quinta-feira, 31 de março de 2016
O Homem que amava os cachorros (II)
Opinião pessoal
O homem que amava
os cachorros (II)
Clóvis Barbosa
Pois é!
Comecei a falar de Ivan, o veterinário de Havana e seu encontro com o homem que
passeava com os seus cães, e passei a divagar sobre os meus cachorros,
sobretudo, sobre a minha experiência stalinista. Volto atrás. Esse encontro
entre Ivan e seu personagem enigmático serve de mote para o escritor cubano
Leonardo Padura construir um romance histórico que vem sendo elogiado pela
crítica mundial, cujo título é o mesmo do presente ensaio. O livro tem 585
páginas e foi lançado no Brasil pela Boitempo.
Sobre ele, o The Times, afirma que
“Leonardo Padura confirma seu status
como o melhor escritor de ficção policial em língua espanhola, um digno
sucessor a Manuel Vázquez Montalban”. Para o Le Fígaro, “uma narrativa de tirar
o fôlego, uma obra prima”. O El Correo
Español, diz que é “um romance que exala a experiência narrativa dos bons
contadores de histórias”. O El Mundo
considera a obra “um excelente romance, rico em sugestões sobre a condição
humana e sobre o nosso mundo que vão além da estória narrativa direta”. Nunca
uma obra de um escritor cubano, pós-revolução, foi tão bem aplaudida como esta
de Padura que, diga-se, não se trata de um dissidente do regime cubano. Mas
também não é um livro com o simples objetivo de divertir o leitor.
Além de recontar uma das histórias que abalou o mundo na época
(o assassinato de Trotski a mando de Stalin por um homem de esquerda), o
catalão Ramón Mercader, que foi acolhido na ilha por Fidel após o evento,
Padura consegue, também, pintar o retrato de Cuba na atualidade, ainda com
problemas crônicos e inúmeros desafios. Aqui neste espaço, no fim do ano
passado, escrevi uma série com quatro ensaios sobre Cuba, intitulados Carta do
Caribe (I a IV) e ali tive a oportunidade de fazer uma avaliação crítica da
realidade cubana a partir da minha visita à ilha no mês de setembro. Na oportunidade,
falei da necessidade de se acelerar as reformas em Cuba com mais participação popular
e ouvindo o conjunto da sociedade. Um grande debate
teria que ser aberto antes do pior acontecer. Cuba e o sonho do socialismo não devem
perecer. Fazia, também, um alerta, citando Albert Camus, na sua obra O homem revoltado, que cria uma metáfora
que se aplica bem ao que está acontecendo no país cubano: o arco se verga e a
madeira geme. No auge da tensão, alçará voo, em linha reta, uma flecha mais
inflexível e mais livre. Citei até uma advertência feita pelo próprio Fidel em
palestra na Universidade de Havana em 2005: “Se o imperialismo não conseguiu
derrubar a revolução, os cubanos poderão fazê-los, por seus erros e omissões”.
Ao lado da contribuição que Padura dá à compreensão de vários fenômenos
ocorridos no século XX, onde se destacam o período estalinista, as revoluções
cubana, espanhola e russa, ele constrói um romance audacioso, sem,
evidentemente, ali encontrar, uma profunda reflexão teórica sobre os temas.
Mas, como diz Frei Betto, “Este romance é como um espelho retrovisor que
permite ao leitor mirar, com olhos críticos, as contradições do socialismo e
por que a morte de Trotski, decidida por Joseph Stalin, contribuiu para
favorecer a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética”. O
conteúdo da obra nos leva a fazer algumas reflexões, até sobre a experiência
democrática que o Brasil vem vivenciando, após a ditadura militar. Por várias
vezes, em vários ensaios e fragmentos publicados neste espaço, tenho alertado
sobre a necessidade de cada vez mais abraçarmos a idéia da democracia como um
valor universal. Se a ditadura é o regime de
desrespeito às leis, às instituições e às liberdades civis, a democracia faz o
caminho inverso. O respeito às normas e às instituições é o mais importante
passo para a solidificação de uma sociedade que tende a avançar no campo da
civilidade, da solidariedade e do respeito mútuo. Como diz Bobbio, “o estar em
transformação é seu estado natural”.
Tzvetan Todorov, em sua obra “Os inimigos íntimos da
democracia”, emite um enfático alerta sobre a capacidade que tem a democracia
de engendrar seus próprios inimigos. Não se pode varrer para debaixo do tapete
a crise que vive a nossa democracia representativa. A classe política tem que repensar
o seu comportamento. A instituição partidária não respeita a vontade da
maioria, mas a de sua cúpula. É preciso entender que há um desencanto com os
resultados apresentados pela representação política. O mundo econômico, sempre
ávido pelo lucro fácil, pela concentração de riqueza e pela manutenção dos seus
privilégios, acha que nada tem a ver com o processo de sedimentação do processo
democrático. O
corporativismo desenfreado, sempre em busca de melhoria de suas condições de
sobrevivência, dá, também, a sua contribuição e, o que é pior, de forma
atabalhoada, não importando se está desgostando ou não a quem quer que seja.
Enfim, todos querem ter razão e fazem da manipulação das palavras o seu tacape,
que muitas vezes volta-se contra ele próprio. E transformam em realidade a
máxima de Millor Fernandes, que conceitua:
“Democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim”.
Retratos da Vida
Os três porquinhos
Huginho,
Zezinho e Luizinho, três irmãos que tinham um mesmo amor: o Fluminense Football
Club (não admitiam o aportuguesamento). Ainda imberbes, quando eles apontavam
no Cacique Chá, normalmente em véspera de jogo do tricolor carioca, chamavam
atenção dos frequentadores. Adentravam em fila rigorosamente obedecendo a idade
cronológica, com o mais velho sempre na frente. Eram impecáveis nas
vestimentas. Quando o uniforme tinha a camisa listrada, o calção e o meião
sempre eram brancos. Quando a camisa era branca com golas verde e vermelha o
calção e meião também eram brancos. Não, não calçavam chuteiras, mas tênis,
sempre brancos. O mais velho bebericava sempre uma cerveja preta e os demais
pimpolhos guaraná. Nenhum assunto, que não fosse o Fluminense, a sua história,
os grandes jogadores poderia ser objeto de conversa naquela mesa. Quando um
torcedor desavisado partia para denegrir o Fluminense, ipso facto, os três se levantavam e a um só côro, diziam, sempre
com a mão no coração ao lado do escudo, num entrosamento sonoro que faria
inveja a qualquer grupamento militar: “Fluminense,
meu eterno amor. É por isso que eu canto, que visto este manto, orgulho de ser
tricolor”. E arrematavam com o início do seu hino: “Sou tricolor de coração
/ Sou do Clube tantas vezes campeão / Fascina pela sua disciplina / O
Fluminense me domina / Eu tenho amor ao tricolor / Salve o querido pavilhão /
Das três cores que traduzem a tradição: / A paz, a esperança e o vigor. / Unido
e forte pelo esporte, / Eu sou é tricolor”. Sempre ao terminar, o mais novo,
Luizinho, com a sua língua presa, gritava: “É
Lamartine Babo, porra!”, referindo-se à letra da música. O tempo passou, o
Cacique Chá acabou. Levou com ele a história daqueles meninos, hoje homens
importantes da vida sergipana.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e segunda-feira, 30 e 31 de março de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira
Mão, domingo, 30 de março de 2014, às 19h50min, sítio:
quarta-feira, 16 de março de 2016
Mulheres da antiguidade - Hipárquia & suas companheiras filósofas
Isto
é história
Mulheres Audaciosas da Antiguidade
HIPÁRQUIA & SUAS COMPANHEIRAS FILÓSOFAS
Vicki León
Hoje
em dia a filosofia é a carreira com a trajetória mais sem futuro que se pode
escolher – a não ser, é claro, que você escreva um livro para adicionar à
prateleira já abarrotada da autoajuda. Todavia, nos tempos antigos a filosofia
era tanto um conforto como uma válvula de escape natural para as mulheres.
Predominava o sistema do preceptor: as mulheres estudavam de diversas formas,
com todo tipo de filósofo, como essa olhada rápida em quatro vidas fascinantes
demonstrará.
Dois
mil e trezentos anos antes dos Beatles, uma jovenzinha chamada Hipárquia, que
até aquele momento tinha sido respeitável, botou o pé na estrada. A ocasião:
seu casamento com Crates, o filósofo mais popular de Atenas. Em vez de
desfrutar a prosperidade de um registro matrimonial, Hipárquia entrou no estilo
de vida cínico, escrevendo livros de diatribes (escritos injuriosos e
violentos), criando dois filhos à base de feijão três vezes por dia, e
comportando-se de uma maneira ultrajante (para demonstrar seu desdém pela
convenção social, os cínicos faziam coisas inimagináveis em lugares públicos).
Hipárquia e seu companheiro formavam uma sociedade de iguais e também
aconselhavam pessoas doentes e perturbadas, serviam de árbitros em desavenças e
consolavam os aflitos. E também não viviam apenas à base de feijão. Esse time
de luta livre conjugal trabalhava no circuito de banquetes, onde Hipárquia
entrava em debates e enfurecia a turma, que em sua maioria era composta por
homens – mais um soco no olho da convenção social.
Se
a Grécia tivesse conferido prêmios na categoria de Filósofos Mais Famosos,
Arete teria arrebatado um. Essa filósofa cerebral da cidade-estado grega de
Cirene, na África do Norte, tinha uma estatística e tanto: 35 anos de ensino,
quarenta livros a seu crédito e o elogio máximo que seu grupo intelectual podia
lhe fazer – muitos de seus alunos eram eles mesmos filósofos. Arete aprendeu
suas qualidades com o pai, Aristipo, que estudou com Sócrates, mas acreditava
no prazer como bem maior. Sua filha veio a adotar uma filosofia igualitária
incomum para aquela época, sonhando com um mundo sem amos nem escravos. O
melhor aluno de Arete era seu próprio filho, que recebeu o apelido de “Aprendiz
da Mãe” e que a sucedeu como diretor de sua escola.
No
século VI a.C., em Crotona, uma rica colônia grega na costa da Itália, Teano e
suas filhas viviam a vida pitagórica, uma filosofia holística com um tom
moderno que combinava cura, música, exercício, dieta vegetariana, psicologia
infantil e estudos de saúde mental com física, geometria, matemática,
astronomia e outras disciplinas. A escola desenvolvida por seu marido
Pitágoras, após a morte deste passou a ser dirigida por Teano. Escritora,
pensadora e curandeira, Teano foi o epítome da moralidade sexual e da
apreciação serena pelas outras coisas viventes, pelas quais os pitagóricos eram
famosos.
Na
altura de 300 a.C., Epicuro tinha grupos de discípulos de Atenas a Lâmpsaco na
Ásia Menor (Turquia), onde viviam Temista e seu marido, Leôncio. Ela era uma
aluna especial – ou talvez algo mais. Num bilhete que faria o coração de
qualquer filósofa bater mais rápido, seu mentor Epicuro escreveu para ela: “Se
você não vier me ver, estou bastante disposto a rodar três vezes sobre meu
próprio eixo e me deixar propelir para qualquer lugar com o qual você
concorde”. Talvez eles tivessem um ménage
a trois metafísico. De qualquer modo, Temista deu a seu filho o nome de
Epicuro, e ele retribuiu a gentileza dedicando seu livro Neocles a ela. Por ser também escritora, Temista era respeitada
pelos gregos e até mesmo pelos pais do cristianismo, que normalmente
escarneciam das filosofias e dos filósofos pagãos.
A autora
Vicki León
- A próxima postagem de Mulheres Audaciosas da
Antiguidade vai falar de “FRINÉIA”. Ela viveu na Grécia e tinha uma beleza,
divina ou não, que era motivo de inveja.
– Do livro “Mulheres Audaciosas da Antiguidade”,
título original, “Uppity Women of Ancient Times”, de Vicki León, tradução de
Miriam Groeger, Record: Rosa dos Tempos, 1997.
- Todas As imagens foram extraídas do Google.
quarta-feira, 9 de março de 2016
O Homem que Amava os Cachorros
Opinião Pessoal
O homem que amava os cachorros (I)
Clóvis Barbosa
Concordo com Ismar Barreto na sua música “Parece,
mas não é”. É que a língua portuguesa dá a determinadas palavras um sentido
totalmente dissonante. E ele dizia: “Pederasta devia ser um homem culto.
Aquele senhor é um grande pederasta. E não viado, como diz a palavra.
Esfíncter, o músculo do ânus, devia ser um meteorito. Vai cair um grande
esfíncter no deserto do Arizona. Períneo seria uma coisa de tempo: vai chegar
um períneo em que a humanidade e tal, uma distância para um longo tempo... Já
xoxota parece caroço de manga, fruto macio, alongado e doce. E entendido...
Ainda bem, é mesmo coisa de marico”. Se você quiser conhecer a vida e a
obra desse grande artista sergipano, leia “Ismar Barreto, da esbórnia ao
sublime”, de Marcelo da Silva Ribeiro. E Ismar tem razão. Por que, por exemplo,
associar a figura do cão ao diabo? A figura do cachorro ao vagabundo, safado,
mau-caráter? A da cadela a uma mulher leviana? Por que, se o cachorro é tido e
havido como o melhor amigo do homem? Quanta felicidade nos traz a presença de
um cachorro em casa! As vantagens são inúmeras e são atestadas por estudos de
grandes universidades pelo mundo: donos de cães vão menos ao médico, tomam
menos remédio e quando ficam doentes, saem do hospital antes dos demais;
apresentam taxas normais de pressão arterial. A companhia dos seus cachorros evita
a depressão, principalmente em pessoas de terceira idade; faz as tarefas de o
dia-a-dia ser mais relaxantes; contribui para que as mulheres produzam mais
ocitocina, que é conhecida como o hormônio do amor; contribui para que os
casais briguem menos; também para que as pessoas fiquem mais sociáveis e
acessíveis a novos amigos, diferentemente das pessoas que não possuem este
animal de estimação. Durante a minha vida convivi com três cachorros: na minha
infância com Tarzan, que era do meu irmão mais velho; Há uns trinta anos
com uma cadelinha de nome Bubba. Durante dezesseis anos viveu comigo um
poodle de nome Rebecca. Morreu no ano passado e me deixou muito triste.
Vivemos momentos de alegria e de muito amor
recíproco.
Ivan era um veterinário em Havana. Ao
conhecer um homem que passeava com os seus cães, este confia ao veterinário
informações importantes dos últimos anos da vida do revolucionário russo Liev
Davidovitch Bronstein, conhecido como Trotski, que vivia exilado na cidade do
México. Dizendo-se amigo íntimo de Ramón Mercader, voluntário das Brigadas
Internacionais da Guerra Civil Espanhola e responsável pelo assassinato de
Trotski, reconstrói todo o caminho que levou a este ato extremo que abalou o
mundo em 1940. Todos conhecem a história. Trotski foi político, intelectual
marxista, escritor e revolucionário bolchevique. Comandou o Exército Vermelho
durante a Revolução de Outubro de 1917, que derrubou o czarismo na Rússia. Após
ter assumido o controle do Partido Comunista e da URSS, Joseph Stalin perseguiu
nomes proeminentes da revolução. Trotski foi uma de suas vítimas. Na verdade, a
morte de Lênin em 1924 redundou numa luta fratricida entre os dois grandes
herdeiros do sistema russo: De um lado, um intelectual de mão cheia, Trotski;
de outro, Stalin, um brutamontes insignificante do período
revolucionário, mas que ascendeu à secretaria-geral do Partido Comunista
soviético. Um parêntese: na minha adolescência fui stalinista e
anti-trotskista, e isso me envergonha por ter defendido um dos maiores criminosos
do século XX. Culpo a ditadura militar brasileira que impediu o acesso de
informação à minha geração. Tudo que era dito sobre Stalin era atribuíamos à
propaganda norte-americana. Somente aos trinta anos é que melhor pude avaliar,
criticamente, a revolução soviética e o papel do psicopata Joseph Stalin. Claro
que a história não trata de hipóteses, mas só com o que ocorreu. Contudo, não
tenho dúvida que a história seria outra se Trotski e não Stalin assumisse o
poder após 1924.
Diante da crescente burocratização do
estado soviético por Stalin e da substituição do poder da classe operária para
o partido, Trotski disse: “Em um país cujo único empregador é o Estado,
oposição significa morte por fome. O velho princípio daquele que não trabalha
não deverá comer, foi substituído por um novo aquele que não obedece não deverá
comer”. Cada vez mais me convenço da importância da democracia. Embora a
situação esteja “feia” em vários lugares, ainda é pela democracia que temos
condições de mudar o homem e a sua estupidez. A não ser que tenhamos que
continuar adotando a máxima de Alexandre Herculano, escritor romântico e
historiador lusitano: “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os
animais.”
POST-SCRIPTUM
O sangue
itabaianense de Dolores Duran
Há uns seis meses passei a twittar
sobre o sangue sergipano de Dolores Duran e sobre o fato do grande ator e
cantor norte-americano, Frank Sinatra, ter gravado uma música de uma filha de
uma sergipana de Itabaiana. Foi um Deus nos acuda! Mentiroso, diziam os mais
indignados; informação sem qualquer veracidade, falavam os mais comedidos. Mais
um casal amigo e fraterno, o promotor de justiça Eduardo Seabra e a juíza de
direito Mary Nadja se interessaram na pesquisa do tema. Eis que recebo um
presente do casal: “Dolores Duran – a noite e as canções de uma mulher
fascinante”, de Rodrigo Faour, Editora Record. Pois é, pessoal! Está lá no
livro:
“Nascida Adiléia Silva da Rocha, Dolores
Duran era a terceira dos quatro rebentos a aparecer no lar do sargento da
Marinha Armindo José da Rocha (1887-1948) e da dona de casa e eventualmente
costureira - Josepha Silva da Rocha (1912-99). Casa de gente simples, vida sem
riqueza, mas tudo dentro dos conformes daquele tempo. Contudo, nem todas as
crianças eram do mesmo pai e da mesma mãe. Do primeiro casamento de Armindo
nasceram Hilton (1925-94) (...) e Hilda (1926-99) (...) Armindo ficou viúvo, e
(...) acabou casando (...) com dona Josepha. Foi ali onde os dois filhos haviam
nascido que também viria ao mundo Adiléia em 7 de junho de 1930 (...). A última
do clã, Irley, apareceu apenas seis anos depois (...). Seu Armindo era
pernambucano. Como a maioria dos militares (e nordestinos) daquele tempo, era
um sujeito durão, resmungão e fumava muito (...). Dona Josepha por sua vez era
sergipana, da cidade de Itabaiana. Semianalfabeta, mas muito inteligente, teve
uma criação sofrida. Ficou órfã muito cedo, sendo criada pelos tios numa
fazenda. Contava sempre às filhas que era do tempo em que as mulheres não
podiam aprender a ler e a escrever porque senão acabariam por escrever cartas
para namorados, e isto seria inadmissível. Na roça era assim, se a menina
quisesse sair de casa para dar uma voltinha na rua, o pai cuspia no chão e ela
tinha que voltar antes de o cuspe secar. Por conta disso, levou surras
homéricas, a ponto de ter de ficar com o corpo de molho na água morna com sal
grosso numa banheira para sarar os ferimentos (ou seja, amenizando a ferida,
mas ao mesmo tempo impingindo a ela uma dor insuportável), tudo em nome de uma
educação um tanto conservadora e tacanha a que as mulheres eram submetidas nas
regiões menos favorecidas do Brasil. Certa vez, o primo mais velho de Josepha,
que servia na Marinha, veio para o Rio, então a capital federal e, diga-se, o
lugar mais promissor em termos de oportunidades no Brasil daquela ocasião.
Sendo assim, por volta dos 12 anos, ela acabou aportando também em terras
cariocas numa longa viagem, vindo de trem e navio. Chegando ao seu destino,
outra prima foi logo arrumando algumas tarefas para ela dar cabo (...). Deveria
entregar costuras na oficina de uma costureira. Ela então - sem saber ler nem
escrever - ia levar as tais costuras em lugares que jamais tinha visto, sem
nenhum traquejo até mesmo para conseguir ler os letreiros dos bondes (...).
Assim como o marido, ela tinha gênio forte, sendo rígida na educação das filhas
(mas não tão enjoada quanto ele), e - vejam só! - também apresentava dotes
artísticos. Nas horas vagas, gostava muito de cantar, compor e improvisar. Era
boa de gogó, afinada, mas nunca chegou a se aventurar na carreira artística
propriamente dita. Pode ter vindo daí parte do gene musical da menina Adiléia.
Embora não escrevesse, guardava muitas melodias e letras de cabeça.
Cantarolando em casa o dia inteiro, a qualquer hora do dia ou da noite (foi
assim até morrer), era possível ouvir quadrinhas como esta, de sua autoria: Eu
vim aqui pra falar com você / Que eu agora vou deixar de beber / Eu vou gritar
que a alegria é só minha / Eu não bebo mais em copo / Eu só bebo em garrafinha
/ No carnaval, sou eu quem vai decidir / Vou sair fantasiado de ‘Zé, pague um
olho aí’ / E a fantasia ninguém tem igual a minha / Eu 'vou sair fantasiado de
cachaça Praianinha. Dona Josepha tinha o dom do repente. Se visse uma pessoa e
estivesse inspirada, era capaz de pegar o nome da criatura e improvisar rimas
riquíssimas na hora, criando uma embolada ali, na frente do sujeito. Tinha lá
suas vaidades. Ciente das próprias limitações, fazia questão de pedir às filhas
que corrigissem seu português, caso dissesse alguma palavra errada em público -
mas que não lhe chamassem a atenção na frente dos outros, óbvio, mas em off”.
- Publicado no Jornal
da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo, 16 de março de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, segunda-feira, 17 de março de 2014, às 11h31min,
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