Aracaju/Se,

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Mata Escura - Conclusão


Isto é história
Mata Escura - Conclusão
Acrísio Torres



Eles, os abastados, utilizam o dinheiro para satisfação de seus sentimentos delituosos. Todo acolhimento era dado aos matadores. Todavia, presos os autores materiais de seus crimes, sem demora os abandonavam. – E o que me resta? – perguntou a si mesmo o bandido. Restava a Mata Escura morrer no patíbulo. No entanto, desejara ter tido o destino de suas vítimas. Ter terminado sua vida terrena como havia matado, e não porque havia matado. A lei de seus semelhantes o punia com a morte na forca. Mas, nessa punição não podia compreender que se achava com o Crucificado. Eram diferentes as condições. Discordava do reverendo Aires da Mata. Não podia conceber que o Crucificado, da cruz, o estivesse chamando e lhe oferecendo sangue e água para lavar as suas culpas, os seus crimes.

Punha em dúvida o sagrado ministro do Senhor, que o confessara e absolvera de seus crimes. Matar e ser absolvido pelo Alto. Não concebia essas duas realidades entremeadas pela morte legal aplicada pelos seus semelhantes. Não devia esperar confiantemente a misericórdia de Deus, como assegurara o reverendo Aires da Mata. E, separada a alma do criminoso corpo, ir gozar da bem-aventurança eterna. Separada a alma... A reticência livrou de Mata Escura o rude metafísico, e seu pensamento se fixou na terra. Tinha a face serena. Lembrava a de um homem que, na proximidade do fim, despedia-se dos parentes, dos cúmplices. Um doloroso adeus ao pai, à mãe, aos irmãos, para sempre. Também aos cúmplices. Nos seus olhos pareciam ler-se uma serena advertência aos que eram espectadores de sua morte na forca.

- Olhem para o meu fim! Não podiam entendê-lo. Talvez mesmo, no fundo d’alma, lamentassem o réu e condenassem a lei que o eliminava na forca. É possível que, segundo Sykes, os criminosos expressem mesmo os nossos impulsos sufocados. Havia chegado a hora do sacrifício de Mata Escura. Deixou o condenado a cadeia de Itabaiana escoltado por dois guardas, percorrendo as ruas até o cadafalso. Tinha a face serena. Chegado ao local, de joelhos, depois de receber as últimas consolações e absolvição final, subiu os degraus do patíbulo. Disse que queria falar ao povo. Desejava manifestar os seus crimes. Foi dada a permissão pelo juiz de execução. Pediu um copo de vinho, bebeu e pronunciou palavras memoráveis. Tinha a voz pausada, mas firme e clara. – Meus irmãos, vejam a minha desgraça!

Exortava a todos que o tomassem como um triste exemplo, a fim de que não caíssem onde ele havia caído. Naquele momento parecia acreditar que ninguém mais cometeria crimes. Estranho, insondáveis os sentimentos de muitos criminosos nos últimos minutos de vida. Pode ser que suas advertências decorram de fundos anseios, porque existe egoísmo mesmo no matar. Talvez influa a certeza de um juízo final. Lembrara-se de Deus, e por seu amor pediu que não matassem para que não morressem como ele ia morrer. Mas, de repente, assumiu uma brusca atitude. – Os ricos foram a causa do meu fim! Esperava que nenhum pobre mais haveria de cometer os males que os poderosos ordenassem, pelo poder do dinheiro. Haviam-no levado àquela condição, e na sua desgraça o abandonaram.

Houve uma ligeira pausa. Pesado e lúgubre silêncio envolvia a multidão na tarde fria. Depois, Mata Escura começou a confessar os seus crimes. Ninguém devia ser culpado da morte do filho de Tobias do Socorro, proprietário de salinas. Foram ele e... Não revelou o nome do cúmplice. A ninguém se devia culpar de um tiro em Estácio Furtado, senhor de engenho em Capela. Era ele o culpado e não o irmão da vítima, que se achava preso inocentemente. Também fora ele o autor do tiro fatal dado em Manoel Florêncio, feitor do sítio Bonfim, em Divina Pastora. Nova pausa. Na face do condenado retornava a decisão de acusar os poderosos. – As mortes que ma mandaram cometer... Interveio o reverendo Ayres da Mata, que havia acompanhado Mata Escura ao patíbulo.

– Filho, não perca a sua alma, disse-lhe o sacerdote. O condenado calou. Nada mais podia manifestar sem revelar o nome dos autores intelectuais de seus crimes. Talvez fosse melhor morrer sem acusar, nem a esses. Não devia perder a alma, insistia o sacerdote. Nada mais disse Mata Escura. Entregou-se às mãos do carrasco. No entanto, por lembrança dele próprio, desejou lançar-se por si mesmo da forca. – Filho, não faça isso! – Gritou o reverendo. Para o velho sacerdote Aires da Mata era cometer mais um crime, um suicídio. Perderia a sua alma, advertira o assistente religioso. Deteve-se o condenado. Devia deixar o algoz cumprir o seu oficio, ao que Mata Escura se resignou, e pagou com a vida todos os seus crimes. Negra noite envolveu o horrível cenário.

(*) - Do livro Sergipe/Crimes Políticos I, Cenas da vida sergipana 2, autoria de Acrísio Torres, Thesaurus Editora, prefácio do jornalista Orlando Dantas, páginas 86 e 87.

- Chegamos ao final da obra do professor Acrísio Torres, membro da Academia Sergipana de Letras. Ele é autor das seguintes obras: História de Sergipe, 2ª. Edição (1967); Geografia de Sergipe, 1ª. Edição (1970); Literatura Sergipana, 2ª. Edição (1974); Minha Terra, Minha Gente, 1ª. Série, 1º grau; Aracaju, Minha Capital, 2ª. Série, 1º grau; História de Sergipe, 3ª. Série, 1º grau; Geografia de Sergipe, 3ª. Série, 1º grau; Sergipe e o Brasil, 4ª. Série, 1º grau; Leituras Sergipanas, 1ª. Série, 1º grau; Leituras Sergipanas, 2ª. Série, 1º grau; Leituras Sergipanas, 3ª. Série, 1º grau; Leituras Sergipanas, 4ª. Série, 1º grau; Virgínio de Sant’Anna, (1967); O Secretário de Guilherme Campos (1968); Graccho Cardoso (1973); Zózimo Lima (1973); Augusto Leite (1974); Os amores de Pedro II em Sergipe (1981); Cátedra e Política (1988) e Imprensa em Sergipe, I (1993).

- A próxima e última postagem do livro será feita no dia 8 de março de 2011, oportunidade em que estaremos apresentando o prefacio da obra, de autoria do jornalista Orlando Dantas, onde ele traça o perfil do autor e manifesta a sua discordância em relação ao momento do crime de Fausto Cardoso. Orlando Dantas foi proprietário do jornal Gazeta Socialista, mais tarde transformada em Gazeta de Sergipe, um dos jornais que fez história na imprensa de Sergipe.

Florbela Espanca - Sonetos

O que estou lendo?

Sonetos
Autoria – Florbela Espanca
Aletheia Editores - Lisboa


Contra-Capa



Florbela Espanca nasceu a 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, Portugal. Filha ilegítima (ou de “pai incógnito”), foi baptizada com o nome de Flor Bela de Alma da Conceição. Freqüentou a escola primária em Vila Viçosa, o Liceu André de Gouveia, em Évora (um liceu masculino), e a Faculdade de Direito de Lisboa. Casou-se por três vezes (1913, 1921 e 1925) e trabalhou como jornalista e tradutora. Florbela Espanca tornou-se um dos poetas portugueses mais célebres de todos os tempos. Cantora do Amor, a sua obra ímpar é fruto de um feminismo, muito ao gosto dos anos 20, mas também das contradições que lhe iam no espírito. Morreu (suicidou-se) a 8 de dezembro de 1930, em Matosinhos. Dela disse Fernando Pessoa ser uma “alma sonhadora, irmã gémea da minha”.

Um soneto de Florbela

A Maior Tortura
A um grande poeta de Portugal

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia...
Não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás, tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia...
A minha pobre Mãe tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, em sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas minha tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és,
Para gritar num verso a minha Dor!...






Cavaco Silva e a lição da morte política

Artigo pessoal

Cavaco Silva e a lição da morte política
Clóvis Barbosa

Cavaco Silva
Presidente de Portugal
Vindo de Barcelona, cheguei em Lisboa na sexta feira, dia 21 de janeiro. Estava ansioso para assistir as eleições presidenciais em Portugal, que seriam realizadas no domingo, 23 de janeiro, onde seis candidatos disputavam a hegemonia do poder presidencial no país luso: Aníbal Antônio Cavaco Silva, 71, Presidente desde 2006, com o apoio do Partido Social Democrata, do CDS – Partido Popular e do Movimento Esperança Portugal; Defensor de Oliveira Moura, 65, independente, deputado do Partido Socialista; Francisco José de Almeida Lopes, 55, pelo Partido Comunista Português e pelo partido ecologista “Os Verdes”; José Manuel da Mata Vieira Coelho, 58, deputado pelo PND e apoiado pelo partido Nova Democracia; Manuel Alegre de Melo Duarte, 74, apoiado pelo Partido Socialista, pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses; e Fernando de La Vieter Ribeiro Nobre, 60, candidato independente. No domingo, a cidade de Lisboa estava calma, nem parecendo que estávamos num dia de eleições. A temperatura oscilava entre 6 C° e 8º. Em Madragoa, São Bento, Alto do Pina, no Chiado, Rossio, Belém e outros bairros da velha Lisboa, o ambiente era de total silêncio em relação às eleições. Nas sessões eleitorais, o clima era de plena tranqüilidade e a conversa era só uma, a abstenção em massa. Tentei mostrar a alguns eleitores a importância da participação popular no processo de escolha do Presidente da República.


Lisboa, vista do Rio Tejo
Replicando, alguns disseram que não adiantava nada, porque o presidente se comportava como um monarca inglês. Não mandava em nada, alternando o comando do Estado, entre o primeiro-ministro, que é o chefe do governo, Banco Central Europeu, responsável pela moeda única da zona euro, e que na sua missão de assegurar o poder de compra da moeda, prejudicava imensamente a soberania do estado português, e, ainda, o parlamento europeu, que é quem dita as normas aos países do continente. Outros, porém, concordavam em votar. A cidadania exige a participação ativa do cidadão na vida do seu país, do seu estado, do seu município, do seu condomínio, em todos os campos da atividade humana. O voto, por sua vez, possui uma simbologia singular, que é o de oportunizar ao cidadão a participação nos destinos da sua comunidade, de sua nação, e de sua história. Portanto, o estado democrático só se concretiza com a verdade eleitoral, ou seja, a participação dos eleitores no processo de escolha dos seus representantes. Daí a minha surpresa com o resultado das eleições. A abstenção foi histórica: 53,37% dos portugueses não foram as urnas, permitindo que a minoria reelegesse o Presidente Cavaco Silva que, dos 46,63% dos votantes, obteve a vitória esmagadora de 52,94% contra 47,1% de todos os cinco candidatos juntos.

José Sócrates
1º Ministro Português
Os analistas afirmam que um dos motivos da abstenção foi a entrada em vigor do cartão único, ou cartão do cidadão, que dentre outros números, modificou o do título eleitoral, o que dificultou a sua procura pelo eleitor, fazendo com que muitos desistissem de cumprir o seu dever de votar. Quanto ao vencedor, Cavaco Silva, reeleito para a presidência de Portugal, somente terá desafios pela frente num país que viu decrescer a atividade econômica em 2010, prenunciando uma crise de grandes proporções. No mês de abril, segundo os analistas, quando se conhecerem os dados da execução orçamentária do primeiro trimestre, é que poderá ocorrer uma reviravolta na política portuguesa, falando-se até na dissolução da Assembléia da República, cuja minoria socialista com o apoio dos sociais-democratas administram o País na pessoa de José Sócrates, o primeiro-ministro. Sim, antes que esqueça, nos termos da Constituição Portuguesa, o regime lá é semipresidencialista. A administração do Estado é feita pelo governo, representado por um primeiro-ministro, que é nomeado pelo Presidente da República, tendo em conta os resultados das eleições para a Assembléia da República e o nome é indicado pelo partido mais votado nesse escrutínio. O nome de José Sócrates foi escolhido justamente porque a oposição à Cavaco Silva foi a vitoriosa nas eleições da Assembléia da República nas últimas eleições.


Defensor Moura
O lanterninha das eleições

Mas, afora isso, fiquei impressionado com o depoimento de Defensor Moura, o lanterninha, que obteve apenas 1,6% dos votos: “não felicito quem ganhou”. Em política é preciso saber perder, saber, inclusive, morrer. Dizia Churchill: “Política e guerra são igualmente excitantes e perigosas. Acontece que, na guerra, morremos uma única vez, enquanto que, na política, morremos inúmeras”. Esse é o inevitável problema da política: saber morrer. Churchill soube. E é isso que distingue os fracos dos fortes. Estes aceitam a derrota, mesmo que injusta; aqueles não a querem, mesmo quando a merecem. Todos sabem que se não fosse Churchill, o mundo hoje poderia estar nas mãos do nazi-facismo. Todavia, Churchill venceu a guerra. Com a derrota da Alemanha, em 1945, o planeta retomou seu curso e Churchill, vitorioso, candidatou-se à recondução como premiê, na certeza de que o parlamento inglês reconheceria sua grandeza. Mas, ele perdeu. Sobreviveu à grande guerra, mas morreu (temporariamente) na política, perdendo o pleito para o trabalhista Clemente Attlee. O que fez Churchill? Xingou Attlee? Não. Digeriu a derrota e recolheu-se. O resto da história todos sabem, Churchill concluiu a sua obra (Memórias da 2ª, Guerra Mundial), o que lhe rendeu o Nobel em 1953. Concluindo, com a sua derrota, Churchill também saiu vencedor. Tanto que, em 1951, já com 76 anos, retomou ao cargo de primeiro-ministro. É assim que as coisas funcionam na política.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 30 e 31 de janeiro de 2011, Caderno A, p. 7.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Maysa - Viver, sofrer e amar demais

Grandes personalidades

Maysa
Viver, sofrer e amar demais
Escrito por Bruno Hoffmann

Ela abandonou o lar – num tempo em que isso era um escândalo – para seguir o sonho de ser cantora. Tornou-se dona de um dos repertórios mais melancólicos da música brasileira, interpretado com uma voz grave que virou sinônimo de dor de cotovelo. “Minhas músicas refletiram meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre.”


Catedral da Sé, em São Paulo, estava cheia de pompa naquela tarde de janeiro de 1955. A família Monjardim, uma das mais importantes do Espírito Santo, dava a mão de uma jovem de 17 anos a André Matarazzo, sobrinho do conde Francesco Matarazzo, um dos homens mais ricos do Brasil. A moça entrou na igreja com um vestido de cetim italiano branco, adornado por pérolas, e foi clicada por ávidos fotógrafos de colunas sociais. Era o enredo de um conto de fadas para boa parte das moças da época. Porém, mais tarde, todos descobririam que Maysa Figueira Monjardim era diferente. Logo depois romperia o casamento, se lançaria como uma das cantoras mais singulares do Brasil, encantaria multidões e seria vítima de desamores e angústias sem fim. A mulher dos enormes e profundos olhos verdes seguiria sua trajetória, como diz a música de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, famosa em sua voz, para “viver, sofrer e amar demais”.

Mayza e André Matarazzo

Nascida em berço de ouro, desde cedo Maysa surpreendia quem se acercava, por seu jeito sincero e corajoso. Na adolescência, era arteira e namoradeira, mas também apresentava tendências à depressão. Nessa época, já tirava algumas notas ao piano. A primeira composição, com apenas 12 anos, revelava seu estado de espírito não muito otimista. Era Adeus, que mais tarde gravou em disco. O namoro com André Matarazzo começou quando tinha apenas 15 anos. Ele era bem mais velho – tinha pouco mais do dobro de sua idade. Depois do casamento, a vida do casal começou a ficar cada dia mais atribulada. Ela queria levar à frente a carreira de cantora. Ele não gostava nada da idéia. Até que um produtor a ouviu cantar numa festa caseira e se encantou com sua voz rouca e sedutora. Insistiu para que gravasse um disco. O marido cedeu, mas exigiu que a capa não trouxesse seu sobrenome e nem a foto da cantora. Assim foi, mas o disco logo começou a fazer sucesso e o casamento a ruir, até Maysa ir para o Rio e confidenciar ao pai: “Não volto mais”. Ser dondoca não era seu projeto. Com o André, teve seu único filho, o hoje diretor da Globo Jayme Monjardim.

Nasce a cantora

Jayme Monjardim
No Rio de Janeiro, Maysa passou a apresentar-se em boates, entoando composições próprias. Era raro mulher compor à época. Logo gravaria outros discos, e o sucesso foi aumentando. Entre as canções emblemáticas, Meu Mundo Caiu, Agonia, Tarde TristeFelicidade Infeliz, Pedaços de Saudade, além de uma magistral versão de Ne Me Quitte Pas. Mas ela se incomodava com a marcação cerrada da imprensa. Como constata a biografia Maysa – Numa Só Multidão de Amores, de Lira Neto, não houve um só dia de 1958 em que não saiu nada sobre a cantora em jornais paulistas e cariocas. Além da carreira em boates do Rio, Maysa começou a se apresentar no exterior, a comandar programas de tevê, a participar de filmes como atriz. Tamanha pressão fez com que bebesse cada dia mais. Também costumava tomar remédios para emagrecer, que lhe pioravam o humor. Mais tarde, admitiria que aquela fora uma das fases mais turbulentas de sua vida.


Ronaldo Bôscoli
e Maysa
As músicas eram uma saída para desvelar sua personalidade melancólica. “Minhas composições sempre refletiram meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre”, confessou ela, autora de mais de 50 canções. Para Manuel Bandeira, seus grandes olhos verdes eram “dois oceanos não pacíficos”. Os relacionamentos amorosos tinham a mesma intensidade da carreira de Maysa. Uma de suas grandes paixões foi o então jornalista Ronaldo Bôscoli, que conheceu em 1961. Até mudou o repertório para gravar um disco só de bossas dele e de Roberto Menescal. Os dois seguiram juntos para uma turnê em Buenos Aires, mesmo com Bôscoli mantendo um relacionamento sério com Nara Leão. O clima foi apaixonado, mas também houve brigas homéricas em restaurantes e hotéis. Na volta, Bôscoli estava decidido a ficar só com Nara. Mas não esperava que Maysa fosse capaz de fazer tudo por amor. Ainda no aeroporto do Galeão, convocou a imprensa e disparou: “Quero anunciar que vou me casar com Ronaldo Bôscoli”. O sujeito não soube o que fazer. Nara, sim, e o relacionamento acabou para sempre. A história de Bôscoli com Maysa, porém, se manteria, entre indas e vindas, durante mais alguns anos, mesmo após ela se casar com o espanhol Miguel Azanza. Quando descobriu que o jornalista compositor iria se casar com Elis Regina, Maysa encontrou a cantora num bar e esbravejou: “Gauchinha, você não canta porra nenhuma”, e quase acertou-a com uma garrafa de uísque. Mais tarde, afirmou: “A Elis é a melhor cantora do Brasil”.

“Sou uma mulher só”

Já saturada de apresentações e sentindo que o momento era de músicas diferentes, Maysa decidiu passar uma temporada na Espanha. Voltou em 1969, quando fez um antológico show no Canecão. O público exigiu que ela retornasse oito vezes ao palco. A revista Visão escreveu, na semana seguinte: “Quando sua voz quente, rouca, inapelável se estendeu, abraçando o Canecão inteiro, houve o silêncio. Nem um som, nem o menor ruído, nem o gelo de milhares de copos ousavam sequer tilintar”. Depois que separou-se de Miguel, conheceu o ator Carlos Alberto, com quem se casaria mais uma vez. O casal foi viver em Maricá, cidade em que Maysa ficaria até o fim da vida. O casamento lhe fez beber menos, e sua alegria lhe traria de volta a beleza arrebatadora. Também voltou a gravar discos e a participar de novelas. Mas a relação aos poucos foi se desgastando, até a separação, em 1975. A melancolia e o medo da solidão voltavam a assombrá-la.

Acidente que matou Maysa
Ponte Rio-Niterói

No comecinho de 1977, recebeu a notícia de que seria avó. Encheu-se de alegria pela novidade, mas continuava triste com todas as outras coisas da vida. Para piorar, os remédios que tomava para emagrecer não a deixavam dormir há dias. Entrou em sua Brasília e seguiu do Rio para Maricá. Mas não conseguiu completar a travessia da ponte Rio-Niterói. O acidente, em 22 de janeiro de 1977, abreviava a vida de uma das personalidades mais singulares da música brasileira. No seu diário, uma das últimas anotações foi: “Tenho 40 anos. 20 de carreira. Sou uma mulher só. O que dirá o futuro?”.

SAIBA MAIS

Maysa, de José Roberto Santos Neves (Mauad, 2008). Caixa de DVDs da minissérie Maysa – Quando Fala o Coração (2009), dirigida por Jayme Monjardim.

Republicado do site: http://www.novo.almanaquebrasil.com.br/categoria/ilustres-brasileiros/


Almanaque Brasil
Adendo

Meu Mundo Caiu

Composição: Maysa

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar


Mata Escura (VII)

Crimes que abalaram Sergipe

Mata Escura (VII)
Acrísio Torres

Era noite quando retornou à cadeia o reverendo Aires da Mata. Procurou persuadir Mata Escura a receber os socorros da religião. - Devia confessar-se, insistiu. Mas o condenado persistiu na recusa. Deu a entender, porém, de que talvez o desejasse no outro dia. Retirou-se o velho sacerdote. Fez-se um curto silêncio, que Mata Escura interrompeu dirigindo-se aos guardas. Pedira-lhes charutos. Fumou-os demoradamente. – Preciso dormir – disse o bandido. Atirou o resto do charuto a um canto da cela e deitou-se no duro leito de palha. Logo adormeceu. E, no mais fundo do seu ser, desejou não mais despertar. Tudo caiu no mais completo silêncio. A noite avançava, fria, escura, cheia de expectativas. Um dos guardas também havia adormecido. Eram quatro horas da madrugada quando Mata Escura espertou.
Não pôde mais dormir. Acendeu um charuto e recomeçou a fumar, sentado no velho catre. Havia uma decisão nos seus olhos, que se escoavam através da pequena grade da cela. Nuvens passavam lentamente. Eram seis horas da manhã. Os guardas perceberam a fisionomia mudada do condenado. Aproximaram-se e lhe indagaram se desejava alguma cousa. Talvez se tivesse decidido à confissão. Mata Escura voltou-se para os dois guardas com olhos de contrito. Desprendeu duas longas e meditativas baforadas do charuto. Depois, começou a falar de seus crimes. – Mandem vir um padre – disse. Pouco depois se achava junto ao condenado o reverendo Aires da Mata. Escutou-o em demorada confissão. Terminada a confissão, ministrou-lhe os sacramentos. Ao receber os sacramentos o bandido sorriu ligeiramente.

Não pôde deixar de compreender o contraste entre seus crimes e aquele ato de santificação da alma. Nasceu-lhe a dúvida. Entretanto, depois da confissão e sacramento Mata Escura tornou-se outro. Transformou-se-lhe o espírito. Havia agora uma certa resignação nas suas palavras, nas suas atitudes. Fumava continuamente. No entanto, nada mais disse, senão poucos momentos antes de se encaminhar ao patíbulo. Parecia meditar acerca de seus crimes. Um dos guardas perguntou ao condenado se queria alguma cousa para comer. Mata Escura respondeu sem olhar o vigia, como se não desejasse interromper os seus pensamentos. – Quero, para me sentir mais forte. O famoso bandido tinha na mente a horrível visão do patíbulo. Comeu pouco. Todavia, bebeu diversos copos de vinho e voltou a fumar.

Deixava-se dominar mais e mais pelas suas reflexões. Não tinha mais dúvida do fim próximo. Talvez pensasse em transformar as horas que lhe restavam em advertências aos que sonhassem seguir os seus passos. Pouco depois, a pedido do condenado, retornava a sua cela o reverendo Aires da Mata. Tivera a lembrança de escrever à mãe, em Capela. Pedira ao reverendo a cópia de uma carta. O velho sacerdote indagou à autoridade policial se isso era permitido. Não havia impedimento em lei. E, deste modo, ouviu do condenado em que sentido queria que escrevesse. Preparada a cópia, foi lida pelo reverendo, que logo depois se retirou. Mata Escura pediu ao cabo do destacamento que a reproduzisse, pois não sabia ler nem escrever. Enquanto o cabo reproduzia a carta ficou o bandido a refletir nos seus termos.

Escrevia à mãe da cela aonde o conduziram os seus crimes. – Os meus numerosos crimes, pensava amargamente. Na minuta o reverendo não se limitara ao desejo do condenado. Este o compreendera. Havia sido levado ao crime pela má educação dada pelos pais, principalmente pela mãe. O seu triste destino era um exemplo a ela para melhor saber educar os outros filhos. Tinha o pensamento no futuro dos irmãos. Não podia conceber pudessem eles palmilhar como ele a senda do crime. Lembrara também haver sido conduzido ao crime pelo patronato de ricos senhores. Servira-lhes de instrumento para assassinar. E advertia os irmãos a que não se deixassem enganar por esses desalmados senhores.

(*) - Do livro Sergipe/Crimes Políticos I, Cenas da vida sergipana 2, autoria de Acrísio Torres, Thesaurus Editora, prefácio do jornalista Orlando Dantas, páginas 86 e 87.

- Nova postagem de cenas da vida sergipana no dia 1º de março de 2011. Vai concluir a saga do criminoso Mata Escura, ainda do tempo do império, a caminho do patíbulo, onde paga, enforcado, pelos crimes cometidos, tudo de acordo com o autor e obra acima.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Banho de Civilização

Artigo pessoal

Banho de Civilização
Clóvis Barbosa
É comum ouvir das pessoas que viajam para a Europa que vão tomar um banho de civilização. Sempre achei a frase pernóstica ou até mesmo típica das pessoas colonizadas. Quem sabe, daquelas que gostam de menosprezar as nossas raízes, a nossa cultura, até as nossas heranças étnicas. Enaltecem, no entanto, tudo que existe fora do nosso País, desde a culinária, passando pela organização das cidades, até o compromisso com a sua história e suas origens. Lembro-me de um passado recente. Eu era presidente da OAB-SE quando anunciou-se a venda de um casarão localizado na Avenida Barão de Maruim, esquina com a rua Itabaiana. Estilo antigo, era um dos poucos imóveis que ostentava um passado que merecia ser preservado. Nele, residiu, quando vivo, o médico Augusto Leite, um dos mais respeitados cirurgiões de Sergipe. Apesar da oposição ferrenha das entidades representativas da sociedade civil, que fez inúmeros atos na porta da residência, tentando evitar a sua venda, a família do médico não se sensibilizou para o crime que se estava cometendo contra Aracaju. A Caixa Econômica Federal comprou o imóvel e ali construiu, em seu lugar, um autêntico monstrengo arquitetônico, onde hoje funciona uma de suas agências. Por isso, sempre olhei com menosprezo o teor dessa afirmação. Eles não fazem nada para preservar as nossas origens, a nossa cultura, a nossa cidadania, ao contrário, sempre agindo para inviabilizar as mudanças e os caminhos que levam à transformação. Não seria melhor que eles assimilassem o que tem de bom e melhor na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá e lutassem para ser implantados em nosso país?
  
Le-Procope.jpg
Le Procope, o mais antigo café de Paris

Pois bem, vim tomar esse “banho de civilização” numa fase crítica da economia européia, onde na Espanha e Portugal os salários estão sendo reduzidos, na Inglaterra os servidores públicos demitidos e o desemprego atingindo índices preocupantes. Fui a Madrid, Paris, Barcelona e hoje estou em Lisboa testemunhando as eleições presidenciais. Em Paris, vi a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, o antigo Hotel Ritz, a Champs-Elysées, o museu do Louvre, de Versalhes, a Igreja de Notre Dame e outros pontos turísticos da bela Paris e pronto. Não estava muito interessado. O meu tesão estava voltado para um local parisiense: Montparnasse. Neste local, a década de 1920 foi efervescente. Pelas suas ruas, residências, cafés, bares, restaurantes, desfilaram grandes pintores, escritores, revolucionários, escultores, poetas, enfim, artistas de vários matizes, vagabundos e a boemia parisiense. Queria sentir o cheiro de Kiki de Montparnasse, a grande musa, o odor alcoólico e o extraordinário humor de Ernest Hemingway (você não dá para andar com Ernest!), a dramaticidade de Cocteau, o existencialismo de Sartre e Simone de Beauvoir, os narizes empinados de Scott e Zelda Fitzgerald, o narcisismo de Ezra Pound, a pantera na coleira de outra pantera, Josephine Baker, com seus seios à mostra, o talento para ganhar dinheiro de Coco Chanel, a beleza de Jeanne Hébuterne, o último grande amor de Modigliani, as brincadeiras de Francis Picabia e Tristan Tzara, a cumplicidade entre Gertrude Stein e Alice Toklas, a paixão pelas “pequenas mulheres” francesas de E. E. Cummings e John dos Passos, a chatice de James Joyce e as taras de Salvador Dali e Pablo Picasso. Era a Paris dos anos doidos.


La Coupole em 1927

Para começar, hospedei-me num hotel situado no bairro chamado Alésia, com estações do metrô próximas ao complexo Montparnasse, que envolvia os seguintes locais: Falguiére, Pasteur, St. Placide, Denfert Rochereau, St. Jacques, Mouton Duvernet, Raspail, Gaité, Edgar Quinet, Vivan e o St-Germain-Des-Prés. Deixei o metrô e fui caminhando, como diria Chico Buarque, pela Avenue Maine e cheguei em Gaité. Pronto, estava no complexo Montparnasse. Entrei no La Coupole. Claro, não perguntei mas deu vontade: quais eram as mesas que Jean Paul Sartre e Josephine Baker sentaram? Apesar de uma reforma ocorrida em 1980, os assentos de veludos da década de 20 permaneciam no local. Fui no La Closerie de Lilas. Lá foi onde Hemingway escreveu grande parte do livro “O Sol também se Levanta” e onde o livro auto-biográfico de kiki de Montparnasse, com o seu prefácio foi lançado, onde a sua compra dava direito a receber um beijo da autora, o que transformou Montparnasse numa loucura, com gente por todos os lados. Lá também era freqüentado por Lenin, Trotski e Scott Fitzgerald. Segundo pude constatar, boa parte da decoração original encontra-se presente. Fui no St-Germain-Des-Prés e lá visitei três lugares: a escultura de Picasso homenageando o poeta Guillaume Apollinaire, perto do Café de Flore, local preferido de Sartre e Beauvoir, o Les Deux Magots, também freqüentado por artistas da época, onde tomei um cafezinho. E o Le Procope, um café, dizem, fundado em 1686 e onde o filósofo Voltaire tomava 40 xícaras de café com chocolate por dia. Nesses três cafés fiz questão de adentrar e sentir a sua energia que me levava ao período de 1920 a 1930.
La Closerie des Lilas
Interior de La Closerie de Lilas
Pronto! Faz parte da minha razão de vida escrever um romance envolvendo ficção e realidade, escrevendo um livro sobre este período maluco da história parisiense. Vou a Paris de 1920. Vou mostrar a Hemingway que eu dou para andar com ele. Vou ter, evidentemente, que me conter no álcool. Bebo muito pouco. Uma garrafa de vinho, no máximo. Agora mesmo estou escrevendo no hall do hotel tomando um vina salceda, rioja crianza 2006, de 16 euros. Vou convidar para ir comigo Carlos Alberto Menezes, professor e criminalista, Zoroastro, o Zorô, jornalista, João Ubaldo Ribeiro, escritor, Ângêla e seu marido comandante da ex-Varig, o sobrinho da cantora Maiza Matarazzo, o escritor português Saramago (sim, eu sei que ele morreu em 2010), um amigo de Zorô, herdeiro de vários imóveis do Rio de Janeiro, o poeta Araripe Coutinho, com a sua extraordinária língua "plesa", Luiz Eduardo Oliva, da Segrase, e o professor Cabral do Departamento de Educação Física da Ufs. Vamos sair do Rio de Janeiro de avião e vamos desembarcar na estação ferroviária de Lion (?). A aventura vai começar justamente nessa estação. Vamos de metrô para a Gare Montparnasse. Lá, as cortinas se abrirão e um novo cenário surgirá. A primeira guerra mundial (1914-1918) e a revolução bolchevista (1917), serão acontecimentos recentes. Vamos chegar exatamente no dia em que Kiki de Montparnasse estará lançando o seu livro autobiográfico com prefácio de Ernest Hemingway. A compra do livro faz com que o comprador receba um beijo de Kiki. O La Closerrie de Lilas está cheio de gente, todos querendo receber um beijo da musa de Salvador Dali, Modigliani e Picasso. Eu e meus amigos, estaremos recebendo um banho de cultura.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 23 e 24 de janeiro de 2011, Caderno A, p. 7.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Churchill, Visionário. Estadista. Historiador

O que estou lendo?

Churchill
Visionário. Estadista. Historiador.
Autor John Lukacs
Jorge Zahar Editor

Contra Capa

Em 1940, Winston Churchill foi o homem que não perdeu a Segunda Guerra. Ainda hoje, mais de quarenta anos após sua morte, Churchill ocupa um lugar de destaque no cenário político mundial. Este livro não é uma biografia tradicional. Com a autoridade de quem dedicou a vida a estudar a personalidade e a condição de Churchill como estadista, John Lukacs lança nova luz sobre aspectos pouco conhecidos ou pouco explorados da vida e da carreira política de Churchill, sugerindo ainda tópicos para futuras pesquisas.

A relação de Churchill com Stalin, Roosevelt e Eisenhower, por exemplo; ou o como e o quanto sua natureza de historiador fez dele um estadista melhor. Lukacs investiga também a impressionante capacidade visionária de Churchill - que, vista em retrospecto, nos mostra o quanto ele anteviu o advento da Segunda Guerra e da Guerra Fria - e sua posição a respeito da integração da Europa. E nao se omite a respeito de fracassos e críticas.

O último capítulo é uma forte e comovente evocação dos três dias que o autor passou em Londres para o funeral de Churchill, em 1965. Pelo prisma de diversos personagens anônimos ou conhecidos, que assim como ele participaram daquele momento histórico, Lukacs oferece um último tributo ao lugar de Churchill na história. Lúcido e instigante, este livro é uma admirável mistura de talento literário com inteligência critica, inabalável apreço pelo que Churchill fez para deter o mal de Hitler e compreensão perspicaz de sua personalidade. Uma leitura indispensável.

O Autor
John Lukacs


John Lukacs lecionou história no Chestnut Hill College, na Filadélfia, até aposentar-se e é professor visitante de diversas universidades. É autor de mais de vinte livros, com destaque para Cinco dias em Londres e O Duelo: Churchill x Hitler, ambos publicados com sucesso por esta editora. Recebeu vários prêmios e distinções acadêmicas

Mata Escura (VI)

Crimes que abalaram Sergipe

Mata Escura (VI)
Acrísio Torres

A tarde morria pouco a pouco. Trevas iam envolvendo a natureza, e tudo acabou mergulhado na mais negra noite. A escolta decidiu acampar até o aparecimento da lua. Eram dez horas da noite. Como um disco enorme e belo a lua apareceu longe, fazendo destacar o contorno das coisas. O estreito caminho se desenhou alvo, tortuoso. Novamente parte a escolta, seguindo o passo tardo e cansado de Mata Escura. Um vento frio fustigava a face do réu e dos soldados. Havia expectativa nos espíritos à lembrança dos fatos da noite anterior. Chegou às duas horas da madrugada ao engenho Dira, onde foi forçada a permanecer até manhã. Disse Mata Escura não poder mais suportar a caminhada. Pediu uma montaria. No engenho Dira alugou-se um cavalo para Mata Escura. Não foi fácil conseguir do grave senhor de engenho o animal.

A revolta contra o criminoso parecia crescer à medida que se aproximava de Itabaiana. Eram cinco horas da tarde quando a escolta e o réu chegaram a Itabaiana. Eram seguidos de uma multidão que acorreu para ver o famoso bandido. Tinha um ar de agressividade. – É este que vai morrer? Indagou uma velha. Havia um tom de impunidade na indagação da velha. Depois, levantando o bastão em que se apoiava, lançou ao réu a sua maldição. O réu voltou-se indiferente e disse: - Sou eu mesmo! E, encarando bem a velha, acrescentou com desprezo: - Venha ver-me na forca. Há-de gostar. Depois de pronunciar essas palavras, Mata Escura passeou um olhar silencioso e também de desprezo pela multidão. Nada disse. No íntimo, culpava a própria sociedade pelos crimes que cometera.


Victor Hugo
Talvez Victor Hugo tenha razão ao afirmar que “a sociedade, eis a assassina, os vícios, eis os ladrões”. É necessário prevenir a criminalidade. Nada parece mais eficaz para essa prevenção que a educação do homem, no sentido de torná-lo um ser social melhor. Na cadeia de Itabaiana, Mata Escura foi recolhido a uma cela pequena e sórdida. Sobre uma mesa foi posta uma imagem de Cristo crucificado. Duas velas foram acesas. Mata Escura sentou-se no duro catre. Tinha o espírito mergulhado em reflexões amargas. Nesse momento, dele se aproximou um velho vigário, que lhe devia prestar as consolações espirituais. O condenado levantou os olhos para o velho vigário. Recusou os seus serviços, que lhe pareciam inúteis. Estava cansado, disse, e pediu que deixasse para outro dia os consolos espirituais.

– Estou cansado, reverendo. Muito cansado. Dizendo isso, o criminoso se voltou para o carcereiro e pediu charutos. Acendendo um, deixou escapar longas baforadas, impassível à presença do velho vigário. Seus olhos se fixaram no crucificado. Na manhã do dia seguinte entraram na cela do bandido o chefe da escolta e a autoridade judiciária. O chefe da escolta ordenou ao réu que se levantasse. Mata Escura ouviu sem a menor inquietação a leitura da sentença fatal. Lida a sentença, todos se retiraram da pequena cela. Mata Escura continuou fumando o seu charuto. Tinha o pensamento mergulhado em fundas e consoladoras meditações.

(*) - Do livro Sergipe/Crimes Políticos I, Cenas da vida sergipana 2, autoria de Acrísio Torres, Thesaurus Editora, prefácio do jornalista Orlando Dantas, páginas 86 e 87.

- Nova postagem de cenas da vida sergipana no dia 22 de fevereiro de 2011. Vai continuar abordando a saga do criminoso Mata Escura, ainda do tempo do império, a caminho do patíbulo, onde iria pagar, enforcado, pelos crimes cometidos, tudo de acordo com o autor e obra acima referida.
 
Adendo 

Muitos leitores do blog têm questionado sobre a aplicação da pena de morte ao criminoso Mata Escura. Observem que estamos nos referindo ao período do império, onde o Brasil era colônia de Portugal. À época, a nossa legislação era regida pelas chamadas ordenações reais, ou sejam, as afonsinas, as manuelinas e finalmente, as filipinas. Previa-se a pena de morte. Para uma melhor compreensão do assunto, segue, abaixo, matéria esclarecedora sobre o assunto:

HISTÓRIA DO DIREITO


Ordenações Filipinas
considerável influência no direito brasileiro

O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do Brasil-Colônia foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e, por último, fruto da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, as Ordenações Filipinas, que surgiram como resultado do domínio castelhano. Ficaram prontas ainda durante o reinado de Filipe I, em 1595, mas entraram efetivamente em vigor em 1603, no período de governo de Filipe II. Não houve inovação legislativa por ocasião da promulgação da Ordenação Filipina, apenas a consolidação das leis então em vigor. O foco eram casos concretos reduzidos a escrito, isto é, essa legislação estava muito distante do tipo de consolidação que se deu na França no início do século XIX, como conseqüência da Revolução Francesa, na qual se baseiam os nossos atuais códigos, que buscam sanar as contradições, repetições e lacunas - as consolidações da época mal tinham uma parte geral, com regras abstratas. Além disso, como não era intenção de Filipe I e Filipe II, castelhanos que circunstancialmente governavam Portugal, impor novas leis a esse povo, aproveitaram-se das normas já existentes, optando por não corrigir as contradições e lacunas anteriormente existentes. A norma editada seguia a estrutura dos Decretais de Gregório IX, dividindo-se em cinco livros que continham títulos e parágrafos: (I) Direito Administrativo e Organização Judiciária; (II) Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; (III) Processo Civil; (IV) Direito Civil e Direito Comercial; (V) Direito Penal e Processo Penal. Destaca-se o livro II, que demonstra a principal característica dos direitos do Antigo Regime, ou seja, a existência de normas especiais para cada uma das castas que compunham a sociedade daquele período.

Como os costumes que imperavam à época eram muito variados e locais, a regra que vigorava nos julgamentos era, sempre que possível, seguir a jurisprudência do mais alto tribunal do Reino - a Casa de Suplicação. Construía-se, assim, uma forma de buscar uniformidade nas decisões e, em última instância, fortalecer o poder central em detrimento dos vários poderes locais. Nos casos a serem julgados e que não estivessem previstos nas Ordenações Filipinas, casos omissos da legislação nacional, aplicavam-se subsidiariamente (i) o direito romano (Código de Justiniano), a partir das glosas (interpretações) de Acúrsio e das opiniões de Bártolo ou (ii) o direito canônico. Este último invocado quando estivesse em voga o pecado, como nos casos de crimes de heresia ou sexuais. Portanto, para julgar os casos que a eles chegassem, os tribunais deveriam ter à sua disposição o texto das Ordenações, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano (glosas de Acúrsio) e os textos de Bártolo. Na falta de qualquer solução a partir dessas fontes, e não fosse o caso passível de ser avaliado pelos tribunais eclesiásticos, deveria ser remetido ao rei. A decisão proferida pelo rei passava a valer como lei para outros feitos semelhantes. As penas previstas nas Ordenações Filipinas eram consideradas severas e bastante variadas, destacando-se o perdimento e o confisco de bens, o desterro, o banimento, os açoites, morte atroz (esquartejamento) e morte natural (forca). Mas, como típica sociedade estamental da época, não poderiam ser submetidos às penas infamantes ou vis os que gozassem de privilégios, como os fidalgos, os cavaleiros, os doutores em cânones ou leis, os médicos, os juízes e os vereadores.


Há de salientar que a aplicação do direito no vasto espaço territorial do Brasil-Colônia não fazia parte das preocupações portuguesas, já que o objetivo da Metrópole era principalmente assegurar o pagamento dos impostos e tributos aduaneiros, mas mesmo assim as Ordenações Filipinas foram a base do direito no período colonial e também durante a época do império no Brasil. Foi a partir da nossa Independência, em 1822, que os textos das Ordenações Filipinas foram sendo paulatinamente revogados, mas substituídos por textos que, de certa forma, mantinham suas influências. Primeiro surgiu o Código Criminal do Império de 1830, que substituiu o Livro V das Ordenações; em seguida foi promulgado, em 1832, o Código de Processo Criminal, que reformou o processo e a magistratura; em 1850 surgiram o Regulamento 737 (processo civil) e o Código Comercial. Os Livros I e II perderam a razão de existir a partir das Revoluções do Porto em 1820 e da Proclamação da Independência brasileira. O livro que ficou mais tempo em voga foi o IV, vigorando durante toda a época do Brasil Império e parte do período republicano, com profundas influências no nosso atual sistema jurídico. As Ordenações, portanto, tiveram aplicabilidade no Brasil por longo período e impuseram aos brasileiros enorme tradição jurídica, sendo que as normas relativas ao direito civil só foram definitivamente revogadas com o advento do Código Civil de 1916. O estudo do texto das Ordenações Filipinas é salutar para a compreensão de boa parte dos nossos atuais institutos jurídicos.


Jornal Carta Forense, segunda-feira, 4 de setembro de 2006, in http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=484.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Luiz Fux - Novo Ministro do STF

Notícias Jurídicas

Fux por Fux
A biografia do novo ministro do STF, contada por ele

O depoimento autobiográfico, a seguir, foi dado pelo ministro Luiz Fux ao portal de internet da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para o projeto "Faculdade de Direito da UERJ — 70 Anos de História e Memória". A presidente Dilma Rousseff escolheu o ministro para ocupar a vaga de Eros Grau no Supremo Tribunal Federal. A indicação foi publicada na Seção 1 do Diário Oficial da União (DOU) nesta quarta-feira (2/2). Ele será sabatinado pelo Senado Federal.

"Meu nome completo é Luiz Fux. Nasci no dia 26 de abril de 1953, no Rio de Janeiro. Sou carioca da gema, como se dizia antigamente. Minha mãe é Lucy Fux. Meu pai chama-se Mendel Wolf Fux, imigrante romeno, brasileiro naturalizado. Meu pai é advogado. Ele era contador e, já depois da família crescida - eu tenho mais duas irmãs - resolveu fazer o curso de Direito, tendo o concluído com uma certa idade. Atua na área de contencioso Cível, normalmente em causas adstritas às justiças locais. Meu pai nunca advogou lá no Tribunal Superior. A minha família é de exilados de guerra, da perseguição nazista. Tenho origem judaica. Meu avô e a minha avó se reencontraram no Brasil, após três anos separados. A minha avó conseguiu vir primeiro, exilada, depois é que veio o meu avô. Chegando aqui, meu avô exerceu uma função bastante humilde. Ele vendia roupas para pessoas de classe baixa, nas populações mais carentes.

Meu avós morreram com uns 92 anos. Eles foram muito gratos ao fato de terem sido bem acolhidos no Brasil. Tanto que o meu avô também assumiu uma entidade que era casa de acolhida de idosos, pessoas mais velhas desvalidas. Já minha avó era presidente de uma entidade que acolhia crianças abandonadas, o Lar das Crianças Israelitas. Certa vez, um episódio bastante significativo ocorreu... Uma colega minha de sala do colégio, falou assim: “você sabe que nós somos parentes?”. Respondi que não sabia e ela continuou: “eu sou sua aparentada porque fui criada pela sua avó. Eu fui criada no Lar das Crianças”. Achei aquilo uma coisa lindíssima. Um momento espetacular de minha vida. Fiz uma grande amizade e a levei para rever minha avó. Ela já era mãe de família e tinha muita saudade de minha avó. Estes meus avós se chamavam Bertha Fux e Moisés Fux. Por parte de mãe, talvez, se alguém acredita, vamos dizer assim, nessa absorção por osmose hereditária, o pai de minha mãe era um homem que exercia função de juiz arbitral na coletividade. Era um homem muito culto, dedicado às questões da justiça. Não tinha formação jurídica, mas era considerado justo. O nome dele era Luiz Luchnisky. Era um homem muito procurado, pela sua inteligência e sensibilidade. Intermediava vários conflitos entre pessoas influentes na sociedade. Era um homem do qual até hoje ouço falar muito bem. Não o conheci, mas deixou-me um nome magnífico, ligado à justiça, caridade e sensibilidade.

Nós nascemos na comunidade judaica, ali no Andaraí, pertinho da UERJ. Eu tive uma infância com as limitações naturais de filhos de pessoas que não tinham uma colocação, digamos assim, expressiva na sociedade. Meu pai era técnico em contabilidade e lutava com muita dificuldade para manter os filhos. Minha mãe era do lar, como eram as mulheres de antigamente. A minha primeira grande chance foi quando eu passei para o Colégio Pedro II. Era um colégio público que tinha uma qualificação de ensino muito destacada. O Colégio Pedro II deu-me uma boa base para que eu pudesse, então, depois, fazer o vestibular para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que sempre foi rigorosíssimo. Claro, hoje, o índice de demanda no vestibular da UERJ aumentou muito. Tanto mais que o Direito se transformou em carreira com muitas opções. A formação enciclopédica que o curso de Direito dá, permite ao alunado optar por várias profissões. Enfim, o conhecimento é multidisciplinar. No Colégio Pedro II, nós tínhamos um diretor muito rígido, o professor Lacerda. Ele tinha uma característica que eu achava admirável: instigava no aluno o amor à bandeira, o amor ao Brasil. Os padrões morais e éticos eram muito exigentes. Ainda naquela fase inicial da adolescência, quando o jovem não tem muita noção dos critérios que deve seguir, nós não iniciávamos as aulas sem cantar o Hino Nacional. Havia ali uma catequese positiva no sentido de amor à coisa pública. Creio que aquilo ali acabou influindo nesse meu desejo de seguir a carreira pública.

No Pedro II fiz o ginásio e o clássico. O primário foi no Colégio Liessin. Era na Visconde de Ouro Preto. Eu tenho impressão que a formação escolar me conduziu para as Ciências Sociais. Talvez, aquelas matérias do Clássico acabaram gerando em mim um pendor por uma leitura mais compatível com a ciência jurídica. Por outro lado, e isso é inegável que acaba exercendo influência, comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos de idade. Eu era boy do escritório do meu pai. Acompanhei meu pai sair da atividade da contadoria para a advocacia. Ele me levava para freqüentar o fórum desde 14 anos de idade. Eu admirava os juízes, eu assistia aos concursos. Todos os escreventes me conheciam. Ele me obrigava a ir de terno e gravata com 14 anos. Fui admirando aquela liturgia, aquela solenidade que era característica do mundo jurídico. Meu pai sempre me deu uma noção muito exacerbada da ética. E, naquela oportunidade, o meio jurídico era um meio em que a moralidade, a ética, eram, pode-se dizer, os dois cânones maiores da profissão. Aquilo absolutamente me encantava. Depois de uma certa idade minha mãe decidiu seguir a carreira médica. Tenho muita admiração pelos médicos. São muito serenos, homens que se dedicam à vida humana. Eu sou espiritualista. Dou mais valor a essas questões sensíveis do ser humano. Mesmo no exercício da minha profissão. O ser é mais importante que o ter. Sou mais um homem que vive os grandes problemas existenciais do ser humano. Gosto de pesquisar isso, de me dedicar a isso, gosto de ler sobre. Tenho verdadeira paixão pela leitura das vicissitudes da alma humana.

A escolha da UERJ...

Dois fatores levaram a essa escolha. Primeiro porque a UERJ era universidade pública. Depois, a UERJ também era uma universidade, vamos dizer assim, de ponta. Tinha um grau de exigência muito bom. Era a melhor universidade do Brasil. Eu tenho certeza que a UERJ, na época em que eu fiz o vestibular, tinha um grau de excelência superior a várias universidades que, hoje, têm nível A. Naqueles tempos, para não cometer nenhuma injustiça, a única que se equiparava à UERJ era a USP. Eu entrei em 72 e me formei em 76. Foi a formação do Pedro II, o Clássico do Pedro II, que me possibilitou entrar na UERJ. Não tenho dúvida. Lembro do primeiro dia de aula. Eu iniciei o meu curso no Catete. Foi a primeira turma que se formou na UERJ do Maracanã. Eram turmas imensas, 150 alunos de manhã e 150 alunos à noite. Eu estudava à noite, porque trabalhava o dia inteiro. Era até o ‘Benjamin’, o mais novo do turno da noite. Só estudava à noite o pessoal mais velho, que tinha que trabalhar o dia inteiro. Não era comum um jovem estudar à noite. Eu tinha um bom desempenho e isso chamava muito a atenção.

Os meus amigos tinham 60 anos. Eu, com 23. Um ou outro era da minha geração. Nós tínhamos um grupinho pequeno. Sempre fui muito querido pelos amigos. Até hoje nós que nos formamos em 1976 e já temos 30 anos de formados, nos reunimos. Conseguia trabalhar e estudar. O meu pai fazia questão que, no meio do trabalho, eu tirasse algumas horas para estudar. Ele, às vezes, me poupava de ter que fazer alguma coisa para eu poder estudar. Ao mesmo tempo, me impunha responsabilidades até bem além de minha idade, para que pudesse, desde cedo, adquirir maturidade suficiente, bem como ciência dos ônus sociais que um homem tem que assumir, em razão do seu trabalho, de sua vida pessoal. Tinha “trote”, mas era um “trote” saudável. Por exemplo, o meu “trote” foi o seguinte: nós tivemos uma aula com um aluno que se fez passar por professor. Aí, todo mundo quieto, prestando atenção, ele falando um monte de besteira, ninguém entendendo nada. Até que chegou um momento, porque a turma era de pessoas mais velhas, que começaram a comentar: “Puxa, mas esse professor não está dizendo nada com nada. Acho que ele está achando graça da nossa cara porque não é possível que o que esteja dizendo tenha fundamento”. Até que, em um dado momento, se descortinou a brincadeira. Mesmo grandes, as turmas eram muito unidas, em todos os sentidos. Nós participamos de blocos, blocos de rua mesmo. Uma vez nós fomos do Catete até o Bola Preta, todo mundo com gravata na cabeça. Tínhamos um bloco da faculdade. Aquilo era saudável. Tínhamos até uma música própria. Havia uma cantoria que fazia chacota com o Sr. Magalhães, que era um secretário duríssimo. Dizia mais ou menos assim: “não há quem agüente nas noites e nas manhãs esse tal de Magalhães”. Por aí ia embora... O chope era em um bar da esquina, que tinha um nome característico pelo fato de que, por ser muito estreito, nós ficávamos metade dentro do bar, metade fora. A gente chamava esse bar de “Meio Corpo Fora”... “vamos lá no Meio de Fora”, iam os professores também.

Os professores...

Marcou muitíssimo a primeira aula que nós tivemos com o professor Simão Benjó. Era queridíssimo, foi nosso paraninfo. Ele, além de ser professor, se propunha a ser amigo dos alunos. Nos deu uma belíssima base de Direito Civil e, além disso, aos fins de semana, nos levava para sua casa e oferecia “festas”, verdadeiros encontros culturais. Ele promovia um trabalho muito interessante que chamava de Maratona de Direito Civil. Premiava os alunos através de um concurso, que era bem difícil. O aluno, no final do curso, tinha que fazer uma prova sobre toda a matéria. Os finalistas disputavam a final em prova dificílima que tinha como prêmio uma importância que seria, hoje, o equivalente, talvez, a R$1.000,00. Quando ganhei o prêmio Maratona do Direito Civil gastei tudo em chope com os colegas. A Maratona era para estimular o estudo, a competitividade. O professor Benjó sempre nos passava a idéia de que era muito útil fazer um concurso público no início de carreira. Porque as instituições estavam necessitando de alunos novos, pessoas jovens, sem vícios, que pudessem dar de si para o Estado. Ao mesmo tempo, era a chance de iniciar uma carreira promissora, muito difícil de conseguir com pouco tempo de formado.

E ele tinha toda razão porque o que se vê, hoje, é que o jovem quando sai da faculdade fica submetido a um regime de estagiário, de submissão ao escritório onde trabalha até que ele consiga se firmar. É mais difícil. Sempre estagiei em órgãos públicos e graciosamente. Estagiei na Defensoria Pública e no Ministério Público. No último ano de faculdade, mediante concurso público, exerci uma função remunerada e que foi meu primeiro passo profissional, na Shell do Brasil. A Shell era uma grande companhia, o concurso era muito difícil e só tinha duas vagas. Graças à minha formação da UERJ consegui lá ingressar. Nós ainda vivíamos uma época de repressão bastante grande. Recordo-me que o professor Heleno Fragoso, quando dava aulas, iniciava dizendo o seguinte: “Boa noite, pessoal do DOPS. Boa noite, pessoal do SNI. Vocês estão trabalhando, mas eu também estou. Vamos começar a aula”. Então ele dava aquela noção de independência. Noção que acabou me contaminando, porque ali participávamos de debates políticos, tinha coragem suficiente, tinha problemas decorrentes. Lembro-me que quando o centro acadêmico da UERJ teve dificuldades em conseguir um telefone, por problemas políticos, intercedi e consegui o primeiro telefone do centro. O Centro Acadêmico estava aberto, mas com atuação bastante mitigada. Só voltou a ter uma atuação mais expressiva quando comecei a dar aula, já em 1977, 1978, foi quando o Centro começou a tomar corpo de novo.

As apostilas da UERJ...

Lembro-me que nosso patrono, um grande professor que, por admiração – o grande elemento do relacionamento humano – fez-me seguir a carreira do magistério, o professor Barbosa Moreira, sempre nos sinalizava para o fato de que devíamos ler os livros, que as apostilas não eram revistas etc. Mas, na UERJ havia uns dois grupos de apostilas disputadérrimos. Eram as apostilas do professor Barbosa Moreira e as apostilas do professor Ebert Chamoun, que eram utilizadas em concursos. Os cursos divulgavam essas apostilas. Eu, no concurso para a Magistratura, ainda tinha essas apostilas. Estudei para uma banca que era composta pelo Barbosa Moreira e pelo Chamoun. Então, queria saber qual era a linguagem deles, muito embora tivesse freqüentado as aulas do professor Barbosa Moreira, que, aliás, fora meu patrono. Também trabalhei com o professor Barbosa Moreira na Procuradoria Geral do Estado, fui estagiário dele lá. A verdade é que muitos tiveram a primeira formação científica na matéria à luz dessas apostilas. Eles tinham estilos diferentes. O professor Barbosa Moreira, além de profundo, é muito didático. O professor Chamoun era um professor que tinha uma exposição muito lógica. Eu, para traçar um perfil de metodologia de aula, me vali muito do estilo do professor Barbosa Moreira. Sempre fui um professor muito didático, fui muito preocupado em entender a matéria da forma mais simples possível para poder repassar aos alunos. Inclusive, nas palestras, procuro ser muito claro. É mais importante ser claro do que falar difícil. O alunado só entende aquilo que consegue perceber na essência. O professor Barbosa Moreira não lia nada, levava um sumário daquilo que ia falar e dava a aula pelo sumário. E assim também sempre fiz. Faço meu sumário e, dali, desenvolvo todas as idéias. Sempre tendo o Código presente, a fundamentação legal daquilo que vou dizer.

Até mesmo na hora de votar tento ser didático. Nunca li um voto. Não leio os meus votos. Explico qual é a idéia que tenho do caso e, eventualmente, só para fechar o raciocínio, leio a síntese do voto. Essa metodologia de ficar lendo, ninguém presta atenção, ninguém agüenta. A pessoa gosta de saber porquê foi acolhida, porquê foi rejeitada, e da forma mais simples do mundo. Hoje há um movimento muito grande pela simplificação do Direito. O Direito é muito hermético. As pessoas não entendem. É a mesma coisa um médico, se começar a falar de doença com termos médicos, não se entende nada. O que se quer saber é o que se tem. Qual é o problema e qual a solução. Tive uma professora de Direito do Trabalho, professora Alexandrina Fonyat. Ela era muito didática, uma excelente professora. Também havia a professora Dora Martins de Carvalho, de Direito Comercial, mas o meu mestre foi o professor Theophilo Azeredo Santos. Na parte de Direito Civil, mais esporadicamente, também lecionava a professora, Regina Gondin. Metade da turma era mulher, metade homem. E de noite também. As mulheres à noite eram mais velhas. A gente saía muito para desfile de escola de samba, no Mourisco, na Portela. Nós tínhamos um amigo que faleceu, vítima de uma bala perdida. O Salim, que tinha uma casa no Grajaú, onde fazíamos muitas festas e feijoadas. Era famoso “o Arroz do Salim”, aos sábados. Depois de lá, íamos para a escola de samba ou para a boate, New York City, que era na zona sul.

Também tínhamos uma banda.

Tínhamos um conjunto musical, eu tocava guitarra. Tinha um colega meu que cantava, até hoje ele continua... O conjunto se chamava The Five Thunders, os Cinco Trovões. Mesmo como professor, continuei tocando minha guitarra nas festas dos alunos. E o José Márcio do Couto continuou a carreira dele. Quando fiz 40 anos de idade, consegui reunir todo mundo que tocava em nossa época. Fizemos um revival do conjunto e tocamos, cantamos, ensaiamos durante uma semana. Estava todo mundo em forma, deu tudo certo. Foi uma festa bonita em um lugar chamado Un, Deux, Trois, que tinha ali na Bartolomeu Mitre. Dos 18 aos 19 ou 20 anos, cantava em uma boate chamada Don Quixote, que ficava na Bartolomeu Mitre. Na infância aprendi a tocar violão. Abandonei porque aquilo era muito maçante, era mais uma matéria. Comecei a tirar de ouvido. Já juiz, tinha lá na noite uma música... o pessoal me chamava para ir ao palco tocar... Eu ia. Toquei uma vez em um evento enorme quando estava começando a carreira da Daniela Mercury. Lá no Nordeste. Nunca tinha tocado em um lugar com tanta fumaça, super diferente... Tive que começar a podar um pouco isso porque a liturgia do cargo de magistrado exige um certo comedimento. Muito embora isso seja uma coisa popular.

Quando fui nomeado Ministro, alguns jornalistas, não sei movidos por qual sentimento, puseram que o ministro indicado era um faixa preta de Jiu-Jitsu e tocador de guitarra. Como se isso fosse algum demérito. Durante minha juventude, fiz esporte, fui realmente faixa preta de Jiu-Jitsu, conhecido aqui no Rio de Janeiro. Muito embora nunca tenha criado nenhuma confusão, como hoje se vê aí, infelizmente. Na minha época, os lutadores de Jiu-Jitsu, o professor faixa preta, davam o exemplo da retidão, de como devia ser um lutador. Esse foi o exemplo que tive com a família Gracie, com o meu professor, Oswaldo Alves, com Carlson Gracie, que Deus o tenha, morreu agora, tem uma semana que ele faleceu em Chicago. Na nossa geração de Jiu-Jitsu nunca ninguém criou problema nenhum. O professor Celso Albuquerque de Mello não foi meu professor. Mas foi meu diretor na PUC. Fui professor da PUC também. Definia o professor Celso Mello como um homem de uma inteligência notável. Absolutamente despido de toda e qualquer liturgia e de vaidade. Era um homem simples, cultíssimo, queridíssimo pelos alunos, dedicado à atividade acadêmica, que era tudo o que gostava de fazer. Era admirado por todos. Sempre ouvi falar muito bem dele. No Mestrado, nós nos encontramos algumas vezes, em bancas examinadoras.

Minha formatura foi um grande festival, eram 300 formandos. Disputei arduamente e venci o concurso para orador de turma. Confesso sem qualquer pieguice, fui um estudante que lutei com bastante dificuldade. A UERJ era um padrão de referência. E, na época, infelizmente não existe mais, havia uma editora que dava um prêmio, que era o Prêmio Companhia Editora Forense. Formei a minha primeira biblioteca, porque ganhei o Prêmio por ter tirado em primeiro lugar durante os cinco anos de faculdade. Ganhei o que seria hoje R$3.000,00, aproximadamente, em livros. Era coisa demais. Hoje já é mais ou menos. Na minha turma não tinha essa questão de competitividade nociva. Foi uma turma que me apoiou muitíssimo. Eles tinham em mim, porque era um grande boa praça, o primeiro aluno da faculdade e o maior farrista, um amigo admirável. O tom do discurso de formatura foi de gratidão, afetivo. Agradecia muitíssimo o que os professores tinham feito por nós, o que os colegas tinham feito para a nossa formação, falava um pouco da miséria do Brasil, a miséria da fome e a miséria intelectual, dizia das nossas perspectivas em vários campos, no campo da advocacia, do Ministério Público, da Magistratura ou do próprio Magistério, e terminava com uma lição de grande esperança. Tal como sou como pessoa. Sou uma pessoa que tem muita fé, muita esperança, sou muito perseverante, tenho nos meus ideais a minha grande bandeira. Cheguei muito cedo em tudo o que fiz porque nunca perguntei a ninguém qual era a minha hora. Eu sempre fiz a minha hora. Nunca admiti, dentro da minha independência pessoal, talvez por tudo o que eu tenha passado desde 14 anos, que ninguém me dissesse qual era a hora que eu tinha para dar início a minha vida profissional. Já fui até criticado por isso. Porque diziam: “tudo na vida tem antiguidade”. Não é nada disso. O Brasil é um país que dá chance a todo mundo. E quem tem a chance e quem acha que está na sua hora, tem que procurar o seu caminho. A minha família, ela é uma família que me apóia. Então, ela não diz a minha hora. Ela acompanha a minha hora. Essa é a minha filosofia de vida. Então, às vezes, pago um preço caríssimo por isso. Eu me machuco muito, mas não desisto.

O convite para dar aula na UERJ me faz dar um mergulho muito bonito no meu passado. Ele foi formulado pelo professor Oscar Dias Correia, que era diretor da faculdade. Isso foi em 1977. Tinha um ano de formado. Ele disse assim: “Fux, eu queria montar o escritório modelo da UERJ. Então, eu preciso que você comece na prática forense, comece a estudar isso para mim, porque você foi um aluno exemplar e a gente quer começar de uma forma exemplar. O secretário da faculdade, o professor Júlio, que substituiu o Magalhães, ele acha que você é a pessoa indicada”. Se bem que, na faculdade, dava aula desde quando estudante. O professor Benjó, no último período, me incumbiu de ser seu assistente em Direito Civil. Foi a área onde comecei.
Entrei na UERJ em 1972

E nunca mais saí. Nós estamos em 2006, eu nunca saí da UERJ. Nem um segundo. Mesmo agora, em Brasília, compatibilizo a minha carga horária no Mestrado, no Doutorado. Para não sair da UERJ, confesso que já dei aula de tudo. Já dei aula até de Direito Financeiro. Direito Financeiro, Direito Civil, Prática Forense. Só não dei Medicina Legal, que devia até ter dado porque Medicina Legal, aprendi com o professor Nilson do Amaral Sant’Anna. O Nilson foi diretor do Instituto Médico Legal. Foi a pessoa mais querida que a UERJ já teve. Ele dizia para o meu pai o seguinte: “você tem um filho que você divide comigo”. O Nilson dizia o seguinte: “Fux, um menino de 23 anos é um menino. E você é um menino de 23 anos que freqüenta rodas de pessoas muito mais velhas que você, e com muito pouco tempo de idade você goza de muita respeitabilidade e isso vai marcar a sua vida”. E dito e feito. Tudo o que aconteceu na minha vida foi muito cedo. Fui juiz muito novo, o juiz mais novo da época. Hoje não, hoje há juízes mais novos. Passei no concurso da Magistratura com 27 anos, em primeiro lugar. Eu saí no Jornal Nacional, porque era uma coisa importante. Depois, fui o desembargador mais novo. Fui o Juiz de Alçada mais novo. E durante um bom tempo fui o Ministro mais novo do Superior Tribunal de Justiça.

A saída do Catete para o Maracanã foi uma tristeza muito grande. O prédio era histórico. E o prédio era a história da faculdade de Direito. Houve resistência. Nós fomos instados a nos mudar para a UERJ, uma faculdade com uma infra-estrutura muito melhor do que o Catete. No Catete eram carteiras de duas pessoas. Você estudava sentado ao lado de um colega. E só nas provas é que tinha que dividir as salas para todo mundo sentar sozinho. O Sr. Magalhães me chamava de Beckenbauer, porque o Beckenbauer era um meio de campo que distribuía bem a bola na seleção alemã. Ele dizia que eu sentava no meio da sala para distribuir cola para os alunos. Mas voltando, o professor Oscar Dias Correa me chamou e aí nós dividimos o escritório modelo em área Cível, área de Família e área Criminal. Começamos o trabalho atendendo aquele pessoal da Mangueira, pessoal pobre, fazendo uma segunda mão com a Defensoria Pública. Aquilo ali deu certo. Foi proveitoso mesmo. O pessoal gostou muito. O professor Oscar se afastou da faculdade para ser ministro da Justiça. Depois ele foi ministro do Supremo Tribunal Federal. Eu ainda contei com ele em duas ocasiões. Um evento que fiz sobre Direito Constitucional, quando me chamaram para ser supervisor da Gama Filho, e tive que pedir licença da UERJ para ajudar a Gama Filho. E quando concorri ao cargo de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, ele também se engajou em minha campanha, me deu algumas orientações. Recentemente, encontrei com ele já doente. Nos sentamos em um restaurante e recordamos os tempos de UERJ. Ele sempre foi um grande amigo. Dos melhores... Fiz uma homenagem a ele quando faleceu, no Superior Tribunal de Justiça. Fiz constar da ata essa homenagem.

Primeiro fui contratado como instrutor. Aí, fiz a livre-docência, porque não havia Mestrado e Doutorado. Livre-docência em Processo Civil, acho que em 1988. Depois, fui professor titular também em Processo Civil, em 1995. Esse concurso para livre-docência foi um concurso dificílimo. Nós tínhamos uma prova escrita, uma prova didática e tínhamos a defesa da tese. Então, eram três provas: na prova escrita, tínhamos seis horas, depois se lia a prova para a banca; na prova didática sorteava-se um ponto e esse ponto era objeto de uma aula que se dava, não só para banca, mas também para os alunos presentes. A minha livre-docência foi sobre ‘intervenção de terceiros’. Bom, a banca era duríssima. Era composta pelo Barbosa Moreira, pelo professor Muniz de Aragão, professor Calmon de Passos, Celso Agrícola Barbi e o professor Hortêncio Catunda de Medeiros. Já para professor titular a banca foi diferente: Barbosa Moreira, Muniz de Aragão, Cândido Dinamarco, Adroaldo Furtado Fabrício e Gustavo Tepedino. Quer dizer, ali aconteceu uma coisa interessante porque, muito embora quem tenha levado o Gustavo Tepedino para a faculdade tenha sido eu, ele fez um concurso para professor antes de mim. Então, ele acabou me examinando. Tenho o hábito de dormir pouco. Eu já dormia pouco. Na prova de aula, preparei-me de dia, dormi de noite, acordei no dia seguinte e fui dar aula. Mas, na titularidade é que houve um fato sui generis, porque houve uma posse no Supremo Tribunal Federal, se não me engano, uma posse no Supremo ou no Superior Tribunal de Justiça, e aí, dois membros da banca foram a essa posse. Então, houve uma inversão e nós fizemos a defesa de tese antes da prova didática. Normalmente, seria a prova escrita, a prova didática, e depois, a defesa de tese. Mas, no concurso para a titularidade, a prova de aula foi uma prova posterior à prova de tese. Então, o que aconteceu? Eu terminei a defesa da tese, sorteei o ponto para a aula e a aula era no dia seguinte de manhã. Terminei a defesa de tese 4 horas da tarde, mais ou menos, 3 horas, por aí. Sorteei o ponto e era um ponto difícil. Fiquei com dificuldade de dormir. Dormi de sete da noite a uma da manhã. Acordei uma hora da manhã e, aí, já com a cabeça mais descansada, preparei a aula toda. O tema era “mandado de injunção”, matéria nova, que ninguém ainda sabia. Tive até o apoio de um estagiário, Marcelo Carpenter, que fez as pesquisas para mim enquanto eu dormia. Ao acordar peguei o material e saí escrevendo. E ele era um rapaz muito, muito amigo. Tinha algum parentesco com o Luiz Carpenter. Um rapaz de valor, trabalha hoje no escritório Sergio Bermudes.

Tem que ter muita disciplina. Quando chegou, assim, oito horas da manhã, estava preparado para a aula. Peguei um headphone, fiquei ouvindo música até dez horas da manhã. Dez horas fui embora para a faculdade, dei uma aula normal. E ali, nesse dia, saíram divulgadas as notas. Tenho um grande amigo na faculdade, que é o Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. O PC, Paulinho, ele sempre foi muito meu amigo. Tanto que usou uma frase interessante no concurso dele. Fiquei emocionado quando ele falou isso... Eu estava na banca e ele sendo examinado por mim. Eu era professor titular e ele não era. O levei para dar aula na UERJ, e ele, inclusive, me preparou para o Ministério Público, quando fui promotor. Ele era muito querido, muito amigo. Quando o examinei, antes de começar a me responder, falou assim: “Fux, nós somos amigos desde a época em que nós não éramos nada”. Uma pessoa sensível. Porque nós éramos amigos quando a gente era nada mesmo! Nada. Eu já era desembargador e ele era procurador da Justiça. Ele concorrendo para titular de TGP. Quando acabei meu concurso de cátedra, o Paulinho levou o pessoal da banca para o aeroporto. E nós viemos para a minha casa às quatro horas da tarde. Ai, eu falei: “Paulinho, só resta nós dois para comemorar. Vamos comemorar”. Tinha ganho de presente uma garrafa de Royal Salute, que era o whisky mais caro que tinha. Então, eu e Paulinho, às quatro horas da tarde, tomamos uma garrafa de Royal Salute sentados na mesa da minha sala. Conversando. Nós nunca nos esquecemos disso.

Aquilo ali fazia parte da carreira. Eu não me admitiria continuar na UERJ sem fazer esses concursos. Porque a UERJ, ela legitima muito a carreira do professor que faz concurso. O alunado da UERJ é muito exigente. Ele não é condescendente com professor que está ali dando aula para experimentar. O aluno quer saber se o professor tem estrutura para dar aula. O concurso legitima a sua permanência. E sempre fui assim muito voltado para o estudo, muito dedicado. Eu só me meto em coisa difícil, só arranjo coisa que não é frugal. A vida se torna mais difícil também. Mas é o meu temperamento. Hoje tenho na UERJ ligação com o mestrado, com o doutorado e com o grupo de pesquisa. Por quê? Porque isso me dá uma flexibilidade de horário maior. Sou Ministro, então, tenho que estar sempre em Brasília. Vou uma vez por semana à UERJ. E, além disso, para cumprir a minha carga horária, faço parte de quase todas as bancas de concurso. E tenho uma relação tão afetiva com a UERJ, que até admitiria, sem problema nenhum, até porque não sacrifica a minha carreira de Ministro, nunca sacrificou, daria aula de graça na UERJ. Eu tenho amor pela UERJ. A UERJ faz parte da minha vida. Também fui chefe do Departamento de Processo Civil da UERJ. E sou candidato novamente a ser, pelo rodízio. Pretendo ser de novo. O ensino jurídico sempre foi um ensino muito hermético, muito conceitualista. Ensino de conceitos, onde não se procurava levar o aluno a pensar. Talvez até por uma influência política que visava engessar a inteligência do aluno de Direito. Nós estamos em uma época em que você não forma só um aluno para ser advogado. Você forma um cientista do Direito. Então, ele tem que ter uma visão interdisciplinar do fenômeno jurídico. Hoje o ensino jurídico é diferente, porque não é mais positivista. O professor deve levar ao aluno o conhecimento das virtualidades da lei, da necessidade da aplicação da lei à luz dos fins sociais a que a se destina. O homem do Direito não pode ser alheio à realidade do que está aí na rua, dessa pobreza. Ele não pode ser alheio à necessidade de se aplicar o Direito levando em consideração novos valores trazidos pela Constituição Federal. Não há mais possibilidade de se fazer um estudo estanque do Direito. O estudo do Direito hoje é um estudo à luz de princípios éticos, morais.

Como magistrado

Primeiro procuro ver qual é a solução justa. E depois, procuro uma roupagem jurídica para essa solução. Não há mais possibilidade de ser operador de Direito aplicando a lei pura. Nós aprendemos assim por força de um engessamento levado pela política de repressão, e que hoje não existe mais. Então, hoje é muito importante que o professor se despoje desse ranço da ortodoxia do ensino, de que fica vinculado a só uma questão legalista. O Direito vive para o homem, e não o homem para o Direito. É preciso dar solução que seja humana. A justiça tem que ser caridosa e a caridade tem que ser justa. É preciso estar atento às aspirações do povo, porque, no meu modo de ver, assim como o Poder Executivo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Legislativo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Judiciário se exerce em nome do povo, para o povo. A justiça é uma função popular. Na faculdade deve-se partir desse ensino com a cabeça bem aberta para tudo isso. Porque aí se formam pessoas que farão as suas opções. Estou agora lançando o projeto Conhecendo a Constituição. O projeto começou em Aracajú, onde um instituto quis lançar pela primeira vez em homenagem a um jovem que falecera. Envolvi-me com a questão afetiva desse pai, que criou um instituto para dar educação graciosa a mil crianças. Sendo um homem muito rico, como tudo pertenceria por herança ao filho dele, resolveu criar esse instituto. Achei isso o máximo. E quis começar por ali, porque ele foi ao meu gabinete e falou que queria fazer essa homenagem ao filho. Chama-se Instituto Luciano Barreto Júnior, o nome desse menino faleceu. Fui a Sergipe e lancei o projeto “Conhecendo a Constituição” lá.

E teve uma repercussão tão grande que, hoje está sendo levado ao MEC para que se introjete no ensino médio as noções elementares do que é que cada Poder da República faz, os direitos fundamentais da pessoa humana, para que o jovem, já desde cedo, tenha noção da cidadania e possa avaliar se o homem está cumprindo suas funções. Deu divinamente certo. Ninguém faz nada sem a mão de Deus. E nem acontece nada na vida que não seja desígnio de Deus. Quando você consegue alguma coisa, teve uma grande ajuda de Deus. Quando você não consegue é porque Deus achou que aquilo não era o melhor para você. E isso é uma forma de você se contentar, desde que você lute. Eu diria aquilo que já coloquei em um livro: “a UERJ é uma das melhores partes de mim mesmo”. No curso da minha existência, é uma das melhores partes de mim mesmo. Tenho o meu lado humano, minha história, minha vida. Nessa história da minha vida, a UERJ tem um papel fundamental. Tenho um amor e um carinho muito grande pela casa. Os tempos mudaram um pouco, mas não mudou o meu grau de afeição. Eu gosto muito da UERJ e espero um dia que o destino me permita voltar integralmente para lá. Não sei. Eu tenho isso na minha cabeça. De voltar a ser um professor também do bacharelado. O aluno de Direito da UERJ do século XXI, tem que ser um homem voltado incessantemente para o estudo, incessantemente. Incessantemente voltado para o trabalho. E ser um homem crítico do sistema. Não há mais lugar para o homem neutro. É preciso desenvolver o que há de relevante, a independência. A UERJ é uma escola emblemática no Rio de Janeiro. Merece ser lembrada a todo momento, porque ela divulga o que o Rio de Janeiro tem de melhor. Todo mundo imagina que o Rio de Janeiro é bonito pelas suas praias, pelos lugares encantadores, pelo carnaval e futebol. Por um povo alegre. Mas, como eu e outros colegas dizemos nas palestras, e que logra obter grande acolhida dos auditórios, o Rio de Janeiro é maravilhoso, é lindo, mas entre uma caipirinha e outra, também se faz ciência.
 


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