Aracaju/Se,

sábado, 27 de julho de 2019

Em Nome do Pai


Opinião pessoal
Em Nome do Pai
Clóvis Barbosa
Alguns anos atrás, mandei um twitter me solidarizando com os refugiados de Badbaado, o maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália, onde se via bebês, de poucos meses de nascidos, em pele e osso, olhos vidrados, com moscas passeando sobre os seus rostos cansados pela fraqueza causada pela fome, que não lhes davam força, sequer, para chorar. A África, à época - e continua até hoje - possuía mais de 10 milhões de famintos, distribuídos em Djibuti (120 mil), Etiópia (4, 6 milhões), Quênia (2,4 milhões) e Somália (2,8 milhões). Lembrei-me daquele poema de um autor desconhecido: “De cada criança morta, nascerá um fuzil com olhos que terminará por lhe achar o coração”. Os jornais nos informam que um cidadão, Iman Abdi Noono, de 60 anos, caminhou com a família por dez dias para escapar da seca que matou todo o seu rebanho garantidor da sua subsistência. Seguiu em direção à capital da Somália em busca de alimentos e, na caminhada, viu seis dos nove filhos morrerem de fome. “Carreguei o último nas costas e achei que iria salvá-lo. Mas ele morreu pouco depois de chegarmos”. A Somália, hoje, tem uma população de 9,9 milhões de habitantes, está localizada no chifre da África, mortalidade infantil que atinge 105,6 mortes a cada mil nascidos vivos, e saneamento básico disponível a apenas 23% da população e a renda per capita é de US$ 600. Há uma insana disputa armada que rachou o país ao meio, na qual de um lado está um governo incapaz e, de outro, o fanatismo da milícia islâmica Al Shabab. Para piorar, há problemas climáticos ligados à seca que assola o país de norte a sul, sem qualquer perspectiva de solução em curto prazo. Grito com Castro Alves, evocando o porquê de tanto sofrimento durante vários séculos: “Deus! Ó Deus onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu te escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito.../ Onde estás, Senhor Deus?”.
 
Somos filhos da África. Para aqui, como escravos, vieram os nossos antepassados para, com sua força de trabalho, submeter-se a uma exploração do homem pelo homem. Ao chegar ao Brasil, eram açoitados de forma severa para, de logo, acostumar-se no contexto da opressão institucionalizada. Foram tripudiados, espancados, explorados, animalizados em sua dignidade e autoestima. A chibata era o símbolo do instrumento da tortura a ser aplicada àqueles que não se conformavam com o establishment.
 
Pois bem. Um engraçadinho, pelo twitter, me mandou às favas, dizendo que eu deveria era me solidarizar com os pobres e oprimidos daqui, e não querer ser um pai de povo que eu sequer conhecia. O que fazer?! A mediocridade e a insensibilidade são irmãs gêmeas, até porque o que a realidade complica, a ficção elucida com muita clareza. Ou será o contrário? A verdade é que o meu seguidor de twitter desconhece o que foi a carnificina escravocrata em nosso país. Esquece, por exemplo, que o Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, chegando ao ponto de em 1820 - dois anos antes da Independência - ter uma população com  dois terços de escravos. Só nesse ano, desembarcaram no Rio de Janeiro 700 mil africanos. Documentos demonstram que a “Cidade Maravilhosa”  foi a maior escravista do mundo desde a Roma antiga. E para arrematar: De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos vieram para o Brasil, dez vezes mais, por exemplo, que a quantidade levada para América do Norte. Quer saber mais? Compre e leia “O Navio Negreiro – Uma História Humana”, de Marcus Rediker, professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs. Mas, interessante, gostei do epíteto da vontade que supostamente eu teria de pretender ser o pai do povo somaliano, como dito pelo twitteiro. Quem me dera! Mas estou satisfeito por ser filho da África e, seja ela pai ou mãe, é minha pretensão honrá-la.

Post Scriptum
O Personagem
Tontonho passou a infância entre Capela e Maruim, com direito a algumas passagens em Rosário do Catete. Sua vida era ordenhando vacas, daí o apelido Tontonho Leiteiro, mas o que ele adorava mesmo era ir aos cinemas locais, nas sessões únicas, onde os seus atores prediletos eram os cowboys Roy Rogers e Rocky Lane. Sabia tudo da vida dos artistas: que Roy Rogers tinha como nome verdadeiro Leonard Franklin Slye, nascido em Cincinnati, Ohio, EUA, em 1911; que era cantor e que a sua terceira mulher, a atriz Dale Evans, era conhecida como a “Rainha do Oeste” e ele “O Rei dos Cowboys”; que sabia de cor e salteado os mais de cem filmes do ator e batia no peito para dizer que tinha assistido mais de quarenta. Tinha como meta e razão de sua vida assistir todos os filmes. À sua vaca de estimação deu o nome de Bullet, em homenagem ao cão de Roy. O seu cavalo tinha o mesmo nome do cavalo do seu ídolo, Trigger. Sobre Rocky, embora a admiração não fosse a mesma, acompanhava a sua vida e história: a cidade onde nasceu, Mishawaka, Indiana, nos EUA, em 1904; o seu nome verdadeiro, que era Allan Lane; os mais de cem filmes em que ele participou. Muitos anos depois, o seu amor era tão grande que mandou comprar nos EUA toda a série de Mister Ed, que fez muito sucesso na década de 1960 na televisão americana. Nessa trama, Rocky fazia a voz do cavalo. Tontonho tinha o sonho de um dia ser mocinho no cinema. Aos amigos do interior, à família e nas conversas que ele mantinha com a vaca Bullet e com o cavalo Trigger, dizia que um dia o seu nome iria brilhar nos letreiros dos cinemas. – Esse pessoal daqui de Capela vai morrer de inveja quando vir o meu nome no cast dos filmes!
 
Sua obsessão era tanta que, vindo morar em Aracaju, logo conheceu a chamada “Turma do Parque”, que abrigava artistas e lúdicos arruaceiros comandados pelo legendário Cabo Tripa, formada, dentre outros, por Cidão, Mascarenhas, Chato, Arono, Alencar, Amaral, Luiz Bom de Bola e até Nestor Amazonas. Soube de um curso de teatro que estava sendo promovido pela SCAS, a Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, entidade que agitava a vida cultural da cidade, trazendo para Sergipe os maiores espetáculos apresentados no sul do país. O sergipano, na década de 60, assistiu óperas, orquestras internacionais, peças teatrais, musicais e filmes clássicos. O teatro fervia com apresentações dos atores João Costa, Luiz Antônio Barreto e tantos outros. Durante o curso, cujas aulas foram dadas pelo famoso ator, poeta, teatrólogo e diplomata Pascoal Carlos Magno, conheceu um contrarregra que fazia sucesso numa companhia de teatro de São Paulo e que estava se apresentando no Atheneu. Após o espetáculo, foi jantar no restaurante São Carlos, que ficava na rua da frente, bem defronte à Gazeta de Sergipe. Aproximou-se do contrarregra e firmou uma amizade que se tornaria firme na capital paulista. Fez questão de revelar a sua obsessão em ser ator de cinema. Tontonho, então, juntou dinheiro e foi morar em São Paulo um ano depois. Encontrou-se com o amigo e este começou a apresentá-lo ao alto clero artístico. Começou fazendo algumas pontas em novelas e aos poucos foi sedimentando o seu nome. Mudou de nome, ao invés de Antônio Serapião, passou a ser chamado de Anthony Light, como tinha sugerido o amigo contrarregra. Começou a fazer sucesso na televisão, teatro e cinema.
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Tontonho era um mulherengo inveterado. Namorou muitas atrizes, algumas que estavam começando a carreira, outras já consagradas. Era um verdadeiro urubu. Também namorou muitos colegas atores, diretores e gente do mundo artístico. Conta-se que, certa vez, saiu com um amigo e mais três homoafetivos, sendo um destes deficiente físico. Na relação que se formou, dois a dois, ele sobrou. Fez um escândalo e passou a atacar Tontonho e o amigo: - Não vou aceitar, isto é discriminação. Por que vocês não querem fazer amor comigo? Tontonho interrompeu o discurso do deficiente e lhe disse: - Calma, menina! Depois que terminar aqui, eu lhe pego. O tempo passou e as coisas foram mudando para Tontonho. A sua inconstância nas relações fizeram como que, aos poucos, ele fosse perdendo espaço no mundo artístico paulista. Passou a fazer “biscate” até ir parar na famosa “Boca do Lixo”, a meca do cinema brasileiro. Logo se enturmou e foi fazendo pequenos papéis em pornochanchadas. Tinha, então, as portas fechadas da televisão, teatro e cinema. Estava obstinado a começar tudo de novo. Certo dia conheceu um cineasta francês que vinha fazer filmes de sexo explícito. Dizia que era a coqueluche na Europa. Milhões de dólares corriam por conta do cinema pornô. O francês era um verdadeiro conhecedor da história do cinema. Conhecia todas as escolas cinematográficas. O cinema burlesco americano da década de 20, o naturalismo da Escola Poética Sueca, o expressionismo alemão, o documentarismo inglês, o realismo poético francês, o filme noir americano, o neorrealismo italiano, o realismo intimista japonês, a nouvelle vague francesa e o cinema novo brasileiro, com Glauber Rocha e sua visão revolucionária.
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O francês falava sem parar e dizia cada uma das características dessas escolas, seus cineastas e os filmes que as representavam. Gostava de citar frases óbvias, como “Um filme só pode existir a partir do momento em que é exibido”; “Todo bom filme deve saber exprimir, ao mesmo tempo, uma concepção da vida e uma concepção do cinema”; “Ver um filme é como ler um livro e ver um vídeo é como consultar um livro”. Tontonho ficou embasbacado pelo francês. Conseguiu ser escalado para um filme no papel principal. Era uma oportunidade de ouro. O filme era “O entregador de linguiças”, onde ia encarnar o papel de Severino, o nordestino retirante que foi trabalhar num açougue e era um exímio fazedor de linguiça. Fazia e entregava aos clientes numa lambreta. Como todo filme pornô, o roteiro misturava a linguiça com os dotes do rapaz. Nas entregas, as mulheres se apaixonavam e o sexo explícito rolava solto, até que um dia acaba sendo “descoberto” por um marido traído, que resolve aprontar uma com o rapaz. Manda a mulher se fazer totalmente apaixonada e, com a luz apagada, pede que Severino fique deitado esperando sua triunfal subida na cama. Mas, no lugar dela, quem vai no escuro é o marido, um “negão” desses “tipo armário”, que, sem piedade, faz o entregador de linguiças virar o “recebedor” de linguiça. Nas filmagens, Tontonho teria que ceder ao marido traído e literalmente aceitar a cópula anal. Perguntou então ao diretor: - E cadê o dublê?. “Aqui não tem dublê não, é tudo com o ator”, disse o diretor. Tontonho deu uma de brabo! Disse que era nordestino macho, que jamais faria aquela cena. O diretor prontamente voltou-se para a produção e disse: - Vamos ter de mudar de ator, gente! Tontonho quase enfarta. Buscou tanto aquela oportunidade.
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E agora? - Diretor, e minha reputação? – Que reputação, menino? Você já viu personagem ter reputação? – Como assim? Perguntou. E o diretor, sem pestanejar disse: É simples! Quem faz o papel é você, mas não é você, entende? Tontonho ficou mais doido ainda. E o diretor: - Veja, Anthony, tudo que você fizer não é você, é o personagem. Nada vai abalar sua reputação. Você continuará o mesmo macho nordestino. O personagem é que muda de lado. Quem está dando não é você, mas o personagem. E Tontonho encarou o “negão”. O cinema pornô acabou com a sua carreira e ele terminou voltando para Sergipe. Até hoje, a sua vida é tentar explicar o motivo de ter aceitado aquele papel. Mas ele nega peremptoriamente que não foi ele quem se sujeitou... foi o personagem.


Colaboraram com o Post Scriptum Luiz Eduardo Oliva e Paulo Lobo

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de fim de semana, de sábado à segunda-feira, dia 24 a 27 de junho de 2016, Caderno A—7.
- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, em 26 de junho de 2016, às 15:20:01, conforme site: 
 


domingo, 14 de julho de 2019

Tipos Populares de Aracaju - Everaldo Lídio, o Monumento


Isto é História

Aracaju Romântica que Vi e Vivi
Tipos Populares
Everaldo Lídio, vulgo Monumento
                                   Murillo Melins
O maior doador de sangue de Aracaju, intelectual, poeta, jornalista e repentista. Apesar de alcoólatra, era respeitador e querido por toda a sociedade. Falava corretamente o português, discutia filosofia além de ter a sua própria.
Movimento entrevistando Paulo Molin, cantor pernambucano
Autor de diversos improvisos e repentes, como os que passamos a mencionar:
1)   Uma certa ocasião ao viajar com um grupo de boêmios no trem suburbano de Aracaju-Propriá, no meio da viagem, como chovia muito e havia algumas goteiras no velho trem, uma delas gotejava na cabeça de Movimento. Um colega vendo que ele se encontrava impassível, disse: - Muvu, troque de lugar, ouvindo dele a resposta: - Trocar com quem, se as outras cadeiras estão vazias, e ainda acrescentou: - A chuva também é passageira.  
2)   Um casal de turistas, passeando na Rua João Pessoa, aproximou-se de Movimento e perguntou: - O senhor sabe onde tem um armarinho? Ele rapidamente respondeu: - Armarinho tem naquela avenida, apontando a Avenida Rio Branco, onde passa o mar. O casal queria comprar botões ou linha.
3)   No dia 7 de setembro, uma senhora que desejava assistir ao desfile estudantil, perguntou: - A parada passa por aqui? Ele prontamente respondeu: - Só se ela vier com Movimento.
4)   Estava havendo uma passeata subversiva na Rua João Pessoa e o chefe de polícia dispersava o pessoal, dizendo: - Não quero movimento aqui. Chegando na Praça Fausto Cardoso, um curioso perguntou: - Muvu, que aglomeração é aquela? Não sei, pois quando fui chegando lá, ouvi o chefe da polícia dizer: não quero Movimento aqui. Aí eu me mandei.

O autor
Murillo Melins
-  Na próxima postagem você vai conhecer Doutor Leandro, o Santo Dotô, homem simples, de aparência tranquila e que ostentava um nome pomposo: Doutor Leandro Gonçalo Prado Rollemberg Leite da Cruz Franco Proprietário de Tudo e Santo Deus.    
- Do livro “Aracaju Romântica que vi e vivi”, de Murillo Melins, 4ª. Edição, 2011, Gráfica J. Andrade.
- As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google. 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O perfume de Mamede

Opinião pessoal


O Perfume de Mamede
Clóvis Barbosa
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Certo dia, contava a um colega sobre a origem do meu gosto pelo perfume Kouros. Ele ficou fascinado com a narrativa das lembranças de minha infância, mais especificamente dos meus doze anos. Disse-me que o que eu narrava casava perfeitamente com um texto que havia lido do escritor Antônio Carlos Viana, onde ele, citando Truffaut, falava que “se você acha que sua fonte de inspiração secou, visite seus doze anos e todo um manancial de lembranças correrá por sua memória”. E Viana completa, rememorando como o cheiro de um café, em determinado dia, lhe transportou para uma época distante. Antônio Carlos Viana é um dos orgulhos de Sergipe. Desponta, hoje, ao lado do escritor Francisco Dantas, como um dos nomes mais brilhantes da literatura brasileira. E o que é melhor, Viana e Dantas moram e vivem em Sergipe. Do primeiro, recomendo a leitura de “Brincar de Manja” e “Jeito de Matar lagartas”, este vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. Já de Dantas, “Coivara da Memória”, “Os Desvalidos” e “Caderno de Ruminações”. Já prestei a Dantas, aqui no Jornal da Cidade, uma homenagem, ao escrever “Um sergipano Paraty”, quando tive a emoção de conhecê-lo na X Festa Literária Internacional de Paraty, em 2012: “É... Diz a lenda que Deus começou a distribuir terras pelo mundo. A certa altura, d’Ele se acercou Pedro, reclamando seu quinhão. – É lá, disse o Senhor – aquilo é Paraty! Pois foi nesta bela cidade fluminense, de um mar lindo com as suas dezenas e dezenas de ilhas, prédios coloniais e povo acolhedor, que o valor de uma gente foi reconhecido através de uma alma tímida, simples e extremamente inteligente: Francisco. Um Francisco que não se esquece. Eternamente vivo na coivara da memória”.
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François Truffaut
Como estou falando de lembranças, olha os doze anos de volta: François Truffaut, em “Os Incompreendidos”, filme que assisti no ART, um cineminha situado na Rua da Ajuda, Centro de Salvador. Truffaut era um dos ícones da minha infância, no tempo em que sonhava ser um diretor de cinema. Ele fazia parte do movimento cinematográfico chamado de “Nouvelle Vague”, ou Nova Onda, cuja principal característica era a de transgredir as regras comumente usadas no cinema comercial. Um cinema inteligente, explorando as contradições da natureza humana e suas vicissitudes. O amor e as relações humanas passavam a ter uma nova forma de retratação. Ele inspirou monstros sagrados da cinematografia mundial, como Steven Spielberg, Brian de Palma, Martin Scorcese, Quentin Tarantino e tantos outros. Dele, vi, ainda, “Jules et Jim”, “O Homem que Amava as Mulheres”, “A Mulher do Lado” e “Fahrenheit 451”.  Os temas mais explorados no cinema de Truffaut foram, exatamente, as mulheres, a paixão e a infância, daí sua idolatria pelas lembranças que colavam na memória como uma cicatriz. E ele tinha razão. Com a morte de minha avó Júlia Modesto, com a qual vivi desde os dois anos de idade, no começo dos anos 60, fui morar com meus pais na Rua Sete de Abril, em um morro situado entre o Largo do Tanque e a Liberdade. Tinha onze ou 12 anos. Família grande, eu era o quinto filho de uma prole de treze irmãos, mas ao todo foram vinte e quatro. Meu pai estava passando por uma fase difícil. Tinha falido e, de patrão, passou a ser empregado como garçom em um restaurante situado na Cidade Baixa. Minha mãe costurava, mas o ganho para manter a família era bastante escasso, de maneira que os mais velhos precisavam trabalhar para ajudar nas despesas da casa.
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Ruelas do Centro de Salvador
Desde os dez anos, ainda na casa da minha avó, estudava e vivia também da venda e troca de gibis (histórias em quadrinhos), fazendo ponto nos sábados à tarde no cinema Santo Antônio, centro histórico de Salvador. Mas tinha que ter um trabalho fixo. Comecei a acompanhar minha mãe em lojas, bancos e tudo que era estabelecimento comercial. Certo dia, com várias promessas de emprego, ela me disse: - Conheci lá em Irmã Dulce um sergipano muito rico, dono de mercado de luxo que vende de tudo, de farinha a pneu de caminhão. Entregou-me uma espécie de cartão, onde estava escrito Mamede Paes Mendonça, Diretor-Presidente da Pague menos, ou Paes Mendonça S/A, mais ou menos isso. Abaixo do nome e do cargo, o endereço na Cidade Baixa, perto do Mercado do Ouro. Conhecia de nome o sergipano. Na época eu gostava de ler os jornais A Tarde, Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia, e acompanhava o noticiário pela Rádio Sociedade da Bahia. – Marquei com ele sexta-feira, às 10 horas. Vista a sua melhor roupa, nada de rir da gagueira dele e responda tudo que ele perguntar. Ele vai lhe dar um emprego!, disse minha mãe. Sexta-feira, pontualmente, estávamos na porta do escritório de Paes Mendonça. Sua secretária nos recebeu e ficamos aguardando a chamada para a entrevista. Fiquei inebriado com o cheiro que vinha de dentro do escritório de Paes Mendonça, quando, de repente, ele abriu a porta e mandou que entrássemos. – Doooona Helelelena, é este pipirralho que a Senhooooora quequer queque trababalhe? Bom, enquanto ele conversava com minha mãe, eu estava impressionado com a fragrância que circundava todo o escritório. Nunca tinha sentido nada igual. Comecei a vivenciar aquele momento inalando com prazer todo aquele olor.
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O aroma era uma mistura de flores, sei lá... rosas, jasmins, alguma madeira, frutos, enfim, fiquei inerte diante daquele ambiente maravilhoso. A minha experiência com perfume era, no máximo, a água de cheiro, comprada na Feira de Água de Meninos ou no Mercado Modelo; o lança-perfume, um produto de rico vendido no período de carnaval; algumas colônias vendidas em farmácia, sabonetes e pronto. Saí da minha inércia com o grito de minha mãe para que eu desse atenção ao nosso anfitrião. Era um homem bonito, cara de italiano e estava de sandálias. Ele me achou muito jovem para o trabalho, não pela idade, mas pela minha magreza e palidez. Respondi às suas perguntas laconicamente. Sobre os meus gostos: – Cinema, futebol, estudo e jornal. O que eu sabia fazer: - Tudo, basta me ensinar. Mas eu estava mesmo era embasbacado com a fragrância que tomava conta do escritório. – Que cheiro gostoso, dizia para mim mesmo. Ele conversou um pouco com minha mãe e disse que iria ver o que era possível fazer. Mandou que eu voltasse no início do mês subsequente. Ao sair, perguntei a minha mãe se ela percebeu o aroma que exalava pelo escritório. Ela disse que era coisa de rico, de francês, que não gostava de tomar banho: - Francês é assim! Não sabe cozinhar, aí inventou o molho. Não toma banho, aí inventou o perfume pra esconder o fedor do corpo. Não trabalhei com Mamede. Antes do fim daquele mês, fui chamado para iniciar as minhas atividades em uma loja da Baixa dos Sapateiros, chamada Plaza Modas, de propriedade do polonês Samuel Leizor Joscovitz. Só voltei a ver pessoalmente Seu Mamede na metade da década de 80, na inauguração de um dos seus supermercados.
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Shopping Ibirapuera SP 
Neste dia, já advogado, fui apresentado a ele por um amigo de muita estima, Antônio Barbosa, que trabalhava no grupo GBarbosa. Quando ele apertou minha mão e me abraçou, foi logo falando: - Bobom gosto o senhor tetem. Uuuusa Kouros, o meu perfume. Não deu para falar mais nada. A partir deste momento um filme passou pela minha cabeça. Lembrei-me do contato que tive com ele e da experiência de sentir, pela primeira vez, a fragrância inebriante do perfume do seu escritório; e de depois, quando voltei a sentir a mesma sensação dois ou três anos antes desse encontro, em um shopping em São Paulo. Tinha ido à capital paulista participar de um congresso de direito do trabalho. Em dado momento, um colega advogado me convidou para ir a um shopping em Ibirapuera, onde ele iria visitar a irmã, que trabalhava em uma de suas lojas. No centro de compras, ao passar por uma loja de perfumes, uma atendente me presenteou com uma amostra em um cartão. Ao cheirar, parei, fiquei pasmo, entorpecido. Era o mesmo aroma agradável de vinte e poucos anos atrás, quando da minha visita ao escritório de Mamede Paes Mendonça. A lembrança estava presente com toda a sua força. Voltei e perguntei à atendente o nome do perfume. - Kouros, ela me respondeu. Comprei dois frascos de 100ml e, a partir daí, nunca mais deixei de usar o produto. Quando li a respeito do perfume, fiquei um pouco perturbado: Kouros foi criado em 1981. Mas como, se na década de sessenta eu conheci e senti aquele mesmo aromático? Será que a sua fórmula foi comprada pelo seu novo fabricante, que mudou o seu nome? Fui traído pelo tempo ou enganado nas sensações olfativas? Embora a dúvida pairasse em minha mente, não me interessei em buscar mais informações.
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Mamede Paes Mendonça
Ficou na minha lembrança a figura daquele homem que venceu na Bahia e que era uma figura muito querida. Emocionou-me uma reportagem sobre o seu centenário de nascimento, em 2015. Estava ali estampada: “Duas décadas depois de sua morte, tudo permanece como ele deixou. O ritual é uma homenagem. Em meio a tantas lembranças, tudo é tão real que não sobra espaço para a morbidez. Preservar o acervo pessoal foi a maneira que a família encontrou de manter viva a memória do homem simples e de pouco estudo que, graças a sua habilidade para os negócios, transformou-se, ainda em vida, numa das maiores referências empresariais do setor varejista brasileiro. Depois de morto, virou mito. ‘É como se ele permanecesse entre nós. Todos os dias, ligamos o ar e borrifamos o perfume na sala que ele usava para senti-lo vivo’", explica José Augusto Andrade Mendonça, 70, o quarto dos seis filhos do sergipano.
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Para a família, borrifar o perfume usado por Mamede o traz de volta. Para mim, essa mesma fragrância tem “cheiro” de infância, da bucólica Salvador, das suas ladeiras, ruelas e de um povo que irradiava alegria. É cheiro daquilo que não se lembra todo dia, mas que o coração sente. A final, não se tira da cabeça aquilo que está no coração.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 11 de junho de 2016, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 12 de junho de 2016, às 08:30, site:






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