Aracaju/Se,

domingo, 16 de maio de 2021

 Opinião

REVISTA DO RÁDIO

Clóvis Barbosa

Marlene e Emilinha Borba

Entre os oito e quinze anos de idade aconteceram fatos extraordinários em minha vida na capital baiana. Diria que foi uma fase muito rica na aquisição de conhecimentos, em amadurecimento para enfrentar a vida e autoafirmação cultural e cidadã. Não fui aquela criança teorizada pelos psiquiatras/psicólogos como a que teve uma vida normal do ponto de vista de brincar e estudar. Trabalhei para sobreviver desde cedo e, ao invés de ser um elemento prejudicial à minha formação, foi muito importante para o meu crescimento, pois, em momento algum, fiquei privado de participar de brincadeiras típicas da infância e de frequentar regularmente a escola. A minha normalidade era sentida pelo bem-estar físico, mental e social e pela capacidade de adaptação ao meio. É verdade que na vida ninguém cresce sozinho. Nesse caminhar tive pessoas extraordinárias que passaram pela minha história e influenciaram de forma decisiva na formação do meu caráter e daquela lei moral, de que nos fala Kant - na Crítica da razão prática - existente em nós. Nas orações sempre agradeço por esses anjos que Deus colocou em minha vida, uns já falecidos e outros ainda vivos. Sou-lhes grato por menor que tenha sido a sua contribuição. Foi uma fase em que cada minuto era aproveitado intensamente. Aprendi a ser inteiro em tudo em que me envolvia. Na fase impúbere, não sei bem o porquê, sempre fui “do contra”. Em casa, havia uma disputa sobre todo e qualquer acontecimento do cotidiano. A briga era infernal, mas, paradoxalmente, o senso de humor, a pacificidade e a solidariedade predominavam entre nós todos – irmãos e pais. Eu, particularmente, sempre estive ao lado dos oprimidos.   

Enquanto os homens torciam pelo Vitória e as mulheres eram fãs de Cauby Peixoto e Wanderley Cardoso, eu era torcedor do Bahia e fã de Francisco Carlos - um cantor de sucesso na década de 1950 - e Roberto Carlos. Em paralelo à vida no meu lar, no labor diário e nos estudos tinha uma afeição muito grande à vida cultural proporcionada pelos cinemas de Salvador e pelo Instituto Goeth, situado no Corredor da Vitória, próximo à Praça do Campo Grande. Era admirador do cinema clássico e dos movimentos culturais da época. Acompanhei o surgimento da Nouvelle Vague Francesa, de Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Eric Rohmer e Jacques Rivette, sendo a maioria desses cineastas vinda da crítica cinematográfica feita numa revista de vanguarda, o Cahiers de Cinéma. Acompanhei o neorrealismo italiano nas figuras dos seus idealizadores, Roberto Rosselini, Luchino Visconti e Vittorio de Sica. Nunca me esqueço do filme Ladrões de Bicicleta, que fui assistir num cinema de subúrbio, em Plataforma. Vi o cinema novo no Brasil florescer - influenciado pela nouvelle vague e pelo neorrealismo -, que teve como expoentes Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Roberto Santos, Paulo César Saraceni, Olney São Paulo e Rogério Sganzerla. Vivenciei o surgimento do novo cinema alemão, também inspirado pela nouvelle vague e pelos movimentos de protesto de 1968, e que teve como nomes importantes Wim Wenders, Werner Herzog, Volker Schlondorff e Rainer Werner Fassbinder; o nascimento do cinema baiano em filmes como Redenção, Barravento, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto.

Gratas recordações tenho das filmagens de O Pagador de Promessas na Ladeira do Carmo e Pelourinho (único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes), quando testemunhei os gritos do diretor Anselmo Duarte e as interpretações dos atores Leonardo Vilar, Geraldo D’El Rey, Glória Menezes e tantos outros. Foram momentos fascinantes. Saía do IEIA (à época era Instituto de Educação Isaías Alves) no Barbalho, seguia em direção ao Santo Antônio, passando pelo Além do Carmo, até chegar à Igreja do Passo. Descia os seus 55 degraus e me sentava timidamente na Ladeira do Carmo. Não sei o porquê, mas nunca fui expulso do set dos trabalhos cinematográficos. Tenho a impressão de que era a minha farda caqui do colégio que impunha respeito ou me tornava invisível. Tinha de tudo nas gravações, e a multidão de curiosos de vez em quando era contida pela polícia e seguranças. Certo dia, se aproximou do local o famoso cordelista Cuíca de Santo Amaro, causando reboliço. A turba começou a entoar o “bota vaca no currá, Zé Coió quer mamar” e as filmagens tiveram que ser suspensas. Registre-se que foi nele, Cuíca, que Dias Gomes - autor da peça que deu nome ao filme – se baseou para criar um dos personagens. Enfim, foram momentos inesquecíveis. Outra faceta que eu tinha era a de acompanhar as programações das emissoras de rádio da Bahia e do Rio de Janeiro, principalmente. A Rádio Sociedade da Bahia, ligada ao grupo de Assis Chateaubriand, a Rádio Excelsior e a Rádio Cultura predominavam na época com um cast de fazer inveja. Até os Serviços de Alto Falante - muito comuns na época nos bairros de Salvador - primavam pelo bom gosto.
Foi no palco da Rádio Excelsior, que ficava próxima à Praça da Sé, que vi um show do grande cantor de boleros Bienvenido Granda. No auditório e nas ondas da Rádio Sociedade desfilavam nomes como Ubaldo Câncio de Carvalho, Renato Mendonça, Armando Chaves, Pacheco Filho, Antônio Laborda, José Athaide. Tinha até programa de rádio teatro. Nessas emissoras desfilavam o compositor Riachão e um cantor de voz muito bonita, Osvaldo Fahel. Existia uma exibição semanal de meia hora, intitulada PRK-30, na fase memorável da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, apresentada por Lauro Borges e Castro Barbosa, que modulava: “Cavaleiros e cavaleiras de ambos os sexos, muito boa tarde. Acaba de subir ao ar a sua PRK-30, falando diretamente do segundo andar do Edifício Espícler, enquanto não anunciam a construção do primeiro andar. É por isso que anunciamos sempre: NO AR, PRK-30!”. Eram apenas duas vozes que representavam dezenas de personagens, uma espécie de Chico Anísio das décadas de 50 e 60. Aliás, há quem diga que o humorista cearense foi muito influenciado por essa dupla de sucesso na história do rádio. Mais fascinante ainda era a acirrada disputa artística que se travava na Rádio Nacional e pelo Brasil afora, tendo como protagonistas as cantoras Emilinha Borba e Marlene, e os cantores Cauby Peixoto e Francisco Carlos. O gesto simples de girar um botão criava, repentinamente, um momento mágico. Tinha uma emissora de Pernambuco cujo locutor de vozeirão falava o seguinte bordão: “Pernambuco, você é meu”. E continuava, “Aqui é a Rádio Jornal do Comércio... É Pernambuco falando para o mundo”.
Minha mãe, fã ardorosa de Emilinha, acompanhava cantando em duo com a voz que vinha do rádio: “Chiquita bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica”, ou: “Quando a lama virou pedra e mandacaru secou, quando arribação de sede bateu asa e voou; foi aí que vim-me embora carregando a minha dor, hoje eu mando um abraço pra ti pequenina, Paraíba masculina muié macho sim senhor”, clássico de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Mas minha velha nunca foi assistir Emilinha pessoalmente. Eu era obrigado a ver os seus filmes e passava a ela o papel desempenhado pela artista ou a música que ela interpretava. Lembro-me de alguns filmes, como “Tristezas não pagam dívidas”, onde ela canta “Atire a primeira pedra”; “Aviso aos navegantes”, em que se apresenta com uma capa de plástico e sob uma chuva artificial, onde interpreta a música Tomara que chova. Enfim, foram inúmeros os filmes. O mesmo quadro era com Cauby Peixoto. Diferentemente, minha mãe não admitia as canções interpretadas por Marlene ou Francisco Carlos. Nessas horas, mudava-se imediatamente de emissora. Mas ela gostava também de Dolores Duran, Elizete Cardoso, Dalva de Oliveira, Maysa e Ângela Maria. Em outubro de 2007, eu estava em São Paulo quando minha mãe telefonou-me pedindo para comprar um CD de Emilinha Borba. Fui a uma loja da Avenida Paulista sem qualquer esperança de encontrar, contudo, achei vários CDs da cantora. Entreguei todos a ela, que vibrou com o presente. Soube que todos os dias ela tocava um a um dos CDS. Mas, na verdade, estava ouvindo pela última vez a voz daquela que durante muito tempo encheu o seu mundo de magia. É que ela faleceu poucos dias depois, mas seus duos com Emilinha permanecem vivos em minha memória.


- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 08/05/2021, Caderno A-7.

 - Fotos extraídas do Google

 

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