes a ladeira que dá
acesso à praça Castro Alves.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 17/01/2016, caderno A-7.
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