Aracaju/Se,

terça-feira, 26 de abril de 2011

Mulheres da Antiguidade - Shudi-Ad

Isto é História

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
SHUDI-AD
Vicki León

A cidade de Ur, na Suméria, no ano 2500 a.C., era um lugar elegante, onde a música, a moda e as artes floresciam com bom gosto e qualidade igualados apenas pelo Egito. A rainha Shudi-Ad foi uma das benfeitoras de Ur, talvez até mesmo sua inspiração. Ela e sua corte viviam, bem, eu diria como reis. Ninguém jamais usou adornos de cabeça tão primorosos como os sumerianos: criações delicadamente originais feitas de folhas de ouro, representando folhas de faia e flores, que deviam ter um efeito cintilante extremamente encantador quando as pessoas se moviam. A própria rainha usava um pente alto com rosetas de ouro, cornalina e lápis-lazúli em sua peruca escura, e grandes argolas de ouro nas orelhas. Shudi-Ad bebia em taças de ouro trabalhado; seu vinho era guardado em jarras altas de alabastro estriado. Ela e sua comitiva usavam tabuleiros de jogos e tocavam instrumentos musicais cravejados de mosaico, e andavam em carruagens ostentando esculturas de leões e outros animais. Até mesmo os sinetes cilíndricos com os quais ela assinava seu nome eram obras de arte.
Mas era a música – não só em seu círculo, mas através de todo reino da Suméria – que recebia a maior atenção. Os sumérios usavam a mesma escala musical que nós usamos, e apreciavam harmonia e interpretações arrebatadas em harpa, lira, flautas e tambores. É fácil imaginar seus poemas sensuais sendo cantados; tanto mulheres como homens tinham carreiras honradas como cantores. Como um grupo, os sumérios não davam muita importância à vida após a morte. Essa incredulidade, associada ao poder absoluto da classe dirigente e um desejo muito humano de comparecer ao próprio funeral, os levou a criar a primeira combinação festa-funeral do mundo. Um velório pré-morte, por assim dizer. A rainha Shudi-Ad deve ter ficado contente com seu funeral – ela pôde desfrutar a maior parte dele. Shudi-Ad tinha quarenta anos quando morreu, de causas desconhecidas, mas que provavelmente não foram naturais. Marchando com Shudi-Ad para dentro do seu túmulo, provavelmente ao som de música, foram sessenta e quatro criadas, a metade delas usando fitas douradas nos cabelos e a outra metade fitas prateadas; uma carruagem de madeira elaboradamente ornamentada em ouro e prata, puxada por dois bois; quatro mulheres harpistas e seis soldados (além do túmulo de Shudi-Ad, arqueólogos encontraram na Suméria vários locais de sepultamento em massa; ninguém realmente sabe por que os sumérios se dispunham a isso).

A cena da morte parece ter sido alegre. Todos foram encontrados em perfeito repouso – sem um diadema sequer fora do lugar. De fato, o tipo de funeral que todos nós fantasiamos. Cada um dos membros da festa-funeral recebia uma bebida numa pequena taça. As harpistas tocavam. Os cantores entoavam canções. O grupo pode ter feito até um pequeno caraoquê. Afinal, quem sabe ao certo? E, quando a música acabou e a quietude tomou conta do aposento com seus súditos entorpecidos e agonizantes, agrada-me pensar que a linda rainha lhes teria dado uma salva de aplausos, antes de ela mesmo beber até o fim sua própria taça de nepente e então deitar em seus finos adornos para sempre.

(*) – Na próxima terça-feira, dia 3 de maio de 2011, você vai conhecer INNASHAGGA, uma sumeriana que viveu no ano 2000 a.C. e que se caracterizou pelas batalhas jurídicas enfrentadas.

Em busca do tempo perdido

Artigo pessoal

Em busca do tempo perdido
Clóvis Barbosa (*)


Gostaria de ter conhecido Policarpo Quaresma, aquele de triste fim, na obra do genial escritor Lima Barreto. Não, não iria para Curuzu, mas o levaria para Bruzundanga. Por favor, Curuzu não é o bairro da Liberdade, em Salvador de Bahia, onde está situada a nação ileaê. Aliás, por falar em ileaê, qual é Vovô? Que historia é essa de não permitir que sarará miolo, amarelo empapuçado, moreno cor de canela, branquelo e índio saiam no bloco? É apartheid às avessas? Isto é segregação racial, meu irmão! Pois bem, como não vim para explicar, mas para confundir, vou questionar esse negócio judicialmente e, quem sabe, se no carnaval de 2012 eu não esteja com Policarpo Quaresma desfilando na avenida pelo ileaê. Mas vamos voltar ao nosso personagem, homem extremamente nacionalista e idealista. Fui buscá-lo na prisão, após formalizar um habeas corpus em seu favor, onde tranquei o processo que apurava o crime de traição à pátria, acusado que fora pelo Marechal Floriano Peixoto, então Presidente da República. Policarpo, reconheço, era polêmico. Tentou, por exemplo, mudar a língua falada no país para o tupi e, claro, não conseguiu o seu intento. Em Bruzundanga me criou vários problemas. Passou o sarrafo em todo mundo. Na estrutura governamental, na forma de gerir o dinheiro público, na corrupção desenfreada, na falta de compromisso com a educação e a saúde, as propinas, os privilégios políticos, na hipocrisia e pseudo-erudição dos intelectuais. Enfim, não teve uma só ação política, social, econômica e cultural que não fosse atacada ferozmente.
Fiquei preocupado com a reação da elite bruzungandense. Antes que nos expulsássemos ou decretassem a nossa prisão, fugimos para Utopia, uma ilha perfeita com uma beleza natural extraordinária. Apos alguns dias, num hall de um hotel, diviso Policarpo Quaresma conversando com Sir Thomas More, o “patrono dos estadistas e políticos”, titulo que lhe foi outorgado pelo Papa João Paulo II, no ano de 2000. Ao seu lado, numa discussão acalorada, também encontravam-se Peter Gilles, amigo de More e Raphael Nonsenso, um velho marinheiro que fez algumas viagens com Américo Vespúcio. O debate, como não poderia deixar de ser, era a vida naquele país e a possibilidade de implantar a sua filosofia na Europa. A inexistência de propriedade privada, a obrigatoriedade do trabalho para todos, sem exceção, com uma jornada de seis horas, três no período matutino e três no vespertino. A igualdade é princípio rigoroso, até no uso da vestimenta, lisa para todos. A criança, desde cedo é ensinada a cultivar a terra, ao tempo em que os estudos e a aprendizagem artística são obrigatórios. Seus habitantes são pacíficos, bondosos, solidários e grandes anfitriões. São avessos ao uso de jóias e vestimentas extravagantes, como as usadas pelos estrangeiros. Policarpo dizia que a vida utopiana era um ataque virulento à sociedade do renascimento cristão europeu. Criticou a religião, os direitos humanos, chegando ao ponto de malhar o modo de vida utopiano, tido, para ele, como monótono e castrador da ambição humana. Criticou o paganismo sem perceber que os habitantes de Utopia eram pagãos.

Sir Thomas More era um homem simples, humilde, mas dotado de um senso de humor. Respondeu para Policarpo que “o homem é criatura de Deus, e por isso os direitos humanos têm a sua origem n’Ele, baseiam-se no desígnio da criação e entram no plano da redenção. Poder-se-ia dizer, com uma expressão audaz que os direitos do homem são também direitos de Deus”. A discussão não terminou bem, principalmente pelas atitudes grosseiras de Raphael Nonsenso que tentou, inclusive, agredir Policarpo. Não deu para continuar em Utopia. Fomos para Lilliput. Lá encontramos com náufragos do navio de Gulliver. Era uma terra de habitantes extremamente pequenos e idiotas. Viviam cotidianamente em guerra por motivos fúteis. Não houve condições de viver na ilha, dada à pequenez da comunidade e a escassez de alimentos. Fomos para outra parte da ilha, Brobdingnag, que ao contrário de Lilliput, era uma terra de habitantes gigantes. Também não deu para permanecer nesse local. Viajamos para a ilha flutuante de Laputa, uma terra muita estranha. Eu estava ansioso para saber as impressões de Policarpo, até quando, viajando para mais longe, ele encontrou os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía muita inteligência, mas que temiam uma raça de humanos chamada Yahoo. Pela primeira vez vi Policarpo Quaresma triste, bastante meditabundo. Alguns dias depois, confessou-me. “Vamos embora. Estou enojado do ser humano”. Não me disse o porquê. Só sei que foi depois de percorrermos as ilhas visitadas por Gulliver. Não houve como demovê-lo da sua ensimesmação.
Manoel Bandeira
No retorno, lembrei-me de Manuel Bandeira. Gritei para Policarpo Quaresma com o peito cheio de alegria: Vamos embora pra Pasárgada. Lá sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que quero na cama que escolherei. Lá a existência é uma aventura, de tal modo inconsequente que Joana a Louca de Espanha, rainha e falsa demente, vem a ser contraparente da nora que nunca tive. Lá farei ginastica, andarei de bicicleta, montarei em burro brabo, subirei no pau de sebo e tomarei banho de mar! Senti Policarpo Quaresma se recompondo e inebriado com a minha dissertação. E continuei: E quando estiver cansado deito na beira do rio, mando chamar a mãe-d’água pra me contar as histórias que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar. Em Pasárgada, Policarpo, tem tudo, é outra civilização, tem um processo seguro de impedir a concepção. Tem telefone automático, alcalóide à vontade e até prostitutas bonitas prá gente namorar. Os olhos de Policarpo brilhavam. Arrematei: E quando eu estiver mais triste, mas triste de não ter jeito. Quando de noite me der vontade de me matar, vou-me embora prá pasárgada. – Lá sou amigo do rei – Terei a mulher que eu quero na cama que escolherei. Vamos, amigo, vamos embora prá pasárgada. Policarpo Quaresma chorou. Ao mesmo tempo ria. Era grande a sua expectativa, quem sabe, viver o resto de sua vida em Pasárgada. Colocou na radiola a “Gulliver Suíte”, do compositor alemão Georg Philipp Telemann, e vibrava com os movimentos da suíte para violinos escrita em 1728. Repetiu umas dez vezes o movimento “chaconne of the lilliputians”. Era outro homem. E fomos em busca do tempo perdido.

(**) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 10 e 11 de abril de 2011, Caderno.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mulheres Audaciosas da Antiguidade


Isto é história

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
Vicki León

A partir de hoje, começando com um prefácio da autora do livro, Vicki León, estaremos postando, todas as terças-feiras, a obra acima, publicada pela Editora Rosa dos Tempos. Vocês vão conhecer as mulheres audaciosas da antiguidade numa linguagem gostosa de ler.



As Audaciosas Pré-Cristãs Definidas e Descobertas

“Um nome próprio é um algo vivo; sua persistência através dos séculos demonstra essa força vital.”
Helen Diner, Mothers & Amazons

Afinal de contas, o que há de importante em um nome? Como os advogados de marcas registradas e as mulheres audaciosas lhe dirão: tudo. A história da antiguidade se especializou em esnobar as mulheres por meios evasivos, com seus relatos repletos de “uma mulher que ...” e “esposa de …,” e aquela velha frase favorita: “que diziam ser a mãe de ...”. Contudo, entre 2500 a.C. e 450 d.C., por toda a Mesopotâmia, no Egito e no norte da África, ao redor do mar Negro e do Mediterrâneo, da Inglaterra à Terra Santa, existiu um número incalculável de mulheres importantes – mulheres reais e não deusas ou ficções literárias. Seus nomes não foram perdidos, mas apenas extraviados ou encobertos. A maioria delas tinha um único nome, como Kubaba de Kish, Hatshepsut do Egito, Melânia da Antióqua, Gorgo de Esparta e Fabíola de Roma. Seus feitos também não estão perdidos para nós; as mulheres indômitas balançaram tantos berços quanto qualquer outra mulher, mas também criaram muita confusão. De diferentes culturas, épocas e classes sociais, elas compartilharam uma obrigação moral: essas realizadoras de alta energia não aceitaram o que os outros diziam que uma mulher devia ou não fazer. Elas sabiam como fazer para tirar o maior partido possível dos aspectos positivos com que nasceram – que muitas vezes não eram muitos. Algumas mulheres neste livro foram escravas, que freqüentemente exibiam um senso triunfante de autovalorização, a despeito da posição social que ocupavam em suas vidas. Como a prisioneira num leilão público em Esparta, à qual um comprador exigente perguntou: “Você vai ser útil se eu a comprar?” Olhando-o de alto a baixo, ela retrucou friamente: “Sim – e se você não me comprar também.”



Algumas das mulheres audaciosas escolheram notoriedade em lugar de gentileza, e autonomia em lugar de submissão social e sexual. Mulheres como Tecla, a amiga íntima de São Paulo, e Artemísia, uma comandante da Ásia Menor, adoravam uma boa luta. Outras, como Salomé e Herodíades, sua mãe assassina, chafurdavam alegremente em perversidades. Da Suméria e Egito antigos até as eras cristãs, as mulheres desempenharam papéis-chave na vida espiritual dos povos. Nas paginas deste livro, você encontrará a coragem insolente das mártires cristãs e os infortúnios das virgens vestais; lamurientas sacerdotisas adolescentes, mênades (bacantes) gregas e mulheres sábias hititas; sacerdotisas-poetisas sumerianas que desempenhavam a função de noivas sagradas e matronas romanas que, silenciosamente, deram milhões para a recém-formada Igreja Cristã. Com um tom longe do respeitoso, você também ouvirá muita coisa sobre os macedônios da região norte da Grécia, para os quais três coisas – cavalgar, matar rivais e contrabandear – todas faziam parte de um dia de trabalho. E encontrará uma enciclopédia fascinante de mulheres que optaram por ser poetas e envenenadoras, médicas e gladiadoras, arquitetas e atletas, agiotas e perdulárias, cabeleireiras e pessoas terríveis, advogadas e proprietárias de imóveis em litígio, filosofas e namoradeiras, esposas extremamente santas e super-vendedoras de sexo.


No conjunto, este livro faz um perfil de duzentas mulheres que atacaram a vida em seus próprios termos. Em conjunto, suas vidas formam uma visão bruxuleante e surpreendente de raízes comuns, diferenças interessantes e problemas universais da cultura humana vistos de uma perspectiva feminina – e seus paralelos surpreendentes com nossas próprias perspectivas. Semelhante à feitura de uma colcha de retalhos de pequeninos recortes de tecido antigo, as historias dessas mulheres foram desenterradas de uma vasta série de fontes históricas e literárias, muitas vezes contraditórias, hostis, imprecisas ou incompletas – ou todas essas coisas. Afortunadamente, existe um conjunto igualmente gigantesco de evidências não-literárias. Esses materiais, um dia chamados “fontes inconscientes” pela historiadora Barbara Tuchman, incluem cartas, casos jurídicos, objetos de arte, moedas, memorandos, diários, artefatos, pichações e inscrições. Eles ajudam a dar uma sensação de contato direto com a vida na antiguidade, da maneira como foi realmente vivida. Em algumas instâncias, uma determinada imagem ainda é fragmentária – mas a Vênus de Milo também é, e não vejo ninguém jogando sua estátua fora por causa disso. Para fornecer um contexto, a história de cada mulher é tecida dentro de uma matriz cultural – dos assuntos que eram importantes para ela aos rumos dos grandes acontecimentos e eventos dos quais pode ter participado. A maioria das datas incluídas neste período de três mil anos é sentimental; entretanto, como nove dentre dez historiadores concordariam, uma historia significativa se concentra em elos, marcos culturais importantes e correlações - e não em números. Outra área delicada é a escrita e a pronúncia dos nomes da antiguidade. Para fazer deste livro um prazer em vez de um experiência penosa de múltipla escolha, dei a versão mais comum e mais fácil do nome de cada mulher. Mas saibam que existem muitas variações por aí.


O palco onde essas mulheres viviam e se movimentavam é gigantesco. Suas civilizações começaram no leste e no sul – Mesopotâmia e Egito – e gradualmente se espalharam para o oeste, ao redor do mar Mediterrâneo. Os vales quentes dos rios da Mesopotâmia testemunharam uma sucessão de culturas: Suméria, Acad, Babilônia, Assíria e Pérsia. Em contraste, o Egito permaneceu egípcio desde os tempos primordiais aos dias de Cleópatra, quando caiu sob o domínio romano. Na Ásia Menor (atualmente Turquia), Síria e Terra Santa proliferavam cidades prósperas e reinos – freqüentemente reinos de rainhas. A área presenciou um turbilhão de culturas e poderes políticos, dos hititas e fenícios aos persas, judeus, gregos e romanos. A “Grécia” sempre foi mais um conceito do que um país; suas regiões e cidades-estados nunca permaneceram unidas. Quando as populações cresciam, as cidades-estados enviavam seu excedente para fundar novas colônias ao redor do Mediterrâneo, que por sua vez faziam a mesma coisa. Essa miscelânea de helenismo preservou o mundo grego em pensamento, linguagem e cultura, por um longo tempo após a Grécia ter se tornado romana no sentido político, a partir de 27 a.C.


Por outro lado, o Império Romano deixou que os povos, regiões e cidades sob seu domínio preservassem seus costumes. A única exceção foi a Terra Santa, onde, depois de muita luta, os judeus foram destituídos tanto de sua religião como de seus bens imóveis. Em contraste, a Igreja Cristã, com uma orientação fortemente feminina nos primeiros séculos, finalmente conquistou os corações e mentes de muitas pessoas, das imperatrizes romanas às classes mais baixas. Uma frase da historiadora Pauline Pantel pode muito bem definir o máximo da mulher audaciosa pré-cristã: “Vagarosamente, muito vagarosamente, as mulheres se tornaram indivíduos, pessoas cuja opinião importava.” Esta frase notável – pessoas cuja opinião importava – transpira aquilo pelo qual as mulheres da antiguidade lutaram e que nós, suas descendentes, continuamos a reivindicar nos dias de hoje. Este livro é dedicado a cada uma dessas pioneiras insaciáveis e audaciosas, e foi escrito com o mesmo espírito irreverente dessas mulheres.

A Autora
Vicki León




(*) – Na próxima terça-feira, dia 26, vamos falar de SHUD-AD, que viveu na cidade de UR, na Suméria, no ano 2.500 a.C.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Lula, o doutor do povo

Notas de Imprensa

Lula, o doutor do povo
por Eduarda Freitas*, de Coimbra, em CartaCapital


A luz do sol estica-se devagar no pátio da Universidade de Coimbra. Ainda não são nove da manhã. Um grupo de jovens conversa nas escadas que dão acesso à Sala dos Capelos, onde mais tarde vai ser atribuído o grau de Doutoramento Honoris Causa a Lula da Silva. Nas mãos têm máquinas fotográficas. Às costas, a bandeira do Brasil. “Isto é muito importante para nós, por tudo o que Lula fez em oito anos, por todas as mensagens que passou ao mundo em língua portuguesa”. Denise tem 20 anos, é de Caxias do Sul. Está em Coimbra desde janeiro, a estudar Direito. Faz parte da comunidade de quase mil alunos brasileiros que estudam na academia de Coimbra. À entrada do pátio, lê-se: “Em defesa da Amazônia, Dilma pare a barragem de Belo Monte”. Os sinos tocam. Os batedores da polícia aproximam-se. Os jornalistas apontam as máquinas. Centenas de pessoas gritam num português cantado: “Lula! Lula!”. Destaca-se uma voz: “Tira uma foto com o gaúcho, Lula!”. O ex-presidente levanta a mão, como quem pede desculpa: “Estamos atrasados…”. Ainda assim, Fernanda Esteves consegue uma foto: “Eu nem acredito! Consegui…ai…”, diz com a voz entregue à emoção e os olhos castanhos a encherem-se de água. “Estou tremendo!”. E Lula ainda nem era doutor.

Doutoramento para poucos



Faltava pouco. Ao final da manhã, Lula da Silva haveria de sair da mais antiga universidade de Portugal e uma das mais velhas da Europa, com o título de doutor Honoris Causa. Uma distinção que só chega a quatro ou cinco pessoas por ano. Mas antes, havia ainda que cumprir um rigoroso e tradicional protocolo. Já dentro da Biblioteca Joanina, Lula aguardava pela formação do cortejo acadêmico. À entrada da Universidade, ninguém arredava pé. Improvisava-se a voz. Cantava-se o hino brasileiro misturado com saltos e gritos de “sou brasileiro, com muito orgulho, sou brasileiro!”. A manhã ia crescendo. “Isto havia de ser sempre assim”, confidenciavam três empregadas de limpeza da biblioteca onde estava Lula. “Ganhamos o dia e não fazemos nada!”, riam. Mais um carro a chegar. Sai o primeiro-ministro demissionário de Portugal, José Sócrates. “Não sei se ele é bom politico, mas sei que ele é um gato…!”, riam duas amigas de olhos azuis. Agora sim, Dilma Rousseff. “ Eu quero vê-la!”, gritava Maria da Conceição, uma portuguesa de cabelos brancos, no alto dos seus sessenta anos. Entre seguranças, Maria viu Dilma, casaco vermelho escuro, sorriso rasgado: “Estou muito feliz. Ela é uma grande mulher!”.

Homenagem ao povo brasileiro


Seguiu-se o cortejo. Palmas, muitas palmas, para o quase doutor. Um quinteto de metais marcava o ritmo solene da ocasião. Lula seguia de capa preta e um capelo – pequena capa – sob os ombros. Distinguia-se dos outros elementos do cortejo, cerca de cem doutores de Coimbra, por não usar ainda a borla, uma espécie de chapéu. A luxuosa Sala dos Capelos, datada do sec. XVI, repleta de retratos dos reis de Portugal, aguardava Lula da Silva. “Mais do que um reconhecimento pessoal, acredito que esta láurea é uma homenagem ao povo brasileiro, que nos últimos oito anos realizou, de modo pacifico e democrático, uma verdadeira revolução econômica e social, dando um enorme salto qualitativo no rumo da prosperidade e da justiça”. A voz fugia-lhe, emocionado. “Nada disto seria possível, igualmente, sem a colaboração generosa e leal daquele que foi o meu parceiro de todas as horas, um dos homens mais íntegros que conheci”. Lula referia-se ao seu sempre vice-presidente, José Alencar, falecido na passada terça-feira. A regra dos doutoramento impõe silêncio, mas na Sala dos Capelos ouviram-se palmas no final do discurso de Lula da Silva. E foi ao catedrático jurista português Gomes Canotilho, que coube fazer o discurso de elogio do doutorando Honoris Causa Luiz Inácio Lula da Silva. Antes do ex-presidente do Brasil receber o anel de senhor doutor.

Lula, o homem de mãos grandes



“Foi o maior anel de doutoramento que fizemos, devido à mão robusta de Lula!”, conta sorridente o joalheiro António Cruz. “ O anel é feito no melhor ouro português, rematado com um rubi com cerca de cinco quilates, elevado por 12 garras”. O preço? “Não posso dizer. Mas não é económico”, ri. “Vimos várias fotos de Lula para lhe fazermos um anel personalizado. Foi muito especial para nós…!”. Por esta joalharia que vive paredes meias com a muralha de Coimbra, já nasceram anéis de doutoramentos honoris causa para os dedos dos prêmios Nobel José Saramago e Amartya Sen, para Jorge Amado, entre muitos outros. Apesar de tantos anéis, este foi a primeira cerimônia de doutoramento a que António foi assistir: “Admiro muito Lula da Silva!”. Uma hora antes, na sala onde são homenageados os maiores doutores entre os doutores, Canotilho Gomes justificava a atribuição deste título ao cidadão Lula da Silva: “a política transporta positividade e com positividade deve ser exercida. Da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo. Do povo para o homem do povo: Lula da Silva”. Emocionado, de sorriso triste, sem prestar declarações, Lula saiu rápido para apanhar o avião para o velório de José Alencar. Ainda assim, uma jornalista brasileira, atirou uma pergunta sem ponto de interrogação: “Ei, presidente, você agora é doutor!”



Jornalista Eduarda Freitas,
de Carta Capital
artigo publicado em 30.03.2011

terça-feira, 12 de abril de 2011

O Óbvio que Ignoramos

Artigo pessoal

O óbvio que ignoramos
Clóvis Barbosa

Edvaldo Nogueira
Prefeito de Aracaju

Leio em todos os jornais de Aracaju, final de dezembro de 2010, um realese da Prefeitura de Aracaju, cuja manchete é Primeiro Escalão coloca cargos à disposição de Edvaldo. A matéria: “Todos os secretários e dirigentes de empresas, superintendência e fundações municipais de Aracaju colocaram os cargos à disposição do prefeito Edvaldo Nogueira. A iniciativa, espontânea, aconteceu no período que o chefe do executivo municipal estava em gozo de férias, ocorridas no período de 15 a 26 deste mês de dezembro. A intenção do secretariado municipal é que, agora que o governador Marcelo Déda está definindo o secretariado estadual para o segundo governo, o prefeito deve estar à vontade para reorganizar a estrutura municipal, se assim julgar necessário. Todos sabem que o governador, em outras oportunidades, convocou técnicos do município para a esfera estadual – o que não seria nenhuma surpresa dada a relação harmoniosa entre Estado e Prefeitura de Aracaju, apesar de não haver nenhuma evidência de que isso possa acontecer. Os Secretários também estão conscientes de que o prefeito Edvaldo Nogueira pode simplesmente necessitar proceder mudanças na estrutura administrativa da prefeitura, visando a adequação da máquina aos desafios que virão nos dois últimos anos de sua gestão (2011 e 2012), como ele próprio já manifestou” (sic). Não deixa de soar estranho o comportamento dos ilustrados gestores do município de Aracaju, disponibilizando uma coisa que não lhe pertence. Só se dá o que se tem.


Marcelo Déda
Governador de Sergipe

Soa, até como afronta ao chefe do executivo municipal, esse verdadeiramente é quem tem a disponibilidade dos cargos comissionados e funções gratificadas, enquanto perdurar o mandato que lhe foi outorgado soberanamente pelas urnas. Mas, a quem culpar? os secretários, o superintendente, os dirigentes de empresas e das fundações municipais? Acredito que a nenhum deles. Recordo-me que certa vez, estando ocupando um cargo público, demissível ad nutum, um colega veio propor que eu colocasse o cargo à disposição da autoridade que me nomeou, pois o mesmo precisava fazer modificações no seu staff, e era preciso deixá-lo a vontade. Ponderei com o colega que não podia fazê-lo, pois o cargo não era meu e sim, da autoridade, e somente ela é que teria de “dispor” do cargo, exonerando-me. Pronto! o mundo desabou. O colega disse que todos colocaram à disposição os seus cargos, e eu o único a não fazê-lo, o que deixaria o chefe em situação de desconfiança com relação a mim. Retruquei que não havia motivo para o estresse. A situação era simples. Como não havia razao para colocar o cargo à disposição, e nem poderia, eu vou pedir exoneração. O que fiz e não foi aceita. Esse exemplo deveria nortear a conduta dos gestores auxiliares nesses momentos. Assim, agindo de maneira espontânea (sem aspas), estariam deixando o Chefe do Executivo à vontade para proceder as mudanças na estrutura do seu governo que entender necessárias, se é que havia essa pretensão, até agora, abril de 2011, não confirmada.


Repita-se: Os Cargos Comissionados e as funções gratificadas não pertencem àqueles que estão no seu exercício, mas à autoridade nomeante. É assim aqui, na Chechênia, na Arábia Saudita, na Itália, na França e até no Cazaquistão, e pronto! Mas, alguns assessores mais realistas que o chefe, ou mesmo este, que não quer ferir suscetibilidades, inventa essa história de disponibilização dos cargos por parte dos seus exercentes. Muitas vezes é motivo para justificar um ou dois afastamentos incômodos. A não ser, no caso acima, que o Prefeito leve ao pé da letra as 48 leis do poder, obra de Roberto Greene, cuja lei de n° 17 estabelece a manutenção da assessoria num estado latente de terror, de imprevisibilidade. No mais, como é do conhecimento de todos, os cargos em comissão ou cargos de confiança sempre são ocupados em caráter precário por pessoas que podem ser mantidas ou não no lugar pela autoridade nomeante. Na titularidade desses cargos, o servidor pode ser exonerado ad nutum, ou seja, sem necessidade de qualquer tipo de fundamentação. Esses cargos se caracterizam, portanto, pela transitoriedade da investidura. Não poderia, pois, os senhores Secretários, colocá-los à disposição do alcaide municipal, este sim, o supremo signatário dos cargos. Fato é que não têm poderes nem autoridade para assim proceder. E isto não é difícil descobrir, de ver, de entender, porque está na frente do seu nariz e não precisa ser dito, sendo claro, patente, manifesto e notório. Portanto, só se dá o que tem. É o óbvio que ignoramos.

(*) Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 3 e 4 de abril de 2011, Caderno B, página 11.




Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...