sábado, 29 de agosto de 2015
Meu Irmão Déda - Etnia, Idioma e Similitude
Artigo pessoal
Meu irmão Déda:
Etnia,
idioma e similitude.
Clóvis Barbosa
Não queria me
despedir de Déda. Ficaria em casa naquela segunda-feira. O traslado do seu
corpo já havia sido feito, e ele estava sendo homenageado pelo povo e
autoridades, inclusive a presidente da república, no prédio que ele mandou restaurar, o Palácio Olímpio Campos. Um filme passou
pela minha mente. As imagens surgiam como se estivéssemos voltando a trilhar os
mesmos caminhos andados em 37 anos de amizade, forjada no amor e nas
divergências. Muito carinho de um pelo outro, mas brigas também. Tudo começou
no Colégio Atheneu, onde fui dar um curso de história do cinema ao lado de Nilo
Jaguar, Djaldino Moreno, Alberto Carvalho e Antônio Jacintho Filho, onde quatro
meninos mostraram interesse pelo curso, Déda, Oliveira Júnior, Aragão e Evandro
Curvello, quarteto que só andava junto e partilhava dos mesmos interesses
culturais. Depois, veio a política, no PT e nos movimentos sociais, a
advocacia, no início de sua carreira, a noite, no Baixo Barão, Scooby-Doo, Bar do Vinícius, Gosto Gostoso e tantos outros. De 1990 a 1996, ficamos de mal,
embora em 1994 ele recebesse o meu voto, da minha família e amigos na sua
candidatura vitoriosa a Deputado Federal. Não nos falávamos. Mas eu sempre
falava dele, e ele de mim para amigos comuns. A noite
chegava e minha angústia aumentava cada vez mais.
Não, eu tenho que ir ao Palácio
Olímpio Campos. Eu tenho que vê-lo pela última vez. Olho seu rosto, dou-lhe um
beijo e volto para casa. Uma multidão na praça. Consigo entrar pelos fundos e
subo, cambaleante, a escadaria até a sala onde o seu corpo estava estendido. Ao
vê-lo, a emoção tomou conta de mim. Choro bastante. Recomponho-me e passo a
imaginar o cenário criado pelo poema de Walt Whitman, O Captain! My Captain. Subverto o texto e passo a me exprimir em
voz baixa: - Sobre o deque meu capitão jaz, frio e morto tombado, enquanto lá
fora as bandeiras do PT tremulam. Pedi-lhe: - Ergue-te, Ó capitão! Meu capitão!
A nossa viagem ainda não está finda, Ó capitão! Meu capitão! Ergue-te e ouve os
sinos; ergue-te - o clarim garganteia, por ti buquês e grinaldas engalanadas -
por ti eles chamam, a massa oscilante volta-lhe suas faces ansiosas; eis
capitão! Querido amigo! Este braço sob sua cabeça colocado! - Meu capitão não
responde, seus lábios estão pálidos e silentes. Meu querido amigo não sente meu braço, não tem pulso, a vontade ausente.
Lembrei-me do
seu aniversário de 50 anos. Fiz um artigo com o mesmo título do poema de Walt
Whitman. Ali, eu perquiria que fatores identificariam os homens, a ponto de
uni-los mediante laços de afeto? O que levaria alguém a não medir sacrifícios
por um amigo e, até mesmo, a definir outrem como tal? Por que nós nos ajuntamos
em bandos, grupos, partidos ou tribos, projetando marcas que nos distinguem de
outros, em face dos quais não encontraríamos afinidade? Após filtrar, com
rigor, ideias que deixei fluir com naturalidade, creio ter chegado a uma
razoável conclusão. Segundo elas, três seriam os ingredientes que imantariam os
indivíduos, irmanando-os e fazendo deles emergir uma mesma frequência, na forma
de acordo com a qual captariam a sonoridade do mundo, ou no modo de enxergar as
aflições que nosso coração faz ecoar pelas curvas da vida. Penso que etnia,
idioma e similitude de propósitos são os pilares que nos põem no mesmo bloco.
Por isso,
emocionei-me com a homenagem que se prestava ao nosso Déda, que estava
completando meio século naquele ano de 2010. Que beleza! Nessa fase da vida, o
alemão Bach já havia formatado a Arte da
fuga e escrito seus mais importantes trabalhos, a exemplo de O cravo bem temperado e da Paixão segundo São Mateus. Quando Bach tinha
cinquenta anos, adveio-lhe o filho caçula, que acabou por seguir carreira
idêntica à do pai. Naquele dia de festa, 11 de março, nasceu Astor Piazzolla,
que, aos cinquenta anos, já produzira seus mais reluzentes tangos (as
obras-primas Adiós Nonino e Libertango). Pois é, com apenas
cinquenta anos, Déda, artífice da palavra, estilista no trato com a
administração pública e regente singular do Estado, já tinha sido, na política,
quase tudo que se possa conseguir galgar.
No executivo,
só não ocupou a presidência da república, mas foi prefeito da capital de seu
Estado (Aracaju), por duas vezes (eleito pela primeira vez aos quarenta anos),
e governador de Sergipe, também duas vezes (sempre vencendo no primeiro turno).
Já no legislativo, apenas não ocupou uma cadeira de vereador e outra de
senador. Mas foi, com menos de trinta anos (em 1986), o deputado estadual mais
votado do pleito. Com menos de trinta e cinco anos (1994), elegeu-se deputado
federal, com a maior votação do Estado, reelegendo-se em 1998. Para mim,
todavia, dois anos, em especial, são marcantes: 1977 e 2000. Em 77, vi, pela
primeira vez, o imberbe Déda num curso de cinema no Atheneu, como dito acima.
Na época, eu era presidente do Clube de Cinema de Sergipe. Juntamente com
barbudos e velhos comunistas, exibi, malgrado percalços e riscos, o
“Encouraçado Potemkin”, de Serguey Eisenstein. Com efeito, os riscos advinham
do fato de a obra de Eisenstein expor a ditadura do czar. E nós vivíamos uma
ditadura. No ano anterior (1976), por exemplo, desencadeara-se a “Operação
Cajueiro”, na qual ilustres sergipanos foram presos pelo regime de exceção. Mas
o jovem e denodado Déda estava lá, como que, encouraçadamente, peitando a
ditadura. Os anos se passaram. Cheguemos, então (e sem rodeios), a 2000. Estava
eu (com um pouco mais de cinquenta anos), na sacada do meu escritório, na Rua
Laranjeiras, edifício Aliança, nas adjacências da agência central da ECT,
observando a passeata da virada de Déda. Era a eleição para a prefeitura de
Aracaju. Ele começara atrás nas pesquisas, mas, crescendo a cada dia, tomou a
dianteira e disparou (venceria com quase 53% dos votos válidos). De cima do
trio-elétrico em que conclamava a multidão, Déda viu-me e, olhando-me nos
olhos, gritou, para todos ouvirem: “Clóvis
Barbosa, seu lugar é aqui. Do nosso lado. Saia daí. Eu conheço sua história”.
Ri com o gesto, acenei e agradeci. Depois, entrei e chorei. Nada demais. Jesus
também chorou.
Dois ou três
anos depois, lá estava eu, procurador-geral do prefeito Marcelo Déda, aquele
mesmo menino de dezessete anos. Agora, timoneiro de um novo encouraçado. De lá
para cá, sempre estivemos juntos. Sim, e o porquê dessa amizade? Respondo. Sou
de Estância. Mas meu pai era de Simão Dias, terra de Déda. Além disso, por ter
sido do partidão (PCB), do antigo MDB e do PT (nos primórdios), minha linguagem
política, assim como a de Déda, está ligada ao trabalhismo (este é o idioma que
falamos, o idioma dos trabalhadores, o idioma da esquerda, marcadamente da
latino-americana). Nosso propósito ideológico, ademais, é o mesmo: construir
uma sociedade mais justa, onde a força do trabalho supere a exploração do
sangue e do suor do operário. Vejam, pois, que eu e Déda compartilhávamos da
etnia, do idioma e dos propósitos. Daí, meu orgulho por ter, de alguma forma,
inspirado o jovem que se tornou meu ídolo.
Déda via o mundo pelos olhos do povo. Era um agente de transformação
social. Ele tinha o arquétipo do político ideal: aquele que detém a magia de
transformar derrotas em vitórias e vitórias em conquistas ainda mais
memoráveis. Diferentemente do político estúpido, cuja débil ossatura só é capaz
de projetar a engenharia do caos. Quando vencedor, transforma a vitória em
derrota; quando derrotado, transforma a perda em sepultamento. O estúpido, na
política, não morre inúmeras vezes. Morre apenas uma. A morte política,
entretanto, depende mais da perspectiva do derrotado, do que do tratamento que
lhe é conferido pelo vencedor. Daí, a necessidade de encarar cada batalha
apenas como uma fase do longo processo que é a biografia política. Veja-se, por
exemplo, a biografia política do jovem Marcelo Déda. Perdeu algumas batalhas?
Sim. Mas por que transpira um ar como que de invencibilidade? Porque digeriu as
derrotas, capitalizando-as, a fim de, mais tarde, lucrar com elas.
Mas, e o
vazio que a ausência de Déda vai deixar em todos nós? Dizem que saudade é a
sétima palavra de mais difícil tradução e, também, de difícil conceituação. O
que é saudade? Neruda dizia que saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que nos convida. O
nosso menino Déda foi embora precocemente sob os aplausos do povo e o adeus dos
seus amigos e familiares. Mas ele vai voltar. Agora, com as suas cinzas
renascendo no Parque da Sementeira em forma de árvore.
Clóvis
Barbosa escreve quinzenalmente aos domingos.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e segunda-feira, 8 e 9 de dezembro de 2013, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão no domingo, 8 de dezembro
de 2013, às 17h14min, sítio:
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