segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
Por que eu?
Opinião pessoal
Por que eu?
Seis horas da manhã de um dia em 1971 ou 1972.
Minha mãe me acorda e diz que um homem, num “carro de rico”, queria conversar
comigo. Dissera que era da Universidade Federal de Sergipe. Tremi nas bases. Uma
semana atrás tinha sido chamado na Polícia Federal para falar com um delegado.
Fui colocado numa sala escura e comecei a ser inquirido sobre minha militância
política e o porquê das ofensas ao “regime democrático” comandado pelos
militares. O prédio onde prestei depoimento era na Rua Campos, onde foi
assassinado o médico Carlos Firpo, crime que abalou a cidade no fim dos anos
50. Vivíamos o governo do General Emílio Garastazu Médice, um dos mais
violentos do período militar. A repressão avançou e a tortura se tornou uma
prática corriqueira no interior de delegacias e presídios espalhados pelo
Brasil. O delegado, cujo rosto eu não via, foi muito ríspido comigo: - Você é um comunista de merda! - Qual a sua moral para falar de crimes no
regime militar? – Você sabe quantas
pessoas Stalin matou na Rússia? – Ele
sim é que era ditador. - Você sabe quantas pessoas foram fuziladas por Fidel Castro
em Cuba? – Ele
sim é que é ditador. – Por que não
vai embora pra Cuba ou Rússia? – Você
vive num país em franco desenvolvimento, era do milagre econômico. – Estamos tendo um crescimento econômico na
casa dos 10% ao ano. – E você vem com
essa história de criticar o governo?! Num dos poucos momentos que falei,
disse pra ele que não era comunista e que a minha luta e dos estudantes de
Sergipe, naquele momento, era pela construção de uma casa do estudante e do restaurante
universitário, ao que ele redarguiu: – Porra
nenhuma! O Senhor e seus colegas querem é derrubar o regime. Eu estou de olho
no Senhor e nos seus colegas e vou fazer um relatório para o reitor expulsar vocês
todos, cambada de subversivos! O homem sabia tudo da minha vida: o banco em
que trabalhava, os bares que frequentava, minhas viagens quando era presidente
do Centro Acadêmico Sílvio Romero da Faculdade de Direito. Foram cinco longas
horas entre a espera para a audiência e o festival de grosserias.
Também, nesse período, a Assessoria de
Segurança e Informação (ASI) da UFS havia aberto um processo contra mim, Jonas
Amaral, Átalo Crispim e Vivaldo Sobrinho. É que nós fizemos discursos na porta
da reitoria, à época na Rua Lagarto, pleiteando a casa do estudante e o restaurante
universitário. Não me recordo se cheguei a ser ouvido, mas os professores que
faziam parte da comissão comentaram que seríamos expulsos por força do Decreto-Lei
nº 477, chamado de “AI-5 das universidades”. Assinada em 26 de fevereiro de
1969, pelo então presidente Arthur da Costa e Silva, a norma previa a punição
de professores, alunos e funcionários das universidades. Os docentes e
servidores punidos eram demitidos e ficavam impossibilitados de trabalhar em
qualquer outra instituição federal de ensino por cinco anos, enquanto o
estudante era expulso e ficava proibido de cursar qualquer universidade no
país. Qualquer ato que viesse de encontro ao sistema, fosse incitação à
deflagração de paralisação das aulas, passeatas, desfiles, comícios,
distribuição de material contendo críticas ao governo, ou mesmo o uso da
dependência ou recinto escolar para reuniões de cunho político, tudo era motivo
para abertura de um processo sumário. Coordenado pelo órgão de segurança da
instituição de ensino, o suposto infrator era citado para oferecer defesa em 48
horas. Nesse mesmo prazo, o presidente do inquérito era obrigado a elaborar um
relatório especificando a infração cometida, o autor e as razões do seu convencimento.
Encaminhava para o reitor que tinha idêntico prazo para proferir sua decisão,
sob pena da prática do crime de prevaricação, definido no artigo 319 do Código
Penal. O reitor ainda era obrigado a remeter aos órgãos de segurança,
mensalmente, um relatório dos processos em andamento contra estudantes,
professores e funcionários. Vivíamos um tempo de terror. Desde a edição do
AI-5, em 1968, estava proibida a existência da entidade nacional de
representação dos estudantes universitários, a União Nacional dos Estudantes - UNE,
e de entidades estaduais, os diretórios centrais de estudantes - DCEs.
Os centros acadêmicos foram ocupados, por
algum tempo, pela ditadura e entregues a estudantes reacionários que atuavam
como interventores. No pós-intervenção, fui o primeiro presidente do Centro Acadêmico
Sílvio Romero da Faculdade de Direito. Ainda nessa fase, militava em duas bases
do Partido Comunista Brasileiro, a dos bancários e a dos estudantes de direito.
A minha vida era uma correria: bancário, estudante, representante dos
estudantes no Conselho Universitário da UFS, dupla militância política, no PCB
(clandestino) e MDB (membro do Diretório Municipal), diretor da JOVREU, uma
entidade de fins culturais, além de escrever sobre cinema para jornais. Para
encher a minha cabeça de dúvidas com aquela visita inesperada do reitor em
minha casa, lembrei-me que tinha recentemente participado de um debate com o ministro
da educação, Jarbas Passarinho, na sala dos conselhos da UFS, quando de sua
visita à Universidade. Perquiri ao mesmo sobre o Decreto-Lei nº 477, sobre a
reabertura da UNE e dos DCEs e reivindiquei a edificação da casa dos estudantes
e do restaurante universitário. Sobre o Decreto, afirmou que não foi sua a
autoria, mas do ex-ministro da pasta, Tarso Dutra. Disse que, nos procedimentos
com base nesse Decreto-Lei, só caberia ao ministro da educação rever os casos
de absolvição proferidos pelo reitor ou diretor de uma faculdade isolada. Ou
seja, o ministro só tinha o poder de intervir se o aluno fosse absolvido. E ele
contou que modificou essa práxis com o seguinte argumento: se posso condenar
quem tinha sido absolvido, quero então absolver os condenados. A partir daí
todos os processos de condenação ou absolvição foram parar no seu gabinete.
Isso, segundo ele, foi ruim, pois passou a ser tido como o dono do 477. Afirmou que nunca condenou um aluno ou professor pela prática da livre manifestação, a não ser em casos de participação na luta armada para tomada do poder. Não respondeu sobre a reabertura das entidades estudantis, mas, a respeito da casa dos estudantes e do restaurante universitário, pediu ao reitor que encaminhasse um projeto ao MEC, a fim de estudar a possibilidade de sua implantação na UFS.
Apesar de não termos sido tratados
grosseiramente pelo ministro, mas aqui e ali com certa ironia, eu e Átalo
Crispim, outro representante dos Estudantes, não ficamos bem vistos. Alguns membros
dos conselhos – universitário e de ensino e pesquisa – passaram a nos observar
com olhares “atravessados”. E nós “nem aí” para eles. Para maior desconforto desses
professores, no final da reunião, o ministro, ao lado do reitor João Cardoso, falou
para mim que eu tinha razão: - O Decreto-Lei
nº 477 é mesmo draconiano. Ao que retruquei: - E por que não revoga? Afinal, Vossa Excelência é o ministro da educação. Ele apenas riu. Agora, eu mudando a minha
roupa e pensando o que era que o reitor João Cardoso queria comigo. Um filme
passava em minha cabeça. Estava nervoso, branco como um papel e quase não
conseguia me manter em pé. Saí e avistei o reitor João Cardoso e perguntei o
que estava acontecendo. Ele me convidou a entrar no Galaxie da reitoria e disse que queria falar comigo. Embarquei ao
seu lado no banco traseiro. Ele disse: - Nós
vamos ali conversar com Dom Luciano Duarte. Estamos precisando de você. E
começou a fazer uma série de ponderações a respeito da pressão que sofreu e
estava sofrendo para punir estudantes. Falou das prisões em Ibiúna, de Gama,
Benedito Figueiredo, Wellington Mangueira, Jackson Barreto e tantos e tantos outros
estudantes que estavam na mira dos órgãos de repressão; das ameaças que estava
sofrendo por não tê-los expulsado da Universidade; das conversas que teve com o
ministro da educação e com representantes da linha dura do governo. Dizia que
não aguentava mais a solidão do cargo e estava pensando até em renunciar. Enfim,
representando ou não, ele começou a tocar o meu coração. Eu indaguei: - E o que eu posso fazer por Vossa
Magnificência? Eu não tenho como ajudá-lo. Eu não sou nada, não represento nada
e, o que é pior, eu combato esse regime que está aí. Eu sinto muito! Nisso chegamos à Diocese. Dom Luciano nos esperava.
Na época ele já era arcebispo de Aracaju e exercia um alto cargo num órgão
federal, não sei se no MEB ou no MEC.
Retornamos a conversa e eu morrendo de curiosidade, apesar de não ter ainda me recuperado da surpresa daquela visita. Dom Luciano disse: - Precisamos de você.
O presidente Médice está chegando hoje a Sergipe e você vai acompanhar o reitor
João Cardoso no palácio do governo. Você, o governador Paulo Barreto e o reitor
João Cardoso. Levantei-me e respondi aos dois: - Vocês estão loucos! Se eu comparecer a esse ato de “beija-mão” vou ser
fuzilado pelos meus companheiros! Será a minha destruição como homem de
esquerda! Imagine?! Os dois ficaram alguns minutos calados e eu andando de
um lado para outro na sala de estar e resmungando: - Não, não e não! João Cardoso repetiu toda a história que tinha me
falado antes. Dom Luciano foi mais duro: - Tá
bom! Quando o Senhor precisou de mim para salvar o seu amiguinho Wellington Mangueira eu prestei. Agora o Senhor me dá as costas! E passou a falar de
uma parábola bíblica que me sensibilizou naquele momento. Olhava para o reitor
e seus olhos me imploravam aquele favor. Não tive nem tempo de perguntar por
que eu, e não Átalo Crispim ou Vivaldo, estudantes de medicina. Comecei a
pensar nas consequências daquela minha presença com o ditador. Via Marcélio
Bomfim, Jackson Sá Figueiredo, Mário Jorge, Tina, Major João Teles, Carivaldo,
Bitencourt, Virgílio, Pedro Hilário, Jackson Barreto, Jonas Amaral e tantos
outros, no bar de Burguesia, com os dedos em riste apontando para mim: - Traidor! Acordei de repente, me quedei
inerte e disse para ambos: - Eu irei!
Entro com o reitor, aperto as mãos do ditador e desapareço! A alegria
brotou nos olhos do reitor e Dom Luciano disse: - Eu sabia que você era um bom cristão! João Cardoso me deixou em
casa e ficou de retornar às 11 horas. Compareci ao Palácio Olímpio Campos, cumprimentei
o governador Paulo Barreto e o presidente Médice... e desapareci. À noite,
vasculhei os jornais de Aracaju atrás de fotografias minhas no evento. Achei
três na Gazeta de Sergipe e retirei do seu arquivo com a complacência do
fotógrafo Luiz Carlos. Nunca meus companheiros souberam desse encontro. E eu
nunca soube o porquê da minha presença.
- Artigo publicado
na revista Cumbuca, Aracaju-SE., décima edição.
- Artigo publicado
no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 31 de janeiro de 2016
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