segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
Je Suis Locke
Artigos Diversos
Je suis Locke
Charges do Charlie Hebdo:
Liberdade de Expressão x Tolerância Religiosa
Por Paulo
Gustavo Guedes Fontes (*)
Lamento profundamente o assassinato
dos jornalistas da Charlie Hebdo. Repudio o terrorismo e a violência.
Mas não sou Charlie. Je suis Locke, que em fins do século XVII escreveu
sua “Carta sobre a tolerância”, um dos textos fundantes da modernidade sobre a
laicidade e a convivência entre as religiões. Não se trata de tolerância com os
intolerantes. Nenhuma trégua ao terrorismo. Nenhum recuo na laicidade
conquistada a duras penas nos países ocidentais. A imposição de preceitos
religiosos na vida civil já era rejeitada por Locke. Mas a laicidade existe
justamente para que as religiões possam conviver em paz.
Todo direito tem limites, mesmo os
direitos fundamentais. Nenhum direito é absoluto, eis a lição comezinha dos
manuais de direito constitucional. A regra geral da liberdade pode ser
atribuída ao utilitarista John Stuart Mill, com seu princípio do dano (harm
principle): somos livres para fazer o que quisermos, desde que não
prejudiquemos o outro. As fronteiras entre os direitos e o que pode ou não ser
considerado prejuízo para os outros variam, evoluem. Alguns consideram que os
direitos fundamentais têm limites intrínsecos — ninguém, em nome da liberdade
artística, tem direito de armar seu cavalete e pintar atrapalhando o trânsito.
O limite integraria o conceito do próprio direito em questão. Outros entendem
que direitos fundamentais são a priori ilimitados e os limites só
aparecem se e na medida do necessário, segundo a lei do sopesamento entre os
princípios e direitos em colisão. Controvérsias teóricas à parte, a ideia de
limites aos direitos é intuitiva e aceita amplamente no mundo jurídico.
A liberdade de expressão tem lugar de
destaque entre os direitos fundamentais. Em termos de importância talvez só
sofra concorrência da liberdade de locomoção. E se desdobra numa miríade de
outros direitos: liberdade política, religiosa, de imprensa, liberdade
artística e científica, etc. É extremamente difícil lhe impor limites. Mesmo o
politicamente correto em voga não pode servir de censura. Lolita, de
Nabokov, considerada uma obra-prima da literatura universal, trata de um caso
de pedofilia, narrado com vigor, erotismo e profundidade psicológica. Querer
suprimir trechos supostamente racistas de Mark Twain e Monteiro Lobato é
ridículo.
Mas os limites existem. Alguns mais
banais, como a proibição de caluniar, difamar e injuriar. Outros podem
surpreender. Em alguns países da Europa é crime praticar o “negacionismo”: não
se pode negar que o Holocausto existiu. Jean-Marie Le Pen, ex-líder do Front
National-FN, que propõe agora o fechamento das fronteiras da França, já foi
condenado criminalmente por declarações desse tipo. O artigo 20 da nossa Lei
7.716/89 assevera ser crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
E em 2003 o Supremo Tribunal Federal
manteve a condenação de Ellwanger por crime de racismo, em razão de publicações
de conteúdo nazista.
A pergunta que me faço, e que de
alguma forma foi ventilada nos últimos dias, ao lado da indignação com os atos
terroristas, é se as charges do Charlie Hebdo não extrapolam esses limites. Se
não do ponto de vista jurídico, quiçá de uma perspectiva ética ou política. Não
sou religioso, mas as religiões fornecem a seus fiéis suas crenças e valores
mais caros. Será que precisamos desse humor? Um ato sexual entre Deus, Jesus e o
Espírito Santo, a nudez de Maomé com alusão à estrela de Davi, etc? Parece
divertido para alguns, podemos admirar a irreverência e coragem dos
cartunistas, mas por que se veria aí uma liberdade ilimitada, incapaz de
respeitar o sentimento religioso?
Devemos tentar conviver melhor com o
islamismo moderado, ele existe e é majoritário. Levá-lo a criticar o extremismo
“de dentro”. Com os que são capazes da tolerância, ela é o melhor, talvez o
único caminho para o século XXI. E tolerância exige aceitação do outro,
consideração por seus valores, respeito e comedimento: até quanto aos limites
do nosso riso.
O autor - Paulo Guedes
- Publicado
na Revista Consultor Jurídico, 16 de janeiro de 2015, às 17h15min.
(*) - Paulo Gustavo Guedes
Fontes foi procurador da República em Sergipe. Atualmente é desembargador
federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
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