Aracaju/Se,

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Crime de Fausto Cardoso

Os Crimes que abalaram Sergipe

O Crime de Fausto Cardoso (*)

Fausto Cardoso
Acrísio Torres

Fausto Cardoso era um espírito singular, de extremos. Passava da arrogância desmedida, em provocar lutas, à doçura da clemência, em conceder perdões; do silêncio do gabinete, onde era filósofo, lançava-se ao tumulto da praça pública, onde era revolucionário. Pontificou em vários pontos da ciência. Escreveu obras notáveis. No Cosmos, sonhou com a hegemonia do direito, na Taxeonomia Social, desvendou o âmago da história, em Lei e Arbítrio, pregou a ditadura no próprio seio do congresso nacional. No jornalismo, sua pena foi o estilete dos tiranos. Tomou de “assalto” todas as tribunas, a acadêmica, a judiciária, a dos comícios, a parlamentar, nas quais empolgava, concentrava as atenções, as aclamações, os aplausos. Era o tribuno invejado, invejável.



Olímpio Campos
Foi assim Fausto Cardoso. Filósofo, historiador, jornalista, tribuno, poeta, revolucionário. Raro na sua originalidade. Tocado pelo gênio, tal era o vigor e arrojo de seus vôos, só impedidos mesmo por uma bala de carabina. Esse herói carlyliano, nascido em Divina Pastora, em 1864, estava destinado a sucumbir numa tragédia política que sensibilizou o estado, a nação. Tudo ocorreu em 1906, em 28 de agosto, devido a um conflito de mentalidades políticas.Culminava um grave conflito ideológico, na época. Fausto Cardoso, de um lado, encarnava o pensamento liberal, o espírito revolucionário, e, Olímpio Campos, de outro, o ideal conservador, contra-revolucionário, interessado na ordem estabelecida.



Guilherme Campos
Fausto Cardoso, deputado federal, chefia a revolta progressista, com o apoio da força policial. Guilherme Campos, presidente do estado, irmão de Olímpio Campos, é deposto. Não lhe restava senão pedir a intervenção federal, assegurada no artigo seis da constituição de 1891, a primeira republicana. Rodrigues Alves, presidente da república, autorizado pelo congresso nacional, ordenou ao general Firmino Lopes Rego, comandante do primeiro distrito militar, repor no poder o governo legal. Era 28 de agosto de 1906. Gumercindo Bessa, dos amigos que em vão tentaram demover Fausto Cardoso de reação, foi o último a deixar o palácio do governo. Chorava. Eram lágrimas prenunciadoras da tragédia.



Calíope
Melpômene
Firmino Lopes, baldadas as tentativas de dissuadir Fausto, ordenou fosse evacuado o palácio do governo. Era soldado, cumpria ordens. Os soldados penetraram o palácio, no momento em que Fausto, sem medo, sem receio, como se sentisse que ia (ou devia?) morrer, gritou da escada: - “Atirem, bandidos!”. Um tiro foi disparado. Era o fim de Fausto. Melpômene triunfava sobre Calíope. Assim morreu Fausto Cardoso. Na verdade, uma morte trágica, ocorrida num lance de aventura, nunca antes ocorrido em Sergipe, que, certamente, nunca mais se repetirá, muito raro mesmo na história política da nação brasileira. Pesado luto caiu sobre Sergipe. Em todo o país, a imprensa lamentou o trágico sucesso. No Rio, A Tribuna dizia que Fausto “foi um organismo permanentemente em ebulição, uma alma de fogo, e o fogo que lavrava nela acabou por devorá-la”.


Rodrigues Alves
No império, na república, não há registro de caso de tamanha gravidade. Por isso, não deixa de ser estranho que, na comunicação ao congresso nacional, de que havia sido reposto o presidente de Sergipe, Rodrigues Alves não haja feito a menor referência à morte de Fausto. Dizia apenas “o que de mais ocorreu consta dos documentos anexos”.




(*) Do Livro “Cenas da Vida Sergipana, 2 – Acrísio Torres – SERGIPE/CRIMES POLÍTICOS, I”, Thesaurus Editora, prefácio de Orlando Dantas, páginas 13/14.


- Sobre a referência final, do presidente da república, Rodrigues Alves, o autor recomenda a leitura de “Fausto Cardoso e a Revolução de 1906”, de José Calasans.

- A próxima postagem, em 7 de setembro de 2010, abordará, sob a visão do mesmo autor, o crime de Olímpio Campos. 

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Leito de Procusto

Artigo Pessoal

O leito de procusto
Clóvis Barbosa

Oton I
A culpa é de Oton I. Imbecil. Quis meter o bedelho na igreja, achando que não haveria reação. É o mal dos beligerantes. Supor que apenas a mãe deles pariu filho esperto. Depois de Oton I, vieram vários reis otonitas. Todos intransigentes. E intrometidos. Queriam nomear bispos e até escolher o papa. Isso gerou um problema medonho. A história deu ao imbróglio o nome de cesaropapismo. Patacoada pura. Ou você é césar, ou você é papa. Foi um mangue. Disso advieram o nicolaísmo e a simonia. Aquele, consistente no mundanismo dentro do qual o clero foi arremessado. Esta, traduzida na mercantilização da fé. Tinha padre vendendo lote no céu, dando conta de que o vizinho era São Paulo. Pode? O pau quebrou. Surgiu um tal de partido reformista. Isso já em pleno século XI. Era para mudar tudo na igreja, acabando, de uma vez por todas, com qualquer possibilidade de intromissão do monarca em seus assuntos.

Gregório VII
Hildebrando, correligionário dos reformistas (homem da cozinha de Nicolau II), seduziu o Santo Padre a estabelecer que a escolha dos futuros pontífices se daria mediante escrutínio no colégio de cardeais. Fim do cesaropapismo. E início do pontificado de Hildebrando. Com o título Gregório VII, Hildebrando assumiu o trono de Pedro, eleito pela resolução do povo romano. Adotou normas brutais. Agora, a igreja mandaria na igreja. Bulhufas para o rei. Viu no que deu? Quando o poder quer se imiscuir em outro, a guerra é certa. E não é santa. Mas Gregório radicalizou. Acabou com o nicolaísmo, constituindo o celibato. Findou com a simonia, proscrevendo a escolha de bispos pelo império. Cacete! Quem disse que Henrique IV, governante germânico, gostou? Destituiu o papa. E o papa? Ora, excomungou Henrique. O episódio ficou conhecido como “a querela das investiduras”. Quem ganhou? Difícil dizer.

Henrique IV
Certo é que o idiota do Henrique IV, vendo que o embate com Sua Santidade lhe fraturaria alguns ossos, jogou a toalha branca. Pediu arrego. Fala-se que seus asseclas o admoestaram: “Majestade, peça perdão ao papa”. E não é que ele foi? Ficou três dias à frente do palácio papal, nos Alpes italianos, descalço, num frio de dar congestão, até que Gregório achou por bem absolvê-lo. Lascou-se. Ao voltar, sua corte já empossara outro rei, um tal de Rodolfo da Suábia. Henrique pelejou com Rodolfo, até que este morreu em 1080. Como vingança, elegeu um anti-papa, Clemente III, obrigando Gregório VII a morrer no exílio, em Salerno. Pois bem, Gregório foi canonizado em 1606. Já Henrique IV foi impelido a abdicar em 1105. Por quem? Por seu próprio filho, Henrique V. É o fim de todo absolutista arrogante, que atribui à vontade da maioria o desprezo que ele deveria atribuir ao reflexo que projeta no espelho.

Castro Alves
Ainda estamos na idade média. Já disse. A responsabilidade é de Oton I. Por ele, há uma turminha de imperadores otonitas, todos imberbes, que se arvoram no fato de terem sido aprovados num difícil concurso público de provas e títulos, para arrotar que, por causa disso, podem até depor o papa. Interessante. Assim como Gregório VII, vereadores, prefeitos, deputados, senadores e governadores foram eleitos pela vontade popular. Isso os legitima. Isso, metaforicamente, os canoniza. A pia batismal do voto é sacrossanta. Confere autoridade. Mesmo assim, os concursados, proprietários de um poder secular vitalício, crêem que sua investidura é melhor. Daí, por conta de qualquer deslize (o menor que seja), querem tirar prefeitos, vereadores, etc. do trono que o povo lhes deu. Aos novos Henriques, indico não necessariamente o estudo da Idade Média, mas a leitura de Castro Alves: “a praça é do povo como o céu é do condor”.

Teseu e Procusto
Urna para votar
Brasil 
Em democracias como a que se degusta nos EUA, defensores, delegados (xerifes), promotores, juízes, etc. são eleitos. Fazem campanha e pedem voto. Por quê? Porque só se faz democracia com “certo” e “errado” quando o acerto e o erro são apontados pelas mãos de um agricultor ou de um vaqueiro, e não pelas mãos de um burguês que se embevece com livros, mas não anda na praça. Diz a mitologia que um monstro chamado Procusto tinha um leito de ferro, onde deitava suas vítimas. Se a vítima fosse maior do que o leito, Procusto amputava o excesso, nos braços ou nas pernas; se menor, ele esticava-a até alcançar o tamanho do leito, levando-a à morte. Teseu executou Procusto, deitando-o transversalmente no próprio leito e decapitando as sobras. Eram muitas. Eis o impasse. Quem se acha dono do tamanho dos outros e do tamanho do povo acaba correndo o risco de perder braços e pernas. E quem sabe, até a cabeça.

• Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 2 e 3 de novembro de 2008, Caderno B, pág. 9.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mostra em São Paulo sobre Fernando Pessoa

Poesia

Mostra multimídia em São Paulo
celebra Fernando Pessoa e heterônimos


Ambiente da mostra "Fernando Pessoa,
Plural Como o Universo" em São Paulo




Considerado um dos maiores poetas do século 20, o português Fernando Pessoa (1888-1935) é tema de mostra que abre nesta terça-feira (24), no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. "Fernando Pessoa, Plural Como o Universo" traz textos, imagens e vídeos sobre os 47 anos da vida do autor, além de algumas raridades, como a primeira edição do livro "Mensagem", único publicado por ele, e os dois números da revista "Orpheu", um marco do modernismo em Portugal.

Durante o percurso, o visitante entrará em contato com os versos de alguns de seus heterônimos, como Alberto Caeiro, o “poeta da natureza”; Ricardo Reis, médico e discípulo de Caeiro; Álvaro de Campos, um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa; Bernardo Soares, autor do "Livro do Desassossego"; e de Pessoa, “Ele-mesmo”, considerado pelo próprio um ortônimo, em tom de ironia. Estarão expostos também poemas de heterônimos menos conhecidos e de algumas de suas personalidades literárias, como o Barão de Teive, o prosador suicida.

Cenografia

Com projeto assinado pelo cenógrafo Hélio Eichbauer, a exposição terá o mar e os tons de azul da água e do céu como identidade visual, remetendo à época dos descobrimentos e das grandes conquistas de Portugal, inspirada no livro "Mensagem". No primeiro ambiente da sala de exposições temporárias do museu, haverá cinco cabines, onde serão projetados trechos de poemas do próprio Fernando Pessoa e de seus heterônimos Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares. A sexta cabine, chamada de “Eu Sou Muitos”, será dedicada a outras personalidades literárias criadas pelo poeta. Nesse mesmo ambiente, ao fundo, ficará exposta uma imagem de Pessoa reproduzida pelo artista plástico português e amigo do poeta, Almada Negreiros.


O poeta português Fernando Pessoa, que ganha
 mostra em sua homenagem em São Paulo

Museu da Língua Portuguesa faz exposição interativa sobre Fernando Pessoa

Textos inéditos são publicados em nova coleção

Autor prepara há sete anos biografia de Fernando Pessoa

o político ao esotérico, dicionário percorre obras e heterônimos de Fernando Pessoa. Em seguida, o visitante entrará numa espécie de labirinto poético que mostrará trechos de poesias e imagens de Fernando Pessoa, e, depois, passará para um ambiente onde documentos fac-símile ampliados, manuscritos ou datilografados, relacionados a sua vida estarão expostos dentro de vitrines.

O público vai ver algumas relíquias, como a primeira edição do livro "Mensagem", com uma dedicatória escrita pelo poeta; o primeiro e segundo exemplar da revista "Orpheu"; três exemplares da revista "Athena"; seis exemplares da Revista do Comércio e da Contabilidade; a série completa de "A Revista", de 1931; algumas edições da revista "Águia", onde Pessoa publicou seus primeiros artigos, e da revista "Presença", sucessora da "Orpheu". Algumas dessas publicações ainda poderão ser folheadas virtualmente com a ajuda de um e-reader instalado em cima de uma grande mesa comunitária, onde também estarão espalhados livros sobre a obra de Pessoa, em vários idiomas.

Atrás dessa mesa haverá um pêndulo que representará o tempo. Ele estará envolvido por uma tela com a imagem de um dos quadros do pintor português Nuno Gonçalves, que retrata personagens da sociedade portuguesa do século 15, representantes do clero, da nobreza e do povo. Ao lado dele, trechos de poemas de Pessoa serão projetados em dois tanques de areia.

Na parede ao fundo, dois vídeos serão projetados, como se fossem duas janelas. O primeiro, produzido pelo documentarista Carlos Nader com roteiro do poeta Antônio Cícero, mostrará pessoas, em meio a uma multidão, recitando Pessoa. O segundo mostrará uma imagem do mar, sempre em movimento, tirada do emblemático filme “Limite” (1931), de Mario Peixoto.

No último espaço da exposição, o visitante poderá acompanhar a cronologia da vida-obra do poeta, por meio de imagens retiradas da recém-lançada fotobiografia produzida por Richard Zenith, um dos curadores.

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"FERNANDO PESSOA, PLURAL COMO O UNIVERSO"

Quando: de 24 de agosto a 30 de janeiro de 2011

Onde: Museu da Língua Portuguesa (praça da Luz, s/nº, São Paulo-SP; de terça a domingo, das 10h às 18h). Bilheteria fica aberta de terça a domingo, das 10h às 17h. Nas últimas terças-feiras de cada mês, o museu permanece aberto até 22h (a bilheteria fecha sempre uma hora antes)

Quanto: R$ 6 (pagamento somente em dinheiro). Estudantes pagam meia. Crianças com até 10 anos e idosos a partir de 60 anos não pagam ingresso, bem como professores da rede pública.

Informações: 0/xx/11/3326-0775 e site do Museu da Língua Portuguesa.


 

Mário Quintana, um Lembrete

Poesia


Só um lembrete do Quintana...



 
A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê, já passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.

Desta forma, eu digo:
Não deixe de fazer algo que gosta, devido à falta de tempo,
pois a única falta que terá,
será desse tempo que infelizmente não voltará mais.

Mário Quintana
Mário Quintana

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Quo Vadis?

Artigo Pessoal

Quo Vadis?
Clóvis Barbosa*

Barack Obama
Colin Powell
Estou particularmente seduzido pelo insight do governo pluripartidário. A lição não é nova. Barack Obama, todavia, rejuvenesceu a idéia. Reconheçamos que a iniciativa não partiu dele, mas de Colin Powell, que identificou no democrata o perfil ideal para o futuro presidente ianque. Nada demais, não fosse o fato de Powell ter sua ideologia tracejada segundo o cânon do republicanismo. Isso sem mencionar que ele ocupou o destacado cargo de secretário de estado numa administração pré-cambriana como a de George Bush. Numa palavra, Obama e Powell, pelo menos até um dia desses, eram adversários. Agora, contudo, o presidenciável já declarou que deseja contar com o general da reserva no seu governo. Mas por quê? Elementar. Porque, como ensinava o ex-presidente Abraham Lincoln, a melhor maneira de aniquilar um inimigo é transformá-lo num amigo. A história está repleta de lições nesse sentido.

Churchill
John Colville
22 de junho de 1941. Londres. Dia em que Churchill manifestou irrestrita solidariedade aos soviéticos, cujo país acabara de ser invadido por Hitler. John Colville, secretário do premiê, entretanto, assombrado com a teórica incoerência do chefe, consistente em aliar-se com os comunistas que, no passado, quis ver esganados, censurou Churchill antes de ele começar o pronunciamento pelo rádio. Diante disso, o experiente primeiro-ministro, na altura dos seus 66 anos, não poderia perder a oportunidade de dar uma lição no assessor. “Meu filho, se Hitler invadisse o inferno, eu, no mínimo, faria uma referência favorável ao diabo”. Qual a lógica de Churchill? Compor com um antigo inimigo (Stalin) para assegurar a governabilidade mundial. Ambos tinham encontrado um inimigo externo comum, que afetava interesses também comuns. Daí, a inevitabilidade da coalizão, até como garantia de manutenção da paz pós-guerra.

Josef Stalin
Adolf Hitler
A chave do poder, em situações desse naipe, está consubstanciada na permanente vigília que o inimigo impõe. Mas não só. O matiz de governabilidade que busca formar um correligionário no inimigo também parte da premissa segundo a qual este apresentará mais produtividade do que aquela que seria contabilizada pelo amigo. Por quê? Porque o amigo supõe que a contrapartida que ele tem para oferecer ao governante estimado é, única e exclusivamente, a amizade. Acontece que, em política, as relações são de complexidade subliminar. Seu feixe enrijece-se na medida em que elas se aperfeiçoam, encontrando fundamento na capacidade e na competência. Malgrado a etnia os aproximasse, a aliança entre ingleses e americanos foi posterior àquela que se testemunhou entre ingleses e russos, inimigos de antanho. Naquele momento, era útil gerir a guerra com os soviéticos, que demonstrariam gratidão no futuro.

Eis a acepção da coisa. Um inimigo agraciado por sua capacidade de produzir e por sua competência em formular jamais quererá sequer passar a impressão de que perdeu tais atributos. O amigo, no entanto, que é agraciado sem que algum critério técnico acompanhe uma nomeação para um cargo qualquer, fatalmente se tornará um ingrato. Sua psique não enxerga a obrigação de provar constante fidelidade. Para ele, a fidelidade sempre esteve provada. Essa proposição, porém, não encontra respaldo antropológico. Fidelidade é algo que se prova dia-a-dia. Um inimigo congraçado por ser capaz e competente transpira serventia e indispensabilidade. Ele não jogará fora a oportunidade de manter estendido o rol de asseclas. Como preconizam Robert Greene e Joost Elffers, “guarde os amigos para a amizade, mas para o trabalho prefira os capazes e competentes”. No fundo, congraçar tão-somente amigos é desgraçar-se.


Henryk Sienkiewicz
Cristo na
 Via Appia
Prêmio Nobel de literatura em 1905, o escritor polonês Henryk Sienkiewicz (autor do festejado romance quo vadis?) atesta o quanto é temerário entregar postos de relevante vulto a amigos, simplesmente porque eles são amigos. Quer uma evidência de tal ponto-de-vista? Imagine o leitor que está na Roma governada por Nero. O único pilar vivo do cristianismo é Pedro, a quem Cristo chamou de pedra angular da sua igreja. A matança de cristãos no obelisco do circo de Nero leva o psicopata ao êxtase. Pedro, de personalidade sempre oscilante (já havia negado o mestre três vezes no passado), resolve fugir da cidade. Já na via appia, tem uma visão. Cristo, carregando sua cruz, caminha em direção a Roma. Assim, Pedro, aturdido, indaga o rabi: “quo vadis, domine?” (aonde vais, senhor?). Jesus, de acordo com sermão de Santo Ambrósio, responde: “venio iterum crucifigi” (venho ser novamente crucificado).

Voltaire
A rigor, Cristo quis dizer algo do tipo: “já que não pude contar com o único amigo que tinha para apascentar meu rebanho, vim eu mesmo”. Envergonhado, Pedro voltou. Diz a patrística que foi crucificado de cabeça para baixo. Por outro lado, Paulo (talvez o maior inimigo que o cristianismo já teve) após converter-se nunca temeu a morte e jamais fugiu dela. Por isso, foi chamado apóstolo das nações, escolhido a dedo por Jesus para difundir seus ensinamentos. Um inimigo que se tornou o maior de todos os aliados, porquanto fosse capaz e competente. São Pedro que me perdoe, mas não abrirei mão da tese. Quando nos depararmos com um oponente talentoso, devemos perguntar-lhe: “quo vadis?” e trazê-lo para o nosso lado. Coligar-se com quem digladiávamos é usar o aço da espada na armadura. Por conseguinte, faço minhas as palavras de Voltaire: “Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”.

• Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 26 e 27 de outubro de 2008, Caderno B, p. 6.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A Vitória de Orwell, de Christopher Hitchens

O que estou lendo?


A Vitória de Orwell
Autor – Christopher Hitchens
Editora Companhia das Letras - 204 páginas



Contra-Capa

George Orwell
Detentor de um impecável currículo de pensador militante, George Orwell – pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-50), nascido na índia, filho de um funcionário colonial com ascendência aristocrática – continua a mobilizar nas páginas da crítica paixões de inimigos e admiradores. Entretanto, os milhões de leitores de seus célebres romances, traduzidos para dezenas de idiomas, ainda passam ao largo da maior parte da produção escrita do autor, que compreende textos autobiográficos, ensaios, poemas e panfletos políticos.

Ofuscados pela justificada notoriedade do universo distópico de 1984 e da alegoria política de A revolução dos bichos, aspectos centrais do pensamento orwelliano permanecem negligenciados – ou, na pior das hipóteses, prestando-se a interpretações tendenciosas por parte dos seus adversários. Christopher Hitchens, entusiasta confesso da profunda coerência ideológica de Orwell, refuta as mitologias criadas em torno do escritor britânico para delinear um perfil fidedigno do defensor incondicional da autodeterminação dos povos e critico implacável dos totalitarismos que dominaram a história do século XX. A movimentada biografia do jovem egresso de uma escola tradicional que optou pela vida no submundo proletário da França e da Inglaterra, passando pela traumática experiência de combate ao lado das forças republicanas da Espanha, entre 1936 e 1937, é examinada por meio da análise de trechos significativos da correspondência e de escritos pessoais. Paralelamente, uma arguta leitura das ficções, ensaios e intervenções políticas do escritor ilumina episódios controversos ou pouco conhecidos de sua trajetória intelectual, desfazendo preconceitos que deturpam a interpretação de sua obra. Nesta verdadeira vindicação do anunciador da era do Grande Irmão, Hitchens mobiliza sua verve polemista para refutar os ataques que, à esquerda e à direita, insistem em deturpar o sentido eminentemente libertário do legado de George Orwell.

O autor
Christopher Hitchens

Christopher Hitchens nasceu em 1949, em Portsmouth, Inglaterra, e vive em Washington DC. É autor de diversos livros, colunistas, editor e crítico literário. Colabora com várias publicações, entre elas The Atlantic Monthly, Vanity Fair e Harper’s. Dele, a Companhia das Letras publicou Cartas a um jovem contestador.
 

sábado, 14 de agosto de 2010

Ao Vencedor, as Batatas

Artigo Pessoal

Ao vencedor, as batatas
Clóvis Barbosa

Churchill
A guerra. Que troço intrigante. Uns morrem nela. Outros vivem dela. O escandaloso, contudo, é que, no fim, ela acaba em paz. Se por rendição ou eliminação de quem perde, não importa. Relevante é que a guerra não dura para sempre. Pelo menos quando é travada literalmente no campo de batalha. Ali onde ela se concebe enquanto embate político, porém, pode até perpetuar-se. Nesse ponto, deve-se concordar com Churchill. “Política e guerra são igualmente excitantes e perigosas. Acontece que, na guerra, morremos uma única vez, enquanto que, na política, morremos inúmeras”, ensinava o estadista. Com efeito, esse é o inevitável problema da guerra política: saber morrer. Churchill soube. Ainda quando foi vítima de uma medonha injustiça. Isso, a rigor, é o que notavelmente distingue os fracos dos fortes. Estes aceitam a derrota, mesmo que injusta; aqueles não a querem, mesmo quando a merecem.

suástica
Clemente Attlee
Não fosse Churchill, ao invés de o estandarte de uma democracia, a suástica teria sido fincada na lua em 1969. Ou antes. Ou nunca. Mas a terra certamente vestiria uma suástica. Todavia, Churchill venceu a guerra. Pegou o bonde andando em 1940, quando sucedeu Chamberlain, em cujas mãos a Grã-Bretanha e o mundo corriam o risco de soçobrar. Após iniciais baixas, a Inglaterra, pela habilidosa batuta de Churchill, trouxe os EUA para o front. Pois bem, com a derrota da Alemanha, em 1945, o planeta retomou seu curso normal e Churchill, vitorioso, candidatou-se à recondução como premiê, na certeza de que o parlamento inglês reconheceria sua grandeza e o elegeria novamente. Coisa nenhuma. Sobreviveu à grande guerra, mas morreu (temporariamente) na política, perdendo o pleito para o trabalhista Clemente Attlee. O que fez Churchill? Xingou Attlee? Não. Digeriu a derrota e recolheu-se.

Memorias da Segunda
 Guerra Mundial
Resultado? Churchill concentrou-se na conclusão de sua monumental obra (Memórias da 2ª. Guerra Mundial), que lhe renderia o Nobel de literatura em 1953. Em suma, como soube perder, Churchill também saiu vencedor. Tanto que, em 1951, já com 76 anos, Churchill retomou o cargo de primeiro-ministro. É assim que as coisas funcionam na política. Morrem-se inúmeras vezes, mas também se ressuscita inúmeras vezes. Salvo quando a estupidez não autoriza. Estúpidos não sabem sequer administrar vitórias. Se, ao invés de ter sido o maior guerreiro de todos os tempos, Alexandre, o Grande, fosse um estúpido, a batalha de Issus poderia ter tomado itinerário diverso. Após derrotar Dario III, em 333 a.C., Alexandre, cujo exército capturara entes queridos do derrotado, deu-lhes não tratamento de reféns, mas de hóspedes. Ele não tinha em Dario um inimigo, mas um adversário. Saiu duplamente fortalecido.

Marcelo Déda
 Governador do Estado de Sergipe
Eis o arquétipo do político ideal: aquele que detém a magia de transformar derrotas em vitórias e vitórias em conquistas ainda mais memoráveis. Eis o arquétipo do político estúpido: aquele cuja débil ossatura só é capaz de projetar a engenharia do caos. Quando vencedor transforma a vitória em derrota; quando derrotado, transforma a perda em sepultamento. O estúpido, na política, não morre inúmeras vezes. Morre apenas uma. A morte política, entretanto, depende mais da perspectiva do derrotado, do que do tratamento que lhe é conferido pelo vencedor. Daí, a necessidade de encarar cada batalha apenas como uma fase do longo processo que é a biografia política. Veja-se, por exemplo, a biografia política do jovem Marcelo Déda. Perdeu algumas batalhas? Sim. Mas por que transpira um como que de invencibilidade? Porque digeriu as derrotas, capitalizando-as, a fim de, mais tarde, lucrar com elas.

Aqui, vem a calhar uma breve referência a um dos mais imponentes romances de Machado de Assis: Quincas Borba. Nessa obra, Machado introduz uma filosofia de cunho escatológico, à qual dá o nome de humanitismo. No humanitismo de Quincas Borba, há situações em que a própria vida lança seus alicerces na morte de outrem. Esse ponto-de-vista é ilustrado com a seguinte estória: imaginem-se duas tribos rivais famintas diante das quais há uma plantação de batatas. As batatas mostram-se suficientes para alimentar só uma das tribos. Se elas fizerem a paz, no sentido de comerem juntas as batatas, todos morrerão de inanição. Solução? A guerra. A morte de uma tribo viabilizará a vida da outra. Morte, nesse caso, é vida. Ao derrotado, o extermínio; ao vencedor, as batatas. O emprego irônico das batatas para recompensar o êxito demonstra o menoscabo de Ma-chado por quem despreza a vida e a dignidade alheias.

Ao vencedor, as batatas
Numa palavra, quem vê no extermínio do adversário a única saída para a sua vitória, merece como prêmio um punhado de batatas. Quando perdia, Déda atribuía a si próprio a razão da perda. Hoje, um vencedor, Déda atribui ao povo a razão das vitórias. E, mais importante, não humilha o derrotado. Por isso, não lucra tão-somente batatas nas vitórias que galga. Comemora a vitória, vibra com elas. Estupidamente, um dos derrotados no último pleito garantiu que Déda comemorou em demasia a vitória de Edvaldo, arrotando que ele só fez isso porque bebeu uma cervejinha além da conta. Interessante, Alexandre comemorava suas vitórias com vinho. Churchill, com whisky. Obviamente, uma cervejinha acompanhou a vitória esmagadora de Déda e de Edvaldo. Uma coisa é certa. Embora Quincas Borba assegure que batatas ficam para o vencedor, aqui o troféu foi outro. Ao vencedor, a cerveja; ao perdedor, as batatas.

* Publicado no Jornal da Cidade, edição de quarta-feira, 15 de outubro de 2008, Caderno B, pág. 06.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O QUE ESTOU LENDO?

O que estou lendo?

Vistos Etc.
O Judiciário sergipano nos últimos trinta anos
Autor – Pascoal Nabuco



Contra-Capa

Poucos homens públicos sergipanos, nos últimos 50 anos de história, construíram um acervo crítico como fez Pascoal Nabuco, desde que assumiu a Prefeitura Municipal de Estância, até aposentar-se como desembargador do Tribunal de Justiça do Estado.

Homem de jornal, advogado, Promotor de Justiça, Chefe do Ministério Público estadual, Secretário de Estado, magistrado e presidente do Poder Judiciário, Pascoal Nabuco valeu-se das chances de exercer o Poder, para contribuir com o debate público, fortalecendo todas as vias de avanços para a sociedade sergipana.

Pascoal Nabuco
Experiência singular como Prefeito de Estância, eleito pela legenda do Partido Trabalhista Brasileiro, deposto e preso, marcado pela intolerância nos quartéis por onde andou e cumpriu pena. O diálogo com os munícipes e a consciência ideológica que movia seu engajamento nas causas nacionais mais justas, ao lado das suas realizações administrativas, superam o transe da deposição e do isolamento. A formação jurídica supriu as aspirações da sobrevivência, abrindo caminho para a construção de uma biografia densa, lúcida, respeitável.

O nome Pascoal Nabuco está associado a diversas iniciativas que modernizaram a administração pública, notadamente pelos serviços prestados ao Ministério Público, ao Governo do Estado e ao Tribunal de Justiça, num exercício inalienável de cidadania, atestado de uma vida vocacionada e exercida coerentemente.

Tributo à Cidadania
Vistos etc. é mais que um título alegórico, é um testemunho sob a múltipla ótica de quem conheceu o judiciário sergipano como réu, como advogado, promotor de justiça, juiz e presidente do poder judiciário e é, também, um capítulo da história do judiciário sergipano, cobrindo trinta anos de experiência pessoal. O novo livro de Pascoal Nabuco desdobra a sua visão, exposta em Tributo à Cidadania (Aracaju: Gráfica Editora J. Andrade, 2006), ampliando o registro dos fatos que marcaram, de 1978 a 2008, a história do Poder Judiciário em Sergipe.

Ao lado das conquistas e avanços administrativos, das construções e instalações do aparelhamento do judiciário e da visível ampliação e melhoria na prestação jurisdicional, fixando ações de cada período das Mesas dirigentes, Pascoal Nabuco anota fatos pitorescos que ocorreram ad latere da história, o que torna o livro um documentário precioso e agradável, como um sincero testemunho, da maior utilidade como referência a servir à compreensão correta dos fatos do cotidiano do judiciário sergipano.

Por Luiz Antônio Barreto
Jornalista e Escritor, autor da
 História do Poder Judiciário em Sergipe

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Driblar a Saudade

Artigo Pessoal

Driblar a saudade
Clóvis Barbosa
Elevador Lacerda
Pablo Neruda
Dizem que saudade é a sétima palavra de mais difícil tradução. Mas também é de difícil conceituação. O que é saudade? Neruda dizia que saudade é amar um passado que ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que nos convida. Mas saudade é também lembrança de um tempo que passou e nos deixou marcas indeléveis, seja de um amor, de uma pessoa que já morreu, de um amigo querido, de lugares que vivenciamos, enfim, pode encerrar qualquer forma de sentimento emocional. Minha infância: década de 1950 e começo da de 1960. Vivia na Bahia (nenhum baiano diz que morou em Salvador; diz: eu moro na Bahia). Antes de começar a trabalhar, aos 12 anos, vivia da venda e troca de gibis, na porta do Cinema Santo Antônio, no Centro da cidade, nos sábados à tarde. Durante a semana, estudava e assistia aos treinos do Bahia (o esquadrão de aço), do Botafogo ou do Galícia (o demolidor de campeões), clubes que adotei como os meus preferidos, na ordem acima exposta.

Bahia Campeão Brasileiro
1a. Taça Brasil
As minhas tardes de domingo eram mágicas. Destino: Fonte Nova. Estádio Octávio Mangabeira. Era o Botafogo de Bacabal, Tatuí e Gerson; Valmir, Israel e Hélio I; Teco, Tango, Zague, Roliço e Fiúza. Ou era Lamarona na ponta-esquerda? E o Bahia do goleiro Lessa, do zagueiro Juvenal e daquele time extraordinário, campeão brasileiro: Nadinho, Leoni e Henrique; Flávio, Vicente e Florisvaldo; Marito, Leo, Alencar, Mário e Biriba. Não gostava do Vitória, nem do Ipiranga. Este último, cheio de jogadores violentos. Mas sabia admirar grandes jogadores adversários, como o goleiro Albertino, os zagueiros Valvir, Eloy, Medrado, Pinguela, Nelinho, Boquinha, o atacante Teotônio. Nunca me esqueço da frustração que tive quando o Bahia perdeu um campeonato para o Vitória. Teotônio, do Vitória, arrasou o meu time, mesmo de cabeça enfaixada, marcando dois gols. A Fonte Nova era uma poesia. De um lado, as torcidas frenéticas, gritando pelos seus ídolos; do outro, a magia, surgindo, no cair da tarde, do lado do dique (a lua com todo o seu esplendor).

Estádio da Fonte Nova
Zague
Vi na sua passarela grandes jogadores nas melhores fases, como Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Castilho, Pepe, Coutinho, Mengálvio, Dida, Belline, Mauro, Djalma Santos, Ademir da Guia, Vavá, Mazzola, Gilmar, Manga, Quarentinha e tantos e tantos outros. Era um tempo de emoções, mas também de incertezas no futuro. De família numerosa (13 irmãos), meu pai se estrebuchava de trabalhar num restaurante (de 6h da manhã às 23h) e minha mãe, o dia inteiro, numa máquina de costura. Os mais velhos tinham que trabalhar para ajudar nas despesas da casa. A Fonte Nova era uma válvula de escape naqueles dias de sofrimento. Pois bem, leio, no Cinform, edição de 2 a 8 de agosto de 2010, que a Fonte Nova vai ser implodida. Tem até dia e hora marcados: Domingo, 29 de agosto, 10h. Vestiários, piscinas e o Ginásio Antônio Balbino já foram demolidos. Com a demolição do Ginásio Antônio Balbino (onde participei de vários jogos da primavera) e a futura implosão da Fonte Nova, um pedaço de mim será escalpado sem dó, mas com dor.

Fernando Pessoa
Precisava saber mais. Fui ao site do jornal A Tarde para me informar sobre o adeus à Fonte Nova. Está lá escrito: “Todo o aparato terá como ápice os cerca de 20 segundos de estrepitoso estrondo, entre as detonações seqüenciadas e as estruturas do estádio indo abaixo”. Segundo, ainda, o jornal baiano, o cenário da implosão, no próximo dia 29, segue modelo de um filme hollywoodiano para as cinco horas de operação, não faltando os telões, monitoramento dos órgãos, como a Defesa Civil de Salvador, tela de proteção e corda de isolamento. No local, um novo estádio surgirá, agora sob a forma de uma moderna arena esportiva. Vai atender às exigências da FIFA para receber os jogos da Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014. Adeus Fonte Nova. Só vai ficar a saudade. Não. Não. A gente não mata saudade. Saudade é para ser sentida, curtida em toda a sua amplitude. Saudade é vida. É viver. Se todo cais é uma saudade de pedra, no dizer do grande poeta lusitano, Fernando Pessoa, o fim da Fonte Nova será um drible eterno em qualquer tentativa de definir saudade. Eles explodem. E eu silencio.

(*) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 8 e 9 de agosto de 2010, Caderno B, p. 10.

(**) Publicado no site http://www.nenoticias.com.br/, postado em 09.08.2010, às 04:00 horas.

sábado, 7 de agosto de 2010

Poema em Linha Reta

Poesia

Poema em Linha Reta



Álvaro de Campos (*)


Fernando Pessoa
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Caricatura do Poeta

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


(*) - heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1934), um dos maiores poetas de Portugal
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