domingo, 25 de agosto de 2019
A morte da Lei de Imprensa
Opinião
A Morte da Lei de
Imprensa
Clóvis Barbosa
A imprensa deve
ser livre e, às vezes, dissoluta. A liberdade de imprensa, contudo, passa por
um quadro de sedimentação sociológica. Quanto mais evoluída uma civilização,
mais livre sua imprensa. Daí poder chegar-se à conclusão de que ditaduras
refletem involuções. No mais, ditadores morrem afogados no próprio vômito. A
inflexibilidade da ditadura é causa principal de sua ruína. Quando não aguenta
a tensão daqueles que querem impor um regime democrático, ela se despedaça.
Ditadores, no entanto, são bons em matemática. Esse é o mundo no qual eles,
melhor do que ninguém, sabem dar as cartas: o dos números. Se você der um troco
errado para um democrata, ele verá no erro uma espécie de contribuição com a
melhor distribuição de renda. Mas se você der um troco errado para um ditador,
ele pensará que você é burro ou quer intervir no patrimônio dele, algo passível
de pena capital. O ditador, no fundo, é um frágil com bases narcísicas
estilhaçadas. Os tiranos reprimem a imprensa porque a temem. Covardia. Homens
corajosos não reprimem os inimigos, e sim os enfrentam. Homens corajosos e
fortes enfrentam e derrotam. Por isso, não abro mão do que disse. A imprensa,
além de livre, deve ser dissoluta. Nem sempre, só às vezes. Mas que deve, deve.
Aprendi com H. L. Mencken que “imoralidade é a moralidade daqueles que estão se
divertindo mais do que nós”. E qual o sentido da mídia se ela não for ácida? De
uma acidez tal que seja capaz de fazer com que o leitor não consiga controlar o
riso? Imbecis costumam dizer que jornalistas são pessimistas. Bobagem. Paulo
Francis estava certo quando disse que “todo otimista é um mal informado”.
Dario, comandante militar de Ciro, era otimista. E, por causa disso, Daniel
quase se deu mal.
Está tudo ali, no
livro que leva o nome do profeta. Capítulo 6. Dario, objetivando promover um
processo de descentralização administrativa, nomeou 120 governadores, acima dos
quais havia três ministros. Dentre os ministros, o mais prestigiado era Daniel.
Com inveja, os demais induziram o monarca a assinar uma lei que condenava à
cova dos leões todo aquele que, durante 30 dias, adorasse outra entidade que
não fosse o próprio Dario. O rei, crendo que estava fazendo algo bom para sua
popularidade, assinou o ato irrevogável. Daniel, todavia, honrava mais o seu
deus do que o rei. Desconsiderando a tal lei, por conseguinte, chegou em casa e
foi orar. Os invejosos o denunciaram a Dario que, deprimido, não pôde fazer
nada, além de determinar que Daniel fosse jogado na cova dos leões. Sucede que
Daniel foi salvo por intervenção divina. E o rei, como vingança, condenou à
morte aqueles que invejavam Daniel. É... de fato, a boa-vontade algumas vezes
pode resultar em tragédias. A intenção do rei era nobre: enaltecer seu nome
entre os governados. Nada de formidável. Mas, não fosse a fé de Daniel, o
resultado teria sido o inverso: a desgraça de Dario, que perderia seu mais
capaz ministro. Isso prova que a majestade também pode não captar todas as
consequências de uma decisão por ela prolatada. Foi o que se deu em 2009 quando
o Supremo Tribunal Federal, a partir de uma arguição de descumprimento de
preceitos fundamentais proposta pelo PDT, decidiu pela inconstitucionalidade da
Lei nº 5.250, de 1967, a chamada Lei de Imprensa, afastando-a de forma
definitiva da ordem jurídica brasileira. Um dos argumentos suscitados à época
era que a lei fazia parte do entulho autoritário, pois editada no período
ditatorial, não tendo sido recepcionada pela constituição de 1988.
Tudo bem. O Código
Penal também veio à luz num período não muito democrático. Menos ditatorial do
que aquele em que nasceu a Lei de Imprensa.
Mas, nem por isso, libertário. Ainda assim, os generais da ditadura deram aos
jornalistas um tratamento melhor. Como foi dito acima, ditadores entendem mais
de matemática do que democratas. Um exemplo vai elucidar a questão: o
jornalista que calunia um servidor público através de um veículo de
comunicação, pelo artigo 20 da revogada Lei de Imprensa, seria sancionado com
uma pena que iria de seis meses a três anos de detenção, podendo chegar a
quatro anos por ter sido o crime praticado contra servidor. Pouco importa.
Segundo o seu artigo 41, esse crime estaria prescrito em dois anos e pronto.
Porém, com a decisão do STF, a conduta do jornalista passou para o art. 138 do Código
Penal (calúnia): detenção de seis meses a dois anos, podendo o máximo atingir
dois anos e oito meses, por ter sido o crime praticado contra servidor.
Prescrição? Oito anos! É o que diz o código penal. Resultado: a morte da Lei de
Imprensa matou também os jornalistas. Na sua vigência, o menos hábil dos
advogados conduziria qualquer processo para a prescrição. Todo processo desse
tipo durava muito mais do que dois anos. Com a nova realidade, isso ficou
praticamente impossível. Oito anos são oito anos. Isso é matemática. As razões
que inspiraram os senhores ministros do Supremo Tribunal Federal, naquele ano
de 2009, foram democráticas, doutas, libertárias. Mas erraram no cálculo. Foi
um tiro na mão, já que jornalista não escreve com o pé. Quando os profissionais
da informação entenderem a matemática do problema, vingará novamente o gênio de
Paulo Francis: “o mal da imprensa é que ela não ousa mais desagradar o leitor”.
Desagradar: eis o
papel da imprensa livre. Mas o receio causado pelo hiato decorrente da
declaração de não recepção da Lei de Imprensa, sem um anteparo que ofertasse segurança
aos jornalistas, roubará deles a energia. Ou não. Afinal, estamos em 2016 e,
até agora, nenhuma legislação nova veio reparar a injustiça causada pela
declaração de incompatibilidade com a atual ordem constitucional. Esse,
entretanto, não é o único impasse. Há outros, a exemplo das vantagens que a Lei
de Imprensa outorgava com os institutos da decadência, da retratação, etc.
Aqui, iniciei o debate, que deverá protrair-se no tempo, para abordar,
inclusive, as consequências da decisão no cível. Esse introito foi mais
metafórico e ilustrativo, procurando atender a uma finalidade didática.
Demonstramos o equívoco desse ponto de vista em vários artigos publicados na
época. Ainda assim, houve quem discordasse em parte da nossa postura, lançando
mão de argumentos tipicamente retóricos: “a Lei de Imprensa é um resíduo da
ditadura”, “a Lei de Imprensa está na escuridão dos calabouços em que militares
torturavam jornalistas”, etc. Teria sido mesmo? Procurei dialética nesses
postulados. Mas não há. Raciocinemos, portanto (e o STF já sinalizou para essa
consequência natural): expurgada a Lei de Imprensa, sobejará o que para os
jornalistas, em sede de abuso na liberdade de manifestação do pensamento? Resposta:
o restante do ordenamento. Vale dizer, o Código Penal, o Código Civil, a
própria Constituição. E algo precisa ser categorizado, com menos poesias e mais
prosa: a CF assegura, no art. 5°, inciso IV, que é livre a manifestação do
pensamento. Contudo, a mesma CF, no mesmo artigo, desta feita no inciso X,
apregoa que a violação da imagem das pessoas gerará direito a indenização pelo
dano material ou moral dela decorrente.
Por conseguinte,
ainda que não haja Lei de Imprensa para “censurar” jornalistas, haverá um Código
Penal e haverá um Código Civil. Daí a indagação: que vantagens os jornalistas tiveram
com a eliminação da Lei de Imprensa? Sinceramente, não sei. Mas permita-me
apontar as inúmeras desvantagens, dando especial enfoque ao aspecto penal,
certamente o que mais interessa aos jornalistas, radialistas, etc. (01) Pela
Lei de Imprensa, alguém que, supostamente, tivesse sido ofendido por um jornalista,
teria no campo penal três meses para ajuizar queixa-crime ou ofertar
representação criminal; pelo Código Penal, o prazo é maior, seis meses. Perde o
jornalista com o prazo mais elástico. (02) A prescrição, pela Lei de Imprensa, como
já dito, independentemente da pena a ser aplicada, ocorre em dois anos; pelo
código penal, poderá chegar a oito. E nem venham dizer que, como o STF não
suspendeu o art. 41 da Lei de Imprensa, embora se aplique o Código Penal, o
prazo prescricional continuaria sendo o de dois anos. Nada disso. O STF já
decidiu que não pode o magistrado misturar o que há de bom em uma lei com o que
há de melhor em outra, sob pena de fazer as vezes de legislador. Ou aplica uma
lei na íntegra, ou outra, também na íntegra. Sobrou o Código Penal. Quem ganhou
com isso? Não sei. Só sei que os jornalistas soçobraram. (03) Pelo art. 43, §
1º, da Lei de Imprensa, o juiz, antes de decidir se recebia, ou não, a queixa
ou denúncia, garantiria ao jornalista uma defesa prévia, grande oportunidade de
convencer o magistrado acerca da inexistência de qualquer ilícito, impedindo o
desenvolvimento do processo. Extirpada a Lei de Imprensa, acabou a prerrogativa,
mas, mesmo assim, a morte da legislação trouxe euforia à classe.
(04) Pelo art. 73
da Lei de Imprensa, só havia reincidência específica, ou seja, só seria considerado
reincidente o jornalista que já tivesse contra si prolatada, e com trânsito em
julgado, sentença condenatória por outro crime de imprensa, ou seja, da mesma
natureza do antecedente. Diante disso,
pergunto por que os encômios? Paciência! Mas essa conversa de que a Lei de
Imprensa foi concebida na ditadura é verborragia. O mentor da Lei de Imprensa,
Freitas Nobre, a concebeu anos antes do golpe militar de 1964, tendo sido um
dos maiores defensores das liberdades. Aliás, foi perseguido por isso. Intrigante
é que toda essa quizila sobre a Lei foi conduzida à revelia da biografia de
Freitas Nobre. Em 25 de outubro de 2005, por ocasião da passagem dos trinta
anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, o nome de Nobre foi lembrado de forma
honorífica como defensor da imprensa, a mesma que vibrou e aplaudiu o STF com o
extermínio de sua lei, que achou o Código Penal melhor do que a lei que nasceu
para protegê-la. Abestalho-me! O Código Penal saiu da cabeça de um grande
jurista: Nelson Hungria. Mas ele veio à tona em um período eminentemente
ditatorial. Hungria foi nomeado Ministro do STF por um ditador: Getúlio Vargas.
O grande Nelson Hungria manchou sua biografia com um episódio patético, em que
rasgou uma decisão judicial, prolatando outra em seu lugar para agradar um
sociopata, que fez história na pior fase da imprensa brasileira: Assis
Chateaubriand. Diploma ditatorial por diploma ditatorial, fico com a Lei de
Imprensa. Fico com Freitas Nobre. Fico com Vladimir Herzog. A Lei de Imprensa
morreu. A sua derrocada interessou mais aos seus inimigos. E, como ensinava
Walter Benjamin, “se o inimigo vence, nem os mortos estão seguros”.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 24 de julho de 2016, Caderno A-6.
sábado, 17 de agosto de 2019
Tipos Populares - Tô Te Ajeitando
Isto é História
Aracaju Romântica que vi e vivi
Tipos Populares
Tô Te Ajeitando
Murillo
Melins
Nome
de batismo: Domingos Correia. De baixa estatura, branco raquítico, olhos azuis,
rosto esquálido e sempre trajando paletó, gravata e camisas berrantes. Vivia
por conta própria, fazendo propaganda de casas comerciais ou vendendo bilhetes
da Loteria Federal, expostos em uma pequena vitrine, seguro por correia presa
ao próprio ombro. Morava sozinho e não contava nada de sua vida. Dizem que ele
tinha algum dinheiro e sustentava uma mulher. Tô Te Ajeitando, nos últimos anos de sua vida, pouco enxergava.
Para atravessar a rua ele apitava, os carros paravam e ele atravessava
tranquilamente. Esta é uma bela página escrita por Avany sobre Domingos
Correia:
“Era
magro e quase cego, estranho tipo de rua. Solitário na cidade, sem amigo e sem
parente. Feioso, assaz atrevido, desengonçado, insolente. Paletó preto fechado,
era sempre o que vestia. Emblemas dependurados, escudos, broches, medalhas.
Passava os dias vendendo bilhetes de loteria. Domingos era o seu nome. Correia
o seu sobrenome. Com muito orgulho, dizia ter nascido aqui, vizinho, em Matinha
D’Água Branca, no Estado das Alagoas. Contando suas bravatas, sustentava-se
inseguro numa bengala, por certo, sua arma e seu apoio. Demolidor da moral de
quem não simpatizava, eram tantos inimigos que nem mesmo ele os contava.
Detestava com prazer um político da terra, conhecido, respeitado, que por
infelicidade tinha aparência franzina e no tipo (que maldade!). Era o sósia
desse homem, terrível provocador, que apoplético espumava, quando alguém, para
insultá-lo, pronunciava completo o nome do senador. Entortava-se de lado e
sobre o ombro, agachado, respondia ao agressor: ‘Tô te ajeitando, safado,
deixei sua mãe agora no cais bebendo cachaça. Sifilítica, bandida, rapariga de
soldado’. Em riste, a bengala preta. Quem não corresse, apanhava.
E
o velho Domingos, cego, Tô Te Ajeitando
chamado, perambulava pelas ruas. De tanto viver bradando, de ódio por todo
mundo, morreu de raiva o coitado”.
-
Na próxima postagem você vai conhecer BALRIMORE e ALEIJADINHO, boêmios
inveterados, engraxates, trabalhavam de segunda a sexta-feira. Aos sábados e
domingos saíam para beber nos diversos bares do centro da cidade. Aleijadinho
era paraplégico das duas pernas e andava num carrinho de rolimã.
-
Do livro “Aracaju Romântica que vi e vivi”, de Murillo Melins, 4ª. Edição,
2011, Gráfica J. Andrade.
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As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google.
sábado, 10 de agosto de 2019
Sobral Pinto - A Consciência do Brasil
Sobral Pinto
A Consciência do Brasil
Clóvis
Barbosa
John
W. F. Dulles foi professor de Estudos Latino-Americanos na Universidade do
Texas. Como estudioso e catedrático de política brasileira, publicou cerca de
nove livros abordando temas e figuras políticas do país, sendo o conjunto de
sua obra prenhe de informações importantes para a nossa historiografia.
Causou-me curiosidade uma de suas obras, que adquiri anos atrás numa feira de
livro da Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema: Sobral Pinto, A Consciência do Brasil, Editora Nova Fronteira, 430
páginas. Impressionou-me a relação do grande advogado Sobral Pinto com figuras
importantes do nosso Sergipe. No início da década de 1980, fui seu colega no
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Era presidente da Entidade Nacional
o advogado paulista Mário Sérgio Duarte Garcia e a seção de Sergipe da OAB era
presidida pelo professor Silvério Leite Fontes. Estivemos juntos por dois anos,
mas confesso que foram poucos os contatos que mantive com ele, até porque, à
época, existia um preconceito contra conselheiros originários dos próprios
Estados, até então representados por advogados medalhões radicados no Rio de
Janeiro. Sergipe e poucos outros Estados modificaram essa sistemática de
representação a partir da gestão Mário Sérgio Duarte Garcia, que recebeu
oposição de vários conselheiros, inclusive de Evandro Lins e Silva. Sobral
Pinto estimulou equivocadamente esse tipo de preconceito. É bem verdade que, posteriormente,
Evandro e outros conselheiros reconheceram o erro. Nesse período, os meus
maiores contatos no Conselho Federal eram Victor Nunes Leal (quanta saudade!),
Heleno Fragoso, Bernardo Cabral, Hermann de Assis Baeta, Sepúlveda Pertence,
Arthur Lavigne e Nilo Batista.
Sobral
Pinto foi amigo inseparável do líder leigo dos católicos, o sergipano Jackson
de Figueiredo (1891/1928). Conheceram-se no gabinete de Affonso Pena Júnior,
Ministro da Justiça do governo de Arthur Bernardes, de quem eram conselheiros.
Partilharam da mesma antipatia e desgosto que tinham por outro sergipano,
Gilberto Amado. Foi aí que Sobral começou a se enfronhar com a política de
Sergipe e personalidades sergipanas, permanecendo essa relação até a década de
1970, seja na política, seja na prestação de serviços advocatícios. A amizade
entre Jackson e Sobral era intensa. Tornaram-se compadres, e eram aficionados
das caminhadas noturnas pela praia de Ipanema. Dessas andanças, também
participava outro sergipano, José Barreto Filho, que estava no Rio estudando
Direito e que mais tarde tornar-se-ia Secretário do Chefe de Polícia do Rio de
Janeiro, Coriolano de Góes, de 1926 a 1930. A amizade entre Jackson e Sobral só
foi interrompida em 1928, quando o primeiro morreu afogado enquanto pescava na
Barra da Tijuca. Em 1934, Sobral era Secretário–Geral da Liga Eleitoral
Católica (LEC) e direcionava a sua curiosidade política para Sergipe. Em carta
enviada ao médico Augusto César Leite, líder da União Republicana de Sergipe
(URS), que era apoiada pela LEC, pediu o seu apoio à candidatura de Erônides de
Carvalho, um médico do Exército, ao governo de Sergipe. O pedido deu certo,
tendo Erônides sido eleito deputado federal, e, mais tarde, reunida a Assembleia
Constituinte Estadual, foi o mesmo escolhido Governador do Estado. Erônides
derrotou o então Capitão Augusto Maynard Gomes, aliado roxo do getulismo, então
interventor de Sergipe e que teria uma longa carreira política.
Sobral
foi também o responsável pelo parecer que definia a autoridade do novo
governador antes da conclusão da constituição pela Assembleia Legislativa. O
entendimento firmado por ele foi aprovado por 15 dos 17 desembargadores do
Tribunal de Justiça de Sergipe. Empenhou-se, também, para que duas vagas
remanescentes de Deputado Federal (Erônides foi ser governador, Augusto Leite e
Leandro Maciel, também eleitos para a Câmara Federal, foram nomeados pela Assembleia
Constituinte Estadual para o Senado) fossem destinadas ao deputado estadual
José Barreto Filho, seu amigo de caminhada na praia de Ipanema, e para o
advogado e romancista Amando Fontes, apesar da oposição de Lourival Fontes,
também sergipano, futuro chefe do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural
do governo Vargas. Embora a sua incursão na política de Sergipe em favor de
Erônides, José Barreto Filho e Amando Fontes fosse coberta de êxito, Sobral
Pinto decepcionou-se logo com as atitudes dos seus apadrinhados, que passaram
para o lado de Getúlio Vargas e Lourival Fontes, o que o levou a dizer a
Erônides, em carta, que a política sergipana se caracterizava por atitudes
fracas, desorientadas e pouco leais. Depois, em carta a José Barreto Filho,
disse estar encerrando definitivamente suas incursões na política de Sergipe,
cujos dirigentes, “grosseiros, mal-educados,
vulgarmente ambiciosos” lhe deixaram “a
mais nojenta das impressões”. Outro fato interessante ocorreu em 1943,
quando o ex-governador de Sergipe, Graccho Cardoso, procurou Sobral para que o
mesmo defendesse o diretor da Aviação Condor, subsidiária da Lufthansa alemã,
de nome Ernest Holck.
Como
estava defendendo um empregado subalterno da Companhia, Aulette Albuquerque
Silva do Valle, ele recusou o patrocínio da causa e sugeriu o nome de Evandro
Lins e Silva para defender o amigo de Graccho Cardoso. Apesar dos êxitos
obtidos na defesa do seu cliente, recebeu um sonoro xexo de Cr$ 4.800 cruzeiros, dos Cr$ 10.000 cruzeiros cobrados, ou
melhor, fixados pelo próprio Aulette, enquanto Lins e Silva recebeu Cr$ 25.000
cruzeiros. Mas essa era uma característica de Sobral Pinto, o desinteresse por
bens materiais. Curioso, também, que John W. F. Dulles, na bibliografia
utilizada para escrever o seu trabalho sobre um dos mais destacados advogados
do país, utilizou-se de obras sergipanas escritas pelos historiadores Ibarê
Dantas (Os Partidos Políticos em Sergipe,
de 1889 a 1964), Ariosvaldo Figueiredo (História
Política de Sergipe) e J. Pires Winne (História
de Sergipe). Outros fatos marcantes são contados, mas, como o livro aborda
o período de 1930 a 1945, após esta data ficamos, ainda, desconhecendo a
relação de Sobral Pinto com políticos e cidadãos sergipanos, e sua participação
em processos de grande repercussão, como o do crime do médico Carlos Firpo,
ocorrido em Aracaju no ano de 1959. Heráclito Fontoura Sobral Pinto faleceu aos
98 anos, em 1991, sendo, apesar de uma figura controvertida, uma pessoa
apaixonante, ou como diria Victor Nunes Leal, ministro do Supremo Tribunal
Federal cassado pela ditadura Militar, Sobral era “... a consciência de cada um de nós naqueles frágeis momentos em que a
nossa entra em colapso pela paixão, pelo medo, pela ira, pela insegurança, pela
ambição, pela vaidade e até pelos desvios menores que por vezes descompassam as
personalidades mais bem formadas”.
O
jornalista capixaba Rubem Braga, nos anos 30, chegou ao ponto de descrevê-lo
como um “monstro”, dada a sua
relevância no mundo jurídico brasileiro e participação ativa nos movimentos
políticos e culturais da época. Mas, em verdade, Heráclito Fontoura Sobral
Pinto foi um dos nomes mais importantes do século passado. Notabilizou-se em
várias áreas, principalmente nos embates que travou contra a ditadura do Estado
Novo, de 1937 a 1945, e o regime militar instaurado no país a partir de 1964,
indo até 1985. Gritava e protestava contra as condições cruéis e infames das
prisões, expunha as violações das leis, atacava a incomunicabilidade dos presos
e era um inimigo das torturas praticadas nos porões desses regimes de exceção.
Ligado até os dentes ao catolicismo, tinha radical divergência com o comunismo materialista, no entanto isso
não impediu que ele defendesse os presos políticos Luiz Carlos Prestes e Harry
Berger. Sobral foi um desses raros exemplos da espécie humana. No caso de
Berger, que havia sido torturado nos porões da ditadura de Vargas, exigiu do
governo a aplicação do artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais, em defesa do
tratamento humanitário do seu cliente. Era um homem simples e sem ambições. Legalista
fervoroso, foi um dos primeiros a defender a posse de Juscelino Kubitschek num
momento em que o golpismo tomava conta do país, onde figuras políticas
derrotadas nas urnas tentavam anular no tapetão a vitória legítima do
presidente eleito. Com a posse reconhecida, foi convidado para exercer o cargo
de Ministro do STF, mas recusou. Atuou, ainda, como advogado de Miguel Arraes,
Francisco Julião, João Pinheiro Neto e tantos outros famosos nomes.
Evandro
Lins e Silva, outro grande nome da advocacia brasileira, tinha Sobral Pinto
como ídolo. A aproximação de ambos ocorreu durante o tormentoso período do
Estado Novo nos corredores do Tribunal de Segurança Nacional, órgão de exceção
criado para julgar os adversários do regime. Disse Evandro sobre Sobral, em sua
obra Arca de Guardados: “Sobral Pinto
deu lições de galhardia, de amor ao próximo, de uma rara compreensão do dever
de assistência moral e pessoal aos acusados, assistência cujo valor é preciso
não subestimar. Nas horas agudas da repressão política, a intolerância é
ilimitada e é cega e bruta a ação dos verdugos. Sobral Pinto viveu grandes
instantes de sua carreira naquele esdrúxulo pretório. E, advogado vitorioso,
aclamado e aplaudido pelos colegas de todos os recantos da terra, morreu na
pobreza mais franciscana. Deixou uma legenda de altruísmo, de abnegação, de
honradez. Sim, Sobral Pinto foi diferente, foi uma anomalia, foi um portento, foi
enorme, Rubem Braga teve razão – foi um monstro”. Por mais intransigentes que fossem
os seus adversários, nenhum deles deixava de reconhecê-lo como uma das maiores
forças morais do Brasil do século XX. Era um homem comprometido com a valorização
do ser humano, vinculado a uma corrente filosófica que privilegiava a justiça
social, a razão humana e a ética. Victor Nunes Leal tinha razão. Sobral era a
Consciência do Brasil.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 10/07/2016, Caderno A-6.
- As fotos foram retirados do Google.
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