domingo, 25 de novembro de 2018
Mulheres da Antiguidade - Etéria
Isto é História
Mulheres Audaciosas da
Antiguidade
ETÉRIA
Vicki León
Com uma estranha combinação de intrepidez e melancolia mortal,
Etéria saiu sem rumo pelo mundo, quando era preciso um bocado de coragem para
fazê-lo. Coragem e tempo, muito tempo: a melhor velocidade que os seres humanos
viajantes podiam esperar alcançar por terras com estradas era de 32 a 70
quilômetros por dia. Por mar, levava no mínimo um mês para se velejar da
Espanha até a Síria. A jornada religiosa de Etéria, com duração de três anos,
do extremo espanhol da bacia mediterrânea à Terra Santa no outro extremo, foi
feita um século depois de o Cristianismo ter sido declarado uma das religiões
oficiais do império, em 313 d.C. Especula-se que Etéria deve ter nascido em
circunstâncias confortáveis na Espanha ou França; de que outra maneira poderia
ela ter capital para fazer uma viagem dessas? Etéria tinha claramente um
espírito austero e aventureiro – religiosa o suficiente para primeiro se tornar
uma freira, e macho o bastante para enfrentar uma peregrinação tão acidentada,
sozinha, a pé, a burro, ou camelo, através de terras infestadas de bandidos,
enfrentando mau tempo, água podre e os piores insetos.
Blesila não estava sozinha em seu zelo para atingir o máximo
do raquitismo por meio do jejum. Paula, sua mãe viúva e Eustaquíon, sua irmã,
também jejuavam e rezavam incansavelmente. Paula necessitou exercitar sua
paciência cristã depois da morte de Blesila.
Essa freira intrépida não deixava passar nada. Ela cobriu a
maior parte da Palestina, Ásia Menor e Síria; viu o Egito e o Nilo; visitou
cada local sagrado em Jerusalém e cada pedra na subida e na descida do Monte
Sinai, inclusive um local no vale provocativamente chamado de Túmulos da
Luxúria. Ela fez uma viagem extra de três dias ao Santuário de Santa Tecla, e
chegou até as praias do mar Negro e a capital de Constantinopla. E isso é
apenas o que nós sabemos de seu
itinerário – seu diário, escrito em latim, ainda está sem dois terços de suas
páginas.
A única coisa desanimadora em relação à deliciosa vagabundagem
de Etéria é sua descrição incrivelmente prosaica de tudo, dirigida às irmãs
freiras. Ler seu diário é como assistir a um infernal show de slides, aquela conversa sobre viagem em câmara lenta à qual
você é arrastado pela esposa ou vice-versa, onde cada foto fora de foco faz com
que queira gritar: por que você não apontou a câmara para aquilo ali, nos
mostrou os fatos, o detalhe essencial? Etéria
parecia determinada a ligar cada local a uma referência bíblica, não importa
quão obscuro ele fosse – a maioria deles é descrita da maneira mais
incrivelmente descolorida. As pessoas que ela deve ter visto, os cheiros
estranhos, as alvoradas, o trinado dos pássaros – nada disso foi registrado ou
talvez essas coisas tenham sido consideradas detalhes sem interesse. E os
desastres, sem os quais nenhuma viagem – especialmente uma de três anos – está
completa? Nem uma palavra sequer.
A autora
Vicki León
- A próxima postagem de
“Mulheres Audaciosas da Antiguidade” vai falar de FABÍOLA, que viveu por volta
do ano 390 d.C. Ela concentrou sua atenção e amor às pessoas indistintas do seu
mundo: os pobres, os humildes e os sofredores. Andou com Jerônimo e seu bando
de mulheres ricas ativistas. Ela se tornou Santa logo após a sua morte.
- Do livro “Mulheres Audaciosas
da Antiguidade”, de Vicki León, tradução de Miriam Groeger, Editora Rosa dos
Tempos.
- As imagens aqui reproduzidas
foram retiradas do Google.
domingo, 18 de novembro de 2018
A CABEÇA DE JOÃO BATISTA
Opinião pessoal
A cabeça
de João Batista
Clóvis Barbosa
Muitos sabem que João Batista foi decapitado por
ordem de Herodes. Poucos, contudo, conhecem o motivo da execução. Muitos sabem
que a morte de João está associada a um juramento que o governante fez para a
sua sobrinha. Muitos também sabem que esse juramento decorreu do estertor
concupiscente de Herodes em ver a moça bailando para ele. Todos, afinal, sabem
que, em troca do espetáculo, a inescrupulosa dançarina pediu a cabeça do
profeta numa travessa. Mas o porquê da solicitação é que vem a ser enigmático
para um sem número de pessoas. A rigor, João foi morto porque teria cometido um
delito de opinião. Na verdade, João acusava Herodes de manter uma relação
adulterina com a esposa de seu irmão, Filipe. Por isso, foi detido. Herodes,
entretanto, com receio de causar um tumulto entre os seguidores do prisioneiro,
manteve-o vivo. Isso até a dança de Salomé. E Herodes, embevecido pelo vinho,
sobrepujado pela tacanhice de sua promessa, mandou fazer o que, em princípio,
não desejava: extirpar não só a língua, mas a cabeça de João. Muitos também são
os que sabem que o pastor Martin Luther King Jr. foi assassinado em 1968 por
segregacionistas do sul estadunidense por causa do que pensava. Poucos, porém,
sabem que o ativista social foi a pessoa mais jovem a ganhar o Nobel da paz, aos 35 anos. Muitos sabem que Luther King
proferiu um dos mais famosos discursos da história, em março de 1963, junto ao
memorial Lincoln: I have a dream. Poucos, todavia, sabem que a liberdade
de imprensa, conforme formatada hoje no direito norte-americano, com
repercussão mundial, deve muito a esse mártir. Por conta dele, veio à tona o
caso New York Times Co. versus Sullivan, de 1964, cujo desfecho
acha no nome de Luther King especial tonalidade. Com efeito, Luther King era
pastor da igreja batista, em Montgomery, Alabama. Lá pelos idos de 1960, quando
o clima entre brancos e negros exigia filtro solar em razão de sangrentas
disputas raciais (a isso associada uma série de manifestações em defesa dos
direitos civis), estudantes do Alabama acabaram por tomar uma sova da polícia
local.
Tudo se deu em torno de uma passeata organizada por discentes negros que
defendiam igualdade e respeito pelas liberdades públicas no sul dos EUA,
historicamente marcado pela intolerância contra os afrodescendentes. De fato, a
polícia repeliu os integrantes da passeata, mas não há registros de que a ação
policial tenha sido irascível. Sucede que o New York Times, em 29 de março de
60, publicou uma matéria que expunha o fato de maneira um tanto quanto fora de
foco. Segundo o jornal, os policiais lançaram uma onda de terror sobre os
estudantes, acrescentando que a universidade do Alabama havia sido cercada por
um forte aparato, que desceu o sarrafo. Não satisfeito, o jornal ainda declarou
que aqueles mesmos policiais tinham bombardeado a casa do pastor Martin Luther
King, prendendo-o e torturando-o. Algo grave. Mas não muito compatível com a
realidade, pois Luther King não tinha sido preso e tampouco torturado. Desse
modo, o chefe de polícia do Alabama, L. B. Sullivan, ajuizou uma ação contra o New
York Times pleiteando uma indenização. No primeiro grau, Sullivan conseguiu
que o New York Times fosse condenado em 500 mil dólares, decisão sustentada
pelo tribunal de justiça estadual. Todavia, na suprema corte as coisas mudaram.
Por quê? Por conta da interpretação que por lá foi atribuída à emenda nº 1 da
constituição americana: “O congresso não legislará no sentido de estabelecer
uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a
liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir
pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus
agravos”. A constituição brasileira, no art. 5º, IV, estabelece ser “livre a
manifestação do pensamento”. Todavia, o ordenamento jurídico nacional, ao
contrário do americano, editou uma lei de imprensa, ainda na ditadura, que
trouxe reflexos criminais para abusos na expressão do pensamento.
Diferentemente da ordem pátria, os regramentos jurídicos do sistema
norte-americano (Common Law) dependem substancialmente da interpretação que
lhes é dada pela suprema corte, em pontos constitucionais.
Assim, a liberdade de imprensa, nos Estados Unidos, desamarrou-se do Common
Law, adentrando exclusivamente nas entranhas do Constitutional Law.
Numa palavra, a liberdade de imprensa, nos EUA, foi erigida a dogma
essencialmente constitucional. Diversamente, no Brasil, ainda na vigência da
antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, declarada inconstitucional pelo STF), dependia-se
da interpretação que o STJ lhe dava ao caso concreto. De qualquer forma, a
decisão Sullivan inaugurou uma concepção da liberdade de imprensa, ali
onde eventuais ofensas fossem irrogadas contra homens públicos, a exemplo do
chefe de polícia do Alabama. Segundo a suprema corte americana, homens públicos
(public officials), quando estivessem exercendo seu múnus público (official conduct), só fariam jus a uma
indenização se quem os ofendesse o fizesse com actual malice, ou seja,
com certeza absoluta de que a acusação era falsa. Na dúvida acerca da
veracidade da acusação, a imprensa teria o direito de acusar, ainda que pudesse
incorrer em erro. Seria
o preço a pagar pelo exercício de uma atividade pública. Portanto, se o
servidor não demonstrasse com total clareza (convincing clarity) que a
imprensa sabia da falsidade da acusação, paciência. In dubio, acuse-se o
agente público. Por conseguinte, seria necessário provar, no judiciário, que a
imprensa atuou com inequívoco conhecimento da falsidade da acusação (knowledge
of falsity). Em 1996, por exemplo, a cinematografia hollywoodiana, através
da lente de Milos Forman, abraçou a teoria da actual malice no filme People
versus Larry Flynt. No Brasil, se o judiciário não abraça a teoria, o que
dizer do cinema. Malgrado tudo isso, decisões jurisprudenciais brasileiras têm
dado cobro à tese que a espanhola Matilde Zavala de Gonzalez esboçou: doutrina
da proteção débil dos agentes públicos (menos corajosa do que a actual
malice). Para a catedrática
ibérica, homens públicos merecem uma tutela mais flébil, pois se colocaram em
situação de plena fiscalização, mexendo com interesses gerais, a exemplo do
erário. Matilde trabalha inclusive com a possibilidade de aceitar críticas que
pareçam injustas.
Muito pouco para um sistema que quer, efetivamente, erradicar a censura
da imprensa. Nisso, a actual malice se sobressai: os homens públicos
devem aceitar críticas injustas e até mentirosas, desde que, obviamente, a
imprensa não esteja na seara do desprezo pela verdade (reckless disregard).
Karl Marx, no texto “o papel da imprensa como crítica de funcionários
governamentais” pretexta que “a função da imprensa é ser o cão de guarda
público, o denunciador incansável dos dirigentes, a boca onipresente do
espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Marx insiste que “não
basta combater as condições gerais e as altas autoridades. A imprensa precisa
decidir entrar na liça contra este policial em particular, este
procurador, este administrador municipal”. Isso refletiu no pensamento de
Guilherme Döring: “O homem público deve ser forte o suficiente para arrostar
críticas.” Se o homem público não aguenta pauladas da imprensa, saia da vida
pública. Esse, o espírito da primeira emenda. Esse, o espírito que o art. 5º,
IV, da CF deveria aspergir. O problema é que certos agentes enxergam tão alto
como animais rastejantes. Para eles, não interessa uma imprensa livre. Para
eles não interessa uma imprensa forte. Para eles, interessa arrancar a cabeça
de quem dá corpo a uma ideia. Para essa corja, que perde a tranquilidade quando
a imprensa ascende, ficam os ensinamentos da filosofia nietzschiana: “quanto
mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.
Post Scriptum
O catecismo
Eu sempre digo que minha mãe foi uma heroína.
Durante vinte e dois anos ininterruptos viveu para parir. Foram vinte e dois
filhos, mas apenas doze sobreviveram, sete mulheres e cinco homens. Era de uma
determinação extraordinária e fez da dedicação ao marido e à sua prole a razão
do seu viver. Os filhos homens tinham que trabalhar logo cedo e as mulheres
aprendiam a ser donas de casa ou costureiras, como ela. Foi assim no fim da
década de 1950 e começo da de 1960, em Salvador-BA. Tinha lá os meus onze ou
doze anos quando minha mãe impôs ao meu irmão Cristóvão que me iniciasse no
comércio de gibis. Na época, o cinema Santo Antônio, no centro histórico de
Salvador, era o point, aos sábados,
do negócio de venda e troca de revistas. Tarzan, Flash Gordon, Durango Kid,
Cisco Kid, Castorzinho e Nevada, Capitão Marvel, Batman e Robin, Super Homem,
Fantasma, Rei da Polícia Montada, Mindinho, Flecha Veloz, Cavaleiro Negro, Kid
Montana, Jerônimo - o Herói do Sertão, Capitain América, Homem Aranha, Sherlock
Holmes, Rocky Lane, O vigilante Rodoviário, além das revistas da Disney. Todas bombavam no comércio entre os jovens e
aficionados pela sétima arte. O Santo Antônio era o único cinema do centro que
exibia aos sábados os famosos seriados, sempre terminando com uma situação de
perigo vivida pelo herói. Ao final da película, vinha sempre a pergunta e a
afirmação resoluta: Será que Capitão
Marvel se salvará? Volte na próxima
semana! O mundo cultural baiano, à época, fervia com o cinema, o teatro (após
a abertura do Vila Velha) e a música. Era uma época revolucionária onde nomes
como Roberto Pires, Caetano Veloso, Pepeu Gomes, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria
Bethânia, Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Raul Seixas, Trigueirinho Neto,
Guido Araújo, Geraldo D’El Rey, Helena Ignez, Glauber Rocha e tantos outros
começavam a pontificar e, muitos deles, frequentadores do cinema Santo Antônio
e meus clientes. Meu irmão, mão de figa, deu-me apenas dez revistas e mandou
que eu me virasse. Dessas dez, cheguei a ter mais de seiscentas. Mas, o negócio
melhorou depois que passei a vender os famosos “catecismos”, que eram pequenas
revistas eróticas, desenhadas sobre papel vegetal, o que eliminava a
necessidade do fotolito. Eram, por assim dizer, fotonovelas pornográficas e
tinham um grande público. Todas as semanas novos títulos eram lançados.
Lembro-me de vários que exploravam um personagem chamado João Cavalo. O inventor dessas revistinhas foi o grande Carlos
Zéfiro, tanto que a publicação era chamada de “O catecismo de Zéfiro”. As
vendidas em Salvador eram compradas numa gráfica situada no Pelourinho. O meu fornecedor,
Seu Carlito Pescoção, era empregado
da gráfica e pertencente à irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, localizada defronte do seu trabalho. Sempre
comprava, por semana, cinquenta catecismos. Já levava o dinheiro certo. Eu
chegava na janela da gráfica e dizia: - Seu
Pescoção, vim rezar 50 pai nosso. Ele metia a cabeça pela janela e dava um zoom no local, com uma precisão que
enxergava toda a área do Pelourinho. Na certeza da limpeza, me dizia: Cadê a bênção do padre para a reza? De
imediato, eu lhe entregava o dinheiro e, conferido, recebia os “catecismos”.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 16
e 17 de agosto de 2015, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão em 16 de
agosto de 2015 às 13h32min, conforme site:
sábado, 10 de novembro de 2018
Mulheres da Antiguidade - Blesila
Isto é História
Mulheres Audaciosas da
Antiguidade
BLESILA
Vicki León
Blesila foi canonizada com o nome de Santa Marcela
Em 384 d.C., a morte de uma jovem anoréxica de 21 anos chamada
Blesila foi notícia em Roma. Em vez de fazer jejum para caber numa roupa
tamanho 36 ou para melhorar sua “autoimagem precária”, Blesila se matou de fome
por Jesus e Jerônimo – não necessariamente nessa ordem. Escritor cristão do
início do Cristianismo, professor, tradutor e um retentor anal, Jerônimo não
era simplesmente anti-sexo ou anti-casamento, ele era anticorpo. Como outros
membros da Igreja. ele aguardava a segunda vinda de Jesus a qualquer minuto, o
que faria com que alimentação, banhos e doenças se tornassem de qualquer modo
irrelevantes.
Blesila não estava sozinha em seu zelo para atingir o máximo do
raquitismo por meio do jejum. Paula, sua mãe viúva e Eustaquíon, sua irmã,
também jejuavam e rezavam incansavelmente. Paula necessitou exercitar sua
paciência cristã depois da morte de Blesila.
Procissão de Santa Marcela em Granada, Andaluzia, Espanha
Em lugar de se declarar pesaroso por seu papel no encorajamento
de tais extremos, Jerônimo amaldiçoou a mãe desolada por suas “lágrimas
detestáveis e sacrílegas”, dizendo que Satanás estava totalmente mortificado
com a triunfante ascensão de Blesila aos céus, e que Paula devia se animar.
Quando a mãe e a irmã de Blesila pararam de chorar como crianças, elas
acompanharam Jerônimo a Belém, onde o ajudaram a editar sua tradução da Bíblia
para o latim, durante 35 anos – sem crédito algum, é claro. Paula, determinada
a usar a riqueza da família para obras de caridade que servissem à Igreja,
conseguiu atingir o máximo em dívidas filantrópicas. Na ocasião de sua morte,
em 404 d.C., ela deixou Eustaquíon, a virgem de carreira, como uma dívida
assombrosa, entretanto, Paula e Eustaquíon foram canonizadas, portanto talvez
isso tudo tenha valido a pena.
- A próxima postagem de
“Mulheres Audaciosas da Antiguidade” vai falar de ETÉRIA, que viveu por volta
do ano 310 d.C. Ela foi uma freira que viajou o mundo todo pregando o
Cristianismo.
- Do livro “Mulheres Audaciosas
da Antiguidade”, de Vicki León, tradução de Miriam Groeger, Editora Rosa dos
Tempos.
- As imagens aqui reproduzidas
foram retiradas do Google.
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