Aracaju/Se,

domingo, 29 de outubro de 2017

Ensaio sobre a hipocrisia


Opinião Pessoal
Ensaio sobre a hipocrisia
Clóvis Barbosa
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Facebook, uma data atrás. O cidadão posta uma foto com os ex-presidentes da República, Lula, Collor e Sarney. Abaixo das fotos, a frase: “Três ladrões deste país”. Entra um interlocutor na página e afirma: “Está faltando um ladrão aí”. “- quem?”, pergunta o dono do perfil que postou as fotos. “– Você, que é professor da universidade, dedicação exclusiva, e só dá uma aula por semana”, respondeu o visitante. Pronto, a partir daí a baixaria tomou conta do diálogo, patrocinada pelo professor, que não se conformava em ser desmascarado publicamente. Quem acompanhou as eleições pela mídia e pelas redes sociais teve a oportunidade de observar disparates jamais vistos na história do debate eleitoral, onde o ódio foi disseminado, a mentira institucionalizada e a cultura do medo consagrada. O pior de tudo é que um cancro se espalha em todas as classes sociais, onde a corrupção, a peta, o logro, a molecagem, se tornam cada vez mais a regra, enquanto a decência se transforma na exceção. Uma fauna obscurantista toma conta dos espaços, manipulando informações sempre em benefício dos seus privilégios. Corrupção é coisa dos outros, nós somos anjos. Eu estou tendo cada vez mais uma visão pessimista sobre a natureza humana. E começo a acreditar que está muito difícil restaurar a moralidade. Esta semana me deparei com um processo no Tribunal de Contas de Sergipe que me deixou estarrecido pela forma como o dinheiro do erário se evapora em certos setores do serviço público. Havia determinado, no início do ano, na qualidade de Conselheiro daquela Corte, que fosse feita uma inspeção nas instituições gestoras da saúde do Estado e do município de Aracaju, tanto na área de pessoal, como nos contratos. Recebi o primeiro resultado, que teve como ambiente auditado a Fundação Hospitalar de Saúde, que abrange a administração do Hospital de Urgência de Sergipe, o HUSE, também conhecido como Hospital João Alves Filho, a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192), os hospitais regionais de Nossa Senhora da Glória, Estância, Propriá, Lagarto, Nossa Senhora do Socorro, os hospitais locais de Tobias Barreto e Neópolis, além da Unidade de Pronto Atendimento de Boquim (UPA).
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A Fundação Hospitalar de Saúde (FHS), vinculada à Secretaria de Estado da Saúde (SES), tem como finalidade exclusiva, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, prestar serviços de saúde em todos os níveis de assistência hospitalar, tudo em consonância com a Lei Estadual nº 6.347, de 2008. Vale aqui compreender o papel do SUS. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Ele abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Amparado por um conceito ampliado de saúde, o SUS foi criado, em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, para ser o sistema de saúde dos mais de 180 milhões de brasileiros. Antes do SUS, a assistência à saúde cobria 40% da população brasileira por meio do setor privado e do fundo contributivo da previdência social (INAMPS) assegurado, tão somente, aos empregados formais. O restante da população (60%) dependia da filantropia. O SUS vem sendo implantado como um processo social em permanente construção. Para oferecer a cobertura universal da assistência à saúde, depara-se com o desafio do seu financiamento. O mais comum é a insuficiência dos recursos financeiros para se construir um sistema público universal. É verdade que se gasta pouco em saúde frente à demanda. Todavia, também, se gasta mal. O acerto da escolha em tratar, inicialmente, das despesas de pessoal fica patenteado no seguinte quadro: No ano de 2013, a folha de pagamento da FHS foi de R$ 463 milhões de reais, entre a folha propriamente dita, e os serviços de terceiros pessoa física e jurídica. A despesa total com pessoal representa 83,15% da receita da fundação advinda da transferência do Fundo Estadual de Saúde. Em 2013, o Fundo Estadual repassou o montante de R$ 557 milhões de reais para a FHS, que é integrante da Administração Pública Indireta do Poder Executivo do Estado de Sergipe, dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de interesse coletivo e utilidade pública, com autonomia gerencial, patrimonial, orçamentária e financeira, quadro de pessoal próprio e prazo de duração indeterminado.
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A primeira irregularidade encontrada foi a ocupação de cargos públicos sem a sua respectiva criação, ou seja, quantitativo de pessoal superior ao aprovado. Do que foi apurado pela equipe técnica, o Edital nº 1 – SEAD/SES/SE – FHS, de 10 de outubro de 2008, era para o preenchimento de 2.765 vagas, conforme deliberação do Conselho Curador da Fundação Hospitalar. Sem que tivesse sido apresentada nova deliberação do Conselho Curador, para equacionar a necessidade do serviço, foram preenchidas 4.275 vagas. Significa dizer, portanto, que, em tese, há 1.510 provimentos irregulares em cargos públicos. A segunda irregularidade constatada foi a acumulação ilegal de cargos públicos. A Constituição Federal estabelece que é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários.  A nossa Carta Magna só admite a acumulação de um cargo de professor com outro técnico ou científico, ou a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. E arremata que a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público. A partir do cruzamento das informações constantes entre a folha de pagamento da FHS com o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) e os dados do SISAP/Auditor/TCE, foram identificados 1.340 servidores em potencial descumprimento do mandamento constitucional. A terceira irregularidade encontrada foi a de servidores da FHS (efetivos ou contratados por tempo determinado) prestando serviços para a própria Fundação Hospitalar de Saúde através das Pessoas Jurídicas, como SAMED, COOPERCADIO e COOPANEST. Verificou-se, neste caso, uma evidente violação ao princípio constitucional da moralidade administrativa, pois o pressuposto lógico da contratação de pessoa jurídica é a ausência ou deficiência de profissionais no quadro pessoal de FHS. Ora, se a Fundação pode contratar jornada de trabalho entre doze e trinta e seis horas semanais, é juridicamente imoral remunerar um servidor próprio por meio de empresa interposta.
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A quarta irregularidade apontada consistiu no pagamento excessivo de horas extraordinárias em manifesta violação ao princípio da eficiência administrativa. A flexibilização na contratação de jornada de trabalho permite o adequado dimensionamento do serviço com o quadro de pessoal, sobretudo com a contratação por tempo determinado. Na contramão da eficiência administrativa, há trinta e um servidores com duplo vínculo na FHS e recebendo horas extraordinárias em ambos. A quinta irregularidade foi a identificação de remuneração acima do teto constitucional. A Constituição dispõe que, para o caso em tela, a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, do Governador, no âmbito do Poder Executivo. Por fim, a sexta e última irregularidade foi a ilegalidade do pagamento da gratificação “salário variável” para servidores cedidos da Fundação Hospitalar de Saúde, sem que esta gratificação tivesse sido incorporada ao vencimento dos servidores. Inserido no contexto de que cabe aos Tribunais de Contas a fiscalização da efetiva e regular aplicação dos recursos públicos em benefício da sociedade, e diante de tantas irregularidades, fui obrigado a tomar algumas medidas que foram aprovadas pelo Pleno da Corte à unanimidade. Lincoln dizia que se pode enganar a todos por algum tempo; se pode enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo. Isso me faz lembrar a estória de Procusto. Diz a mitologia que um monstro chamado Procusto tinha um leito de ferro, onde deitava suas vítimas. Se a vítima fosse maior do que o leito, Procusto amputava o excesso, nos braços ou nas pernas; se menor, ele esticava-a até alcançar o tamanho do leito, levando-a à morte. Teseu executou Procusto, deitando-o transversalmente no próprio leito e decapitando as sobras. Eram muitas. Eis o impasse. Quem se acha dono do tamanho dos outros e do tamanho do povo acaba correndo o risco de perder braços e pernas. E, quem sabe, até a cabeça. 

Post Scriptum
Marcelo Déda
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Recebi de Alberto Magalhães, funcionário público estadual de Sergipe, o seguinte e-mail que compartilho com os leitores: “Há alguns dias estive no gabinete do conselheiro Clóvis Barbosa de Melo e pude avistar, a lhe fazer companhia, uma foto do então governador Marcelo Déda, que me impregnou de rara emoção. Na fotografia, feita em momento de descontração, em ambiente doméstico, ele estava vestido com uma camiseta comum, de cor clara, cabelos meio desalinhados e um sorriso feliz. A sua expressão era de alegria, vitalidade, paz... uma flor no auge do seu desabrochar. Essa exuberante imagem, se sobrepondo àquela que nos foi apresentada pela mídia, nos seus últimos dias, me trouxe ao pensamento, num segundo, muitas outras imagens de sua pessoa antes de seu padecimento. Ao ver a vida pujante e a beleza dos já descritos sentimentos expressos em sua face foi impossível não me comover intimamente e não encher os olhos de ternura e de um misto de alegria, tristeza e irresignação.  Esse momentâneo desencontro de sentimentos se deu em virtude da despedida precoce de alguém que ainda tinha mais para nos oferecer e para ser retribuído. Aquela imagem me remeteu ao Marcelo Déda cidadão consciente do seu chamado, do pai e esposo zelosos, do militante engajado, do amigo sincero, do apreciador do chopinho e da MPB. Daquele homem tão aparentemente comum, mas herói social, que acreditou na possibilidade de um mundo melhor para todos e que foi fazer a sua parte e contribuir para tal. Que, num embate final, venceu. Porque não passou nem passará para nós, o povo sergipano”.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 26 e 27 de outubro de 2014, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, no domingo, 26 de outubro de 2014, às 14h11min, sítio:

  

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Mulheres da Antiguidade - Fúlvia

Isto é história

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
FÚLVIA
Vicki León
É improvável que você tenha ouvido falar de Fúlvia – uma decadente encantadora cuja velocidade para passar por dinares e maridos (entre eles Marco Antônio) chamou a atenção até de romanos indiferentes. Como outras companheiras de pré-celebridades, seus feitos foram ofuscados pela atração principal que seguiu suas pegadas matrimoniais – Cleópatra VII.
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Marco Antônio foi o companheiro número três de Fúlvia. Cúrio, seu maridinho anterior, quando mais jovem, havia sido amigo íntimo de Marco Antônio. Amigos realmente íntimos. O pai de Cúrio tinha ficado uma fera com o intenso relacionamento homossexual dos dois – e com as tentativas de Marco de sugar seis milhões de sestércios de seu amante.
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Fúlvia e Marco Antônio tinham outras coisas em comum além de Cúrio: eles adoravam dinheiro, festas e poder, mesmo que isso significasse provocar revoltas, guerras ou confusão. Quando Júlio César morreu, Marco Antônio ficou com o mapa de mina para alcançar o topo. Primeiro ele e Fúlvia revigoraram suas respectivas fortunas, mergulhando no dinheiro que Júlio César havia deixado para ele. Depois sugaram os recursos do Estado até a exaustão e começaram a vender os bens estatais. O celeiro de pechinchas de Fúlvia e Marco Antônio ficou conhecido como parada única para a compra de títulos, privilégios e imóveis – e até mesmo cidades. Naturalmente, esses abusos grosseiros levaram a expurgos, vendettas e guerras – afinal, isso era a Itália. Entre aqueles que foram assassinados estava o famoso orador Cícero, que falou tantas coisas maliciosas sobre Marco que Fúlvia atravessou sua língua com um alfinete quando o assassino entregou a cabeça de Cícero para ela.
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Sem nunca ter sido fiel a apenas uma esposa, amante ou a um só sexo, Marco Antônio ficou ainda mais ocupado a partir de 42 a.C., se revezando entre Fúlvia e família e a nova amante, Cleópatra, no Egito. Fúlvia se mantinha ocupada travando uma pequena guerra contra Otaviano em nome de Marco – de um lado como manobra do tipo “volte para casa para os braços da mamãe”, e de outro para deixar seu marido saber que os divertimentos de grande ação ainda estavam em Roma. Finalmente ela perdeu e fugiu para Atenas, onde ela e Marco tiveram um encontro amargo antes que ele se perfilasse para lutar na Itália. Esgotada por todos esses esforços (não é fácil ser ruim assim), Fúlvia morreu em razão de uma doença em 40 a.C. Sempre galante, o novíssimo viúvo Marco apresentou a seu oponente Otaviano a versão de que Fúlvia era a culpada por toda aquela confusão. Otaviano, que por acaso tinha uma irmã recém-enviuvada andando melancólica pelos cantos, respondeu: “aceito a sua história, se você aceitar a minha proposta”. Resultado final: Marco Antônio tomou Otávia como nova esposa, quase no mesmo momento em que Cleópatra estava dando à luz seus gêmeos. Competindo com uma vida tão monumentalmente desordenada, não é de admirar que Fúlvia tenha desaparecido pelas brechas da história.      
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Faustila, a agiota da antiguidade 

Pompéia pode não ter se vangloriado de oferecer cartões de crédito ou abatimento para carros, mas tinha agiotas do tipo mais voraz possível. Faustila foi uma das pessoas que conquistaram proeminência sombria por suas transações de negócios inflexíveis. Os piores agiotas, como Faustila, tinham suas bases de trabalho nos antros de jogatina ou nas tavernas, frequentemente usando as paredes em lugar de documentos escritos em papel. Faustila frequentava diversos antros de jogatina em sistema rotativo, por isso suas transações aparecem em várias paredes da cidade. Empréstimos de quinze e vinte dinares eram típicos de um dia de trabalho. Ela cobrava juros mensais, que saíam a 45 por cento ao ano. Competente no departamento de garantias, Faustila recolheu brincos, um relógio e um capuz de uma cliente desesperada como garantia pelo empréstimo. Esses detalhes foram devidamente anotados em paredes que sobreviveram à destruição de Pompéia, em 79 d.C., provando que os agiotas realmente vivem para sempre. 

A autora
Vicki León
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- A próxima postagem de Mulheres Audaciosas da Antiguidade vai falar de “SULPÍCIA”, que viveu em torno do ano 15 a.C. na Roma Antiga, e se dedicou à arte poética, levado por Marco Messala, o seu mecenas.  
– Do livro “Mulheres Audaciosas da Antiguidade”, título original, “Uppity Women of Ancient Times”, de Vicki León, tradução de Miriam Groeger, Record: Rosa dos Tempos, 1997.

- Todas As imagens foram extraídas do Google.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Primavera sem Flores

Opinião Pessoal

Primavera sem flores
Clóvis Barbosa
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Tento entender, confesso, com minhas elucubrações filosóficas, o comportamento humano. E cada vez mais me conscientizo que o que nos humaniza é o fracasso. Não pretendo discutir teses antropológicas, mas refletir um pouco sobre as mesquinharias da vida a que tanto damos importância e nossa dificuldade em lidar com a felicidade coletiva. Se, como dizia a poetisa Florbela Espanca, “tudo no mundo é frágil, tudo passa...” por que elegemos determinados tipos de sentimentos como prioridade no nosso dia-a-dia? O ódio, exteriorizado com prazer orgástico, encontra neste momento de eleições ambiente propício para se desenvolver e, por vezes, desencadear um processo de obsessão contra aquele que pensa diferente de nós. Lembro-me de Millôr na sua conceituação de democracia e ditadura: “Democracia é quando eu mando; ditadura é quando você manda”. Tenho vivenciado, neste momento de escolha de representação política, casos inusitados que me fazem lembrar o talento desse grande escritor pernambucano Nelson Rodrigues, quando disse que “vivemos numa época dominada pelos idiotas”. A frase continua atualizada. Cícero, pensador romano, que viveu entre os anos 106 e 47 a.C, afirmava que “A verdade se corrompe tanto com a mentira como com o silêncio”.  a mentira é caolha e é arma dessa matilha tíbia de caráter; e o silêncio, a conduta dos dúbios de personalidade e dos castrados de mente e espírito. Infelizmente, a luta contra esse tipo de gente já nasce perdida, daí a impotência da minoria pensante. A mediocridade domina os ambientes em detrimento do mérito. Essa alcateia está em todos os lugares marcando posição. Recentemente estava numa festa quando, na roda de pessoas em que me encontrava, uma delas sugeriu a um dos interlocutores, um médico, que votasse em determinado candidato majoritário. A resposta foi violenta e os mais absurdos adjetivos foram desferidos contra o candidato, por sinal também médico. A coisa ficou feia e uma forte discussão tomou conta do recinto, somente não chegando a maiores consequências em face da intervenção dos presentes. Mas, a roupa suja que foi lavada naquele momento, deixando todos perplexos com as acusações reveladas, levou-me a uma dura constatação: ali estava consagrado o chamado ódio de classe, onde predominava a obsessão pela intocabilidade egoística da corporação. A contratação de médicos estrangeiros para atender a população pobre do interior era radicalmente contestada, entretanto, não se oferecia uma alternativa para uma prestação de saúde mais eficaz pelos profissionais da terra.
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Enquanto penso nesse tipo de comportamento humano, emociono-me ao lembrar-me de uma menina de 13 anos, Blanche Zybert. No dia 21 de setembro de 1943, ela escreveu um bilhete a lápis sobre um papel que dizia: “Querido Henri: estamos bem, em um vagão de trem que provavelmente nos levará à Holanda”. Jogou o bilhete pela janela do trem que a levava de Mechelen, Bélgica, a Auschwitz-Birkenau, o campo de extermínio criado pelos nazistas na Polônia. Esse bilhete foi encontrado e se encontra hoje no Kazerne Dossin, uma espécie de museu sobre o Holocausto, inaugurado em 2012 em Mechelen, no exato local onde servia de terminal para a chamada última viagem. Mas, os exemplos históricos estão aí para nos alertar daquilo que Kant, em “Crítica da Razão Prática”, nos dizia. O homem é um ser capaz de seguir uma lei moral racional. No entanto, também ele é suscetível de ser desviado dela pelos desejos. Agir moralmente, como se nota, é sempre uma batalha. Kant, como se observa, continua atualizadíssimo. O desejo tem sido o estopim dos grandes males que atormentam a humanidade. Por ele, cometem-se os atos mais vis ou  crueis. Mas, o desrespeito com o pensamento alheio tornou-se objeto de virulentos ataques e da oportunidade do destilamento de ódio contra alvos preferidos. Recentemente, uma polêmica tomou conta da mídia e das redes sociais. O presidente da OAB-DF, Ibaneis Rocha, deu entrada na Comissão de Seleção e Prerrogativas daquela seccional em um pedido de impugnação à inscrição nos quadros de advogados do ministro aposentado do STF, Joaquim Barbosa. O impugnante lembra vários fatos praticados pelo ministro contra advogados no exercício da profissão e até conceitos firmados em desfavor da OAB. Cita o caso de Maurício Correia, ex-ministro do STF e ex-presidente da OAB-DF, a quem lhe foi imputado pelo impugnado a prática do crime de tráfico de influência previsto no Código penal, tendo salientado: “Se o ex-presidente desta Casa, Ministro Maurício Correia não é advogado da causa, então, trata-se, de um caso de tráfico de influência que precisa ser apurado”. Em sessão do CNJ, generalizou suas críticas a juízes e advogados: “Há muitos juízes para colocar para fora. Esse conluio entre juízes e advogados é que há de mais pernicioso. Nós sabemos que há decisões graciosas, condescendentes, absolutamente fora das regras”. Sobre a criação de novos Tribunais Regionais Federais, disse que “Os Tribunais vão servir para dar emprego aos advogados e vão ser criados em resorts, em alguma grande praia”.
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Outras diatribes praticadas pelo antigo ministro do STF contra advogados foram citadas, todas merecendo o repúdio da instituição em várias oportunidades. Mas, o que se quer aqui registrar é o direito de petição que tem toda e qualquer pessoa. Se há o bom direito na pretensão do battonier da corporação advocatícia, esta vai ser avaliada, após o devido processo legal, onde a parte impugnada vai ter a oportunidade de se manifestar e rechaçar os argumentos produzidos contra si. Pronto, não há necessidade de tratar o evento como se fosse um ato insano ou de retaliação. Soa estranho que um homem integrante da mais alta Corte do país, que tratou a advocacia com desdém, fazendo acusações generalizadas, queira, agora, fazer parte dessa mesma instituição.  Penso que o homem quedou-se inerte ao seu cotidiano. E toda vez que ameaçam esse cotidiano nos transformamos em feras banais. É uma pena! Que fazer com pessoas que se contentam com uma primavera sem flores? Apesar de tudo, como Vandré, ainda acredito nas flores vencendo o canhão da insensatez.

Post Scriptum
Quarta-feira de cinzas
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Durante a semana que estava escrevendo o artigo da quinzena passada (Ciclo da Vida, republicado em 28/09/2014), indagava a alguns amigos sobre a felicidade. – o que era felicidade? Recebi do amigo Luiz Eduardo Oliva, após publicação do artigo, o seguinte e-mail: “Na quarta feira de cinzas cai o pano. A vida volta à realidade. Os bacantes recolhidos salivam o sabor azedo da ressaca. Há ainda uma confusão na mente, ressoa o eco dos dias da tríade momesca. Vem a velha canção ‘carnaval desengano, deixei a dor em casa me esperando e brinquei e gritei e fui vestido de rei, quarta-feira sempre desce o pano!’ Ah, a felicidade... e afinal, o que é a felicidade? Indagava-me ontem o velho Clóvis Barbosa ao brindar um Pinot Noir numa cantina ítalo-sergipano nada momesca. Eis a pergunta para nenhuma resposta convincente. A única que me ocorre é que a felicidade é a festa do coração, dura enquanto durar a festa. Lembrei-lhe o grande J. Inácio, o mágico pintor do amarelo, da luz do sol e das bananeiras nas terras Del Rey que um dia, exaltando o pintor de paredes no seu ofício numa manhã nos anos oitenta dum festival de arte de São Cristóvão, disse-me: ‘- Não sei porque os homens fazem festas. Para mim a festa é o sol que invade meu quarto trazendo todas as cores quando acordo e me diz: homem, vai pintar...’ Então lembrei a canção de Haroldo Barbosa e Luiz Reis ‘...eu abri a janela  e esse sol entrou...de repente, em minha vida  já tão fria e sem desejos...estes festejos, esta emoção...luminosa manhã...porque tanta luz, tanto azul...é demais pro meu coração...’ Vejo o quadro ‘Quarta-feira de cinzas’, obra do pintor alemão Carl Spitzweg e observo quanta verdade há nele para retratar o fim do carnaval... Um pierrot e sua realidade: finda a festa, de volta à prisão da vida, uma tosca moringa d'água e um exuberante raio do sol da esperança a atravessar as grades da prisão da vida... Carnaval desengano... Volto à pergunta do velho Clóvis Barbosa: E a felicidade...? Uma luminosa manhã...”

- Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 12  e 13 de outubro de 2014, Cqderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 12 de outubro de 2014, às 10h34min, sítio:


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