Aracaju/Se,

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Direito Achado na Rua

O cobrador de impostos de Jericó,
a teoria social da ação
e o direito achado na rua



Em dezembro de 1948, a assembléia geral das nações unidas proclamou a declaração universal dos direitos humanos. Resultado das atrocidades testemunhadas na 2ª. Guerra, a declaração deu especial atenção à dignidade humana como postulado. Quarenta anos depois, o Brasil promulgaria uma constituição. A carta de outubro, como é chamada por aqui, ali no art. 1°, III, estabelece ser um dos fundamentos da república a dignidade da pessoa humana, associando a ela os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Interessante que a declaração universal dos direitos humanos, no art. XXIII, n° 1, diz que toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho, bem como à proteção contra o desemprego. Há outros direitos sociais mencionados no art. XXIII. Contudo, o art., XXV parece ser mais contundente, ao determinar que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego”. Escandaloso é que, no Brasil mais de 40 milhões de pessoas acham-se vivendo abaixo da linha de pobreza. Viver abaixo da linha de pobreza, segundo o IBGE, significa ganhar, por dia, menos do que US$ 0,25 (vinte e cinco centavos do dólar), o que equivale a perceber, mensalmente, algo na casa dos R$ 13,17 (treze reais e dezessete centavos).

Em julho de 2003, sancionou-se a lei n° 10.695, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal. Esse artigo trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a pirataria. As penas para a pirataria variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão. Como se vê, pirataria dá cadeia, malgrado muitos dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, e até alguns que vivem acima dela, façam desse ilícito uma profissão. Ora, mas quem quereria viver com um salário de R$ 0,44 (quarenta e quatro centavos) por dia? Quarenta e quatro centavos são capazes de oferecer condições justas e favoráveis de trabalho? Quarenta e quatro centavos garantem direitos sociais, como saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos? Por coisas como essas, foi que, em 1987, um ano antes da promulgação da CF de 88, intelectuais da UNB fundaram o chamado “direito achado na rua”. Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do núcleo de estudos para a paz, essa corrente teve como grande scholar o prof. Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse de uma análise da prática social, fincada no empirismo e na disputa aberta pela vitória da justiça sobre a lei. Por conseguinte, Lyra Filho consubstanciava seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos e, antes de mais nada, não-conformistas.Numa palavra, o direito achado na rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno jurídico”.                         
 
O direito achado na rua não é invenção exclusivamente nacional. Os anglo-europeus já haviam pensado o people’s law of the streeets e os franceses já tinham concebido o droit qu’on trouve dan la rue. Flexibilidade é a palavra-chave do direito achado na rua. Plagiando o próprio prof. Lyra Filho, “o direito só pode ser compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. Para ele, o direito “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem, nas normas costumeiras e legais, tanto pode gerar produtos autênticos, quanto produtos falsificados”. Produtos falsificados, para Lyra Filho, seriam, por exemplo, “as leis que representam a chancela da iniqüidade, a pretexto da consagração do direito”. Essa concepção marxista, também cognominada “humanismo dialético”, detecta na metáfora da rua (que aponta para a polis) a metamorfose da “multidão de solitários urbanos em povo”, conclamando “a rua da cidade para a vida humana”, consoante preconiza Marshall Berman, em “tudo que é sólido desmancha no ar”. Em suma, o operador do direito deve “reivindicar a rua para a vida”. A vida nasce na rua. O direito nasce na rua. O povo idealiza a rua. O povo, como Castro Alves canta: “A praça! A praça é do povo, como o céu é do condor”. De modo bem simplista, o direito achado na rua pugna por uma recriação do ordenamento, tendo nas massas seu centro gravitacional de criatividade.

A edificação de uma cidadania sócio-jurídica é a meta do direito achado na rua. O direito achado na rua ambiciona “relações de trabalho mais livres”; deseja pôr um termo na opressão que um indivíduo lança sobre outro. Disso, advêm algumas reflexões: estimativas dão conta de que aproximadamente três milhões de pessoas assistiram à versão pirata do filme “tropa de elite”. Ao invés de dar um tratamento criminal a esses indivíduos, os produtores da obra foram buscar o direito na rua e, dentro de uma concepção humanisticamente dialética, vislumbraram a alternativa de propiciar-lhes a expiação pelo “pecado” que cometeram. Abriu-se uma conta, na qual cada um dos “infratores” poderá fazer um depósito, idêntico ao valor do ingresso de cinema, o qual será revertido em favor do instituto nacional do câncer. Bela e criativa sociabilização. O fisco, entretanto, lançou mão de outra postura. Agora, no Pré-Caju, vai apreender todos os CDs e DVDs piratas que estiverem sendo comercializados no itinerário da festa, alem de enquadrar os “marginais” nos rigores da lei. Não é assim que quer o art. 184 do Código Penal? Parabéns ao fisco, que não achou o direito na rua, mas nos códigos. Não deixa de ser uma perspectiva. Nada zetética; totalmente dogmática. Os auditores, certamente, cumprirão a lei. Difícil é saber se aperfeiçoarão os ditames da justiça, em face de um povo que vive abaixo da linha de pobreza e que perscruta na rua os seus direitos.

Essa dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a bíblia (Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, Cristo hospedou-se na residência de Zaqueu, talvez um dos mais contumazes cobradores de impostos de Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o direito das suas vítimas. Em verdade, o fisco federal não extorque e tampouco acusa os cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a teoria social da ação, oriunda do gênio de Jeschech e Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí, perguntar: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando, assim, sobreviver com dignidade, como quer a declaração universal dos direitos do homem? É correto exigir conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então ministro do STJ, ao relatar o recurso especial nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica. E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”. Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de pobreza, vende um CD ou DVD pirata?

Por conta disso, é que se trata o fisco como leão. Sucede que a mesma bíblia, que apresenta um Cristo que come com cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz, assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não terem sido achadas na rua, são más. Os auditores federais, porém, embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco, também tirado da bíblia: “não fiques justo demais. Por que causar a ti mesmo a desolação?” (Eclesiastes 7,16). É suficiente a desolação de quem ganha menos do que R$ 0,44 por dia.

* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 13 e 14 de janeiro de 2008, Caderno B. página 8.

Artigo de Leonardo Boff - Teólogo

A saudade do servo na
velha diplomacia brasileira




O filósofo F. Hegel em sua Fenomenologia do Espírito analisou detalhadamente a dialética do senhor e do servo. O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo. A mesma dialética identificou Paulo Freire na relação oprimido-opressor em sua clássica obra Pedagogia do oprimido. Com humor comentou Frei Betto: "em cada cabeça de oprimido há uma placa virtual que diz: hospedaria de opressor". Quer dizer, o opressor hospeda em si oprimido e é exatamente isso que o faz oprimido. A libertação se realiza quando o oprimido extrojeta o opressor e ai começa então uma nova história na qual não haverá mais oprimido e opressor mas o cidadão livre.

Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em "suicídio diplomático"(24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais:"Sucursal do Império", pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, tem seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.

As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.

O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência, mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições .

O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.

A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula.

(Leonardo Boff é teólogo).





quinta-feira, 27 de maio de 2010

Uma Sentença Inusitada - "Baba Baby"


Numa decisão que obriga a Unimed Cuiabá a prover toda a assistência e disponibilizar os medicamentos necessários ao atendimento de uma paciente que está acometida de "carcinoma ductal invasivo", um juiz da capital de Mato Grosso inovou. Depois de criticar a cooperativa médica, porque ela considera que "mais importante do que a vida da cliente é gastar o quanto menos com o seu tratamento", o magistrado Luiz Carlos da Costa - atuando em regime de plantão - compara que para os dirigentes da Unimed, "a Carta Magna simplesmente cantarola".
          
A seguir, o magistrado usa a íntegra da letra da música "Baba Baby" que - gravada pela cantora Kelly Key - chegou a fazer algum sucesso na programação musical de algumas emissoras de rádio. A música na sentença induz que a UNIMED faz tudo para seduzir. Ao estabelecer, também, multa diária de R$ 5.000,00 para o caso de eventual descumprimento à ordem judicial, o magistrado Luiz Carlos Costa refere que "não compete à Unimed escolher o tratamento menos oneroso para ela, mas sim o ótimo para a cliente: aquele que confere maior probabilidade de cura, com menor sofrimento físico e mental e com melhor prognóstico de não recidiva da doença".

Avalia o magistrado estar diante de caso de "manifesta ofensa à Constituição da República Federativa do Brasil". E lembrando-se de Ulysses Guimarães, o juiz evoca uma frase do político: "na vida vi coisa que até Deus duvida - e ultimamente estou a presenciar coisa que o diabo olha e diz: me inclua fora dessa!".
                          


No fecho, numa digressão poética, o juiz registra que entende o sofrimento da paciente: "soma-se ao sofrimento do corpo a angústia da alma"

Leia a íntegra da decisão

"Defiro justiça gratuita.
Vote, cruz credo! Para a UNIMED CUIABÁ mais importante do que a vida da cliente Rúbia é gastar o quanto menos com o seu tratamento. Ainda bem que se vive em um País regido por uma Constituição que não dá bola para lei, contrato, resolução e demais sepulcros caiados (bonitos por fora, pobres na essência) que ousem desrespeitá-la, naquilo que ela tem de mais sagrado: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), base e fundamento de uma sociedade que tem a justiça e a igualdade como valores supremos (Preâmbulo). Para eles, a Carta Magna simplesmente cantarola.

'Você não acreditou
Você nem me olhou
Disse que eu era muito
nova pra você
Mas agora que cresci você quer me namorar
Você não acreditou
Você sequer notou
Disse que eu era muito
nova pra você
Mas agora que cresci você quer me namorar
Não vou acreditar nesse falso amor
Que só quer me iludir me enganar
isso é caô
E pra não dizer que eu sou ruim
Vou deixar você me olhar
Só olhar, só olhar, baba
Baby, baba
Olha o que perdeu
Baba, criança cresceu
Bom, bem feito pra você, é,
agora eu sou mais eu
Isso é pra você aprender a nunca mais me esnobar
Baba baby, baby, baba, baba
Baby, baba
Olha o que perdeu
Baba, criança cresceu
Bom, bem feito pra você, é,
agora eu sou mais eu
Isso é pra você aprender
a nunca mais me esnobar
Baba baby, baby, baba, baba'
(Kelly Key , Baba).
 
Ora, não compete à ré escolher o tratamento menos oneroso para ela, mas sim o ótimo para a cliente: aquele que confere maior probabilidade de cura, com menor sofrimento físico e mental e com melhor prognóstico de não recidiva da doença. Portanto, por manifesta ofensa à Constituição da República Federativa do Brasil, a pretensão da ré de obstar tratamento que se apresenta, segundo a ótica da boa prática médica, o mais indicado, deve ser rechaçada à altura de sua insolência. Aliás, Ulysses Guimarães, de saudosa memória, certa vez declarou: na vida vi coisa que até Deus duvida. Ultimamente estou a presenciar coisa que o diabo olha e diz: me inclua fora dessa! Isso eu, decididamente, não faço. A insensibilidade pretende ser alçada à condição de virtude.

O incêndio (não fumaça) do bom direito está a iluminar a pretensão da autora. A possibilidade de dano irreparável é patente, posto que, se não receber o tratamento adequado, - não aquele que consulta ao interesse econômico da ré – a chance dela continuar neste plano de existência diminuiria a cada dia. Soma-se ao sofrimento do corpo a angústia da alma.

Estas as razões por que antecipo os efeitos da tutela para determinar a ré, sob a cominação de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) “prover à autora o tratamento indicado por seus médicos (...) AC-TH, nos moldes dos relatórios (...) fornecidos pelo Dr. Fernando Sabino (...)” e todos os medicamentos e procedimentos receitados e recomendados pelos médicos que prestam a ela assistência.

Expeça o necessário. Cite. Notifique. Intimem.
Luiz Carlos da Costa
juiz plantonista"

A cabeça de João Batista

O caso sullivan, a actual malice
e a cabeça de João Batista



Muitos sabem que João Batista foi decapitado por ordem de Herodes. Poucos, contudo, conhecem o motivo da execução. Muitos sabem que a morte de João está associada a um juramento que o governante fez para a sua sobrinha. Muitos também sabem que esse juramento decorreu do estertor concupiscente de Herodes em ver a moça bailando para ele. Todos, afinal, sabem que, em troca do espetáculo, a inescrupulosa dançarina pediu a cabeça do profeta numa travessa. Mas o porquê da solicitação é que vem a ser enigmático para um sem número de pessoas. A rigor, João foi morto porque teria cometido um delito de opinião. Na verdade, João acusava Herodes de manter uma relação adulterina com a esposa de seu irmão, Filipe. Por isso, foi detido. Herodes, entretanto, com receio de causar um tumulto entre os seguidores do prisioneiro, manteve-o vivo. Isso até a dança de Salomé. E Herodes, embevecido pelo vinho, sobrepujado pela tacanhice de sua promessa, mandou fazer o que, em princípio, não desejava: extirpar não só a língua, mas a cabeça de João.

Muitos também são os que sabem que o pastor Martin Luther King Jr. foi assassinado em 1968 por segregacionistas do sul estadunidense por causa do que pensava. Poucos, porém, sabem que o ativista social foi a pessoa mais jovem a ganhar o nobel da paz (35 anos). Muitos sabem que Luther King proferiu um dos mais famosos discursos da história, em março de 1963, junto ao memorial Lincoln: I have a dream. Poucos, todavia, sabem que a liberdade de imprensa, conforme formatada hoje no direito norte-americano, com repercussão mundial, deve muito a esse mártir. Por conta dele, veio à tona o caso new york times Co. v. sullivan, de 1964, cujo desfecho acha no nome de Luther King especial tonalidade. Com efeito, Luther King era pastor da igreja batista, em Montgomery, Alabama. Lá pelos idos de 1960, quando o clima entre brancos e negros exigia filtro solar, em razão de sangrentas disputas raciais (a isso associada uma série de manifestações em defesa dos direitos civis), estudantes do Alabama acabaram por tomar uma sova da polícia local.

Tudo se deu em torno de uma passeata organizada por discentes negros que defendiam igualdade e respeito pelas liberdades públicas no sul dos EUA, historicamente marcado pela intolerância contra os afro-descendentes. De fato, a polícia repeliu os integrantes da passeata, mas não há registros de que a ação policial tenha sido irascível. Sucede que o new york times, em 29 de março de 60, publicou uma matéria que expunha o fato de maneira um tanto quanto fora de foco. Segundo o jornal, os policiais lançaram uma onda de terror sobre os estudantes, acrescentando que a universidade do Alabama havia sido cercada por um forte aparato, que desceu o sarrafo. Não satisfeito, o jornal ainda declarou que aqueles mesmos policiais tinham bombardeado a casa do pastor Martin Luther King, prendendo-o e torturando-o. Algo grave. Mas não muito compatível com a realidade, pois Luther King não tinha sido preso e tampouco torturado. Desse modo, o chefe de polícia do Alabama, L. B. Sullivan, ajuizou uma ação contra o new york times, pleiteando uma indenização.

No primeiro grau, Sullivan conseguiu que o new york times fosse condenado em 500 mil dólares, condenação sustentada pelo tribunal de justiça estadual. Todavia, na suprema corte as coisas mudaram. Por quê? Por conta da interpretação que por lá foi atribuída à emenda nº 1 da constituição americana: “O congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos”. A constituição brasileira, no art. 5º, IV, estabelece ser “livre a manifestação do pensamento”. Todavia, o ordenamento jurídico nacional, ao contrário do americano, editou uma lei de imprensa, ainda na ditadura, que trouxe reflexos criminais para abusos na expressão do pensamento. Diferentemente da ordem pátria, os regramentos jurídicos do sistema norte-americano (common law) dependem substancialmente da interpretação que lhes é dada pela suprema corte, em pontos constitucionais.

Assim, a liberdade de imprensa, nos Estados Unidos, desamarrou-se do common law, adentrando exclusivamente nas entranhas do constitutional law. Numa palavra, a liberdade de imprensa, nos EUA, foi erigida a dogma essencialmente constitucional. Diversamente, no Brasil, ainda se depende da interpretação que o STJ dá à lei 5.250/67, antes de a questão bater às portas do STF, guardião da constituição. De qualquer forma, a decisão sullivan inaugurou uma concepção da liberdade de imprensa, ali onde eventuais ofensas fossem irrogadas contra homens públicos, a exemplo do chefe de polícia do Alabama. Segundo a suprema corte americana, homens públicos (public officials), quando estivessem exercendo seu múnus público (official conduct), só fariam jus a uma indenização se quem os ofendesse o fizesse com actual malice, ou seja, com certeza absoluta de que a acusação era falsa. Na dúvida acerca da veracidade da acusação, a imprensa teria o direito de acusar, ainda que pudesse incorrer em erro. Seria o preço a pagar pelo exercício de uma atividade pública. Portanto, se o servidor público não demonstrasse com total clareza (convincing clarity) que a imprensa sabia da falsidade da acusação, paciência. In dubio, acuse-se o agente público.
  
Por conseguinte, seria necessário provar, no judiciário, que a imprensa atuou com inequívoco conhecimento da falsidade da acusação (knowledge of falsity). Em 1996, por exemplo, a cinematografia hollywoodiana, através da lente de Milos Forman, abraçou a teoria da actual malice no filme People vs. Larry Flynt. No Brasil, se o judiciário não abraça a teoria, o que dizer do cinema. Malgrado tudo isso, decisões jurisprudenciais brasileiras têm dado cobro à tese que a espanhola Matilde Zavala de Gonzalez esboçou: doutrina da proteção débil dos agentes públicos (menos corajosa do que a actual malice). Para a catedrática ibérica, homens públicos merecem uma tutela mais flébil, pois se colocaram em situação de plena fiscalização, mexendo com interesses gerais, a exemplo do erário. Matilde trabalha inclusive com a possibilidade de aceitar críticas que pareçam injustas. Muito pouco para um sistema que quer, efetivamente, erradicar a censura da imprensa. Nisso, a actual malice se sobressai: os homens públicos devem aceitar críticas injustas e até mentirosas, desde que, obviamente, a imprensa não esteja na seara do desprezo pela verdade (reckless disregard).

Karl Marx, no texto “o papel da imprensa como crítica de funcionários governamentais”, pretexta que “a função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Marx insiste que “não basta combater as condições gerais e as altas autoridades. A imprensa precisa decidir entrar na liça contra este policial em particular, este procurador, este administrador municipal”. Isso refletiu no pensamento de Guilherme Döring: “O homem público deve ser forte o suficiente para arrostar críticas.” Se o homem público não agüenta pauladas da imprensa, saia da vida pública. Esse, o espírito da primeira emenda. Esse, o espírito que o art. 5º, IV, da CF deveria aspergir. O problema é que certos agentes públicos enxergam tão alto como animais rastejantes. Para eles, não interessa uma imprensa livre. Para eles não interessa uma imprensa forte. Para eles, interessa arrancar a cabeça de quem dá corpo a uma idéia. Para essa corja, que perde a tranqüilidade quando a imprensa ascende, ficam os ensinamentos da filosofia nietzschiana: “quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.

* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 6 e 7 de janeiro de 2008, Caderno B. p. 8.


terça-feira, 25 de maio de 2010

A Greve de Fome de Dom Cappio

A Feiticeira de Endor, as Águas do Rio Eufrates
e a Greve de Fome de Dom Cappio


Não se chantageiam os deuses. A divindade até que sucumbe diante do diálogo; jamais, diante da chantagem. Dialogar é um mecanismo da religião; chantagear, da magia. Max Weber traça um panorama através do qual a sociologia tenta demarcar a tênue distinção entre magia e religião. A magia, consoante Weber, vale-se da chantagem para forçar os deuses a atender à imposição do mago. A religião, por outro lado, lança mão da dialética, da oração, instrumento por intermédio do qual o religioso recorre aos deuses, no sentido de ver sua súplica atendida. Enquanto o religioso pede, o feiticeiro ordena. Em seu estudo “sociologia da religião”, delineado na obra “economia e sociedade”, Max Weber explica que a evolução da magia para a religião passa pelo abandono da “coerção divina”, abrindo espaço para o “serviço divino”. O mago coage os deuses. O religioso serve aos deuses. O ritual do mago traduz-se com elementos de ameaça e de arrogância; o do religioso, com a liturgia do pedido e da humildade.

Weber sinaliza, ademais, para outro abismo, que separa a fé religiosa da prepotência mística, prelecionando que o enfrentamento lúdico dos deuses, na magia, sucumbe em face do aparecimento da “visão ético-religiosa do mundo”. O feiticeiro invoca um deus e lhe dá uma ordem, em troca de oferendas. O religioso clama por um deus, pedindo-lhe algo na esperança de ser atendido pelo ensaio da fé. Feiticeiros e magos não entendem de fé. A fé transita pelo campo do diálogo, como preconizou o messias: “pedi e vos será dado” (Mt 7,7). Intrigante. Dois dos mais proeminentes reis judeus caíram na armadilha da chantagem e da feitiçaria, enquanto que um dos piores pôde lavar sua biografia, no fim da vida, com as águas do arrependimento, da oração, da súplica e da submissão. Trata-se de Davi, Saul e Manassés, respectivamente. Davi chantageou seu deus com uma greve de fome. Saul procurou uma feiticeira, a fim de que se lhe garantisse a vitória sobre os filisteus. Manassés, preso em Babilônia, humilhou-se e venceu.



História de Davi: após ter estuprado Betsabéia, recebendo a informação de que ela estaria grávida de um filho seu, o monarca arquitetou a morte de seu esposo, Urias, o qual compunha o exército de Israel em uma violenta batalha contra os amonitas. Com o assassinato de Urias, Iahweh, deus dos hebreus, mandou que o profeta Natã lançasse uma maldição sobre o rei. Dentre os vários castigos que Davi receberia, o pior de todos seria a morte do garotinho ao qual Betsabéia daria à luz. O que fez Davi diante disso? Humilhou-se? Não. Chantageou seu deus, no sentido de dissuadi-lo de levar o menino embora. Como? Com uma greve de fome. Ficou sete dias sem nada comer, prostrado no chão, fazendo da serapilheira sua vestimenta. A chantagem de Davi, contudo, não comoveu a divindade. É que, como já se afirmou, não se chantageiam os deuses. O garoto morreu. E Davi teve o resto dos seus dias carimbado pelo diapasão da catástrofe familiar e institucional. O rei que desafia os deuses, normalmente destrói sua família e seu governo.

Com Saul não foi diferente. Abandonou a ética judaica, que repelia toda e qualquer prática de sortilégio e resolveu ir à procura de uma prognosticadora de eventos: a feiticeira de Endor. Determinou à bruxa que ela mandasse ao espírito de Samuel que subisse do vale dos mortos para lhe dar um alento acerca das batalhas que vinha per-dendo. Samuel compareceu; o alento, porém, não. A entidade enunciou a Saul que, em breve, ele lhe faria companhia. Saul caiu em desespero. O que fez? Engraçado. Recusou-se a comer. Foi necessário que a feiticeira o persuadisse a alimentar-se. Que ironia. Dias depois, Saul viu-se obrigado a praticar suicídio diante da derrota acachapante dada na batalha de Gelboé. É, parece que a trilha dos chantagistas é sempre a mesma: feitiçaria, extorsão contra os deuses, desprezo e repúdio da divindade e, finalmente, morte. Com Manassés, para quem tudo deveria ter dado errado, a história foi outra.

História de Manassés: Manassés era filho do rei Ezequias. Foi o 14º rei em Jerusalém. Fez coisas terríveis aos olhos do seu deus. Conseqüência: foi subjugado pelo governante da Assíria e levado cativo para Babilônia, onde ficou encarcerado, pagando tributos a Assurbanipal. O que fez? Greve de fome? Não. Por incrível que pareça, dialogou com seu deus. O diálogo é sempre o caminho do êxito. Quem dialoga vence; quem monologa perde. Manassés humilhou-se, orou, suplicou e foi atendido. Mas enquanto estava preso, comia normalmente. Retomando Max Weber, os feiticeiros desejam colocar os deuses no plano da subordinação, enquanto que o discurso ético dos religiosos aponta para um quadro em que o mandamento divino deve ser obedecido. O religioso busca o seu deus como refúgio; o feiticeiro busca um deus como capacho. Segundo Weber, a magia vislumbra a racionalidade dos fins. Numa palavra, o feiticeiro sempre quer um ganho, um plus. Há uma mais-valia na “conquista” dos deuses. O religioso, por outro lado, não quer capitalizar com sua fé.

Diante disso, vê-se que a ausência de discurso de dom Cappio é típica não dos religiosos, mas dos feiticeiros. Geddel Vieira Lima, em entrevista dada ao portal terra, declarou que o “religioso” não queria debater, finalizando que sua postura é antidemocrática. Tudo certo. Menos o adjetivo “religioso”. Religiosos debatem. Raymond Aron, em “etapas do pensamento sociológico”, explica que, para Weber, o religioso é um pacifista. Nessa esteira, Weber preconiza que “o pacifista ideal se recusa a tomar armas, a responder à violência com a violência”. Se, na concepção de dom Cappio, a transposição do São Francisco é um ato de violência do governo, não lhe caberia, como religioso, responder com outro ato de violência: uma greve de fome. Isso, sociologicamente, é um conjuro. Foge ao diálogo. Traz as cores de quem quer submeter os deuses. É postura de feiticeiro. A transposição do rio é um ato de estado. Certo ou errado, esse ato deve ser apoiado ou combatido pelas vias do diálogo, nunca da coerção moral.

Dom Cappio também deve ter lido Max Weber. No entanto, leu de cabeça para baixo. Weber, de fato, certa vez disse: “exagerar é a minha profissão”. Só que o exagero de Weber se materializava na intensidade vibrante de seu discurso; o de dom Cappio, na intensidade chocante de seu conjuro. O mundo de dom Cappio ora é escatológico, ora é fictício. A escatologia talvez diga respeito à fé. Bem, com sua fé ele faz o que quiser. O apocalipse (16,12) narra o episódio do sexto anjo que derramou a taça do furor de Deus nas águas do Eufrates, “e a água do rio secou, abrindo caminho aos reis do oriente”. Se dom Cappio acredita que um anjo vai derramar a taça do furor de Deus no São Francisco, paciência. Mas ele deveria argumentar com o anjo e não compeli-lo com greve de fome. Aí, dom Cappio adentrou no mundo da ficção. Uma ficção horrenda. Tão horrenda como uma greve de fome. O universo de dom Cappio concebe o futuro conforme a perspectiva ditatorial que George Orwell expôs no romance “1984”: “se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre”. Dom Cappio, com sua greve de fome, quis colocar uma bota no rosto dos deuses. Por isso, perdeu.

(Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 30 e 31 de dezembro de 2007, Caderno B, p. 7.)

sábado, 22 de maio de 2010

Perdas e Danos - Gozação a Time de Futebol

Curiosidades

UMA SENTENÇA INUSITADA

A perda do título da Taça Libertadores trouxe dor de cabeça extra a um torcedor do Fluminense. Depois de se sentir ofendido com duas edições de um jornal carioca que ironizava o fracasso do Tricolor, ele entrou com uma ação na Justiça alegando danos morais, propaganda enganosa e pedindo retratação. No entanto, o despacho do juiz José de Arimatéia Beserra Macedo não apenas julgou improcedente o pedido, como também deu uma resposta bem humorada e sarcástica à solicitação. O torcedor reclamante teve de arcar com os custos do processo.

- A pretensão é tão absurda que para afastá-la, a sentença precisaria apenas de uma frase: "Meu Deus, a que ponto nós chegamos??!!!", ou "Eu não acredito!!!" ou uma simples grunhido: "hum, hum", seguido do dispositivo de improcedência – redige o magistrado

A primeira matéria que incomodou o tricolor foi publicada na quinta-feira, 4 de julho, horas depois de o Flu perder o decisão para a LDU. Nela, o jornal ironizou a derrota com uma foto do Renato Gaúcho e o seguinte título: “Eu acredito em Duendes, em Coelhinho da Páscoa...”.

Na sexta-feira, a chamada era a seguinte: “Grátis: pôster do Flu rumo ao Mundial”. Dentro do jornal, a fotomontagem colocava os atletas do Fluminense correndo em direção a um supermercado carioca cujo nome é Mundial.

- As matérias, no entanto, são apenas publicações das diversas gozações perpetradas pelas demais torcidas do Estado em razão da derrota do time do reclamante. Tais gozações são normais, esperadas e certas de vir sempre que um time perde qualquer partida, quanto mais um título importante que o técnico, jogadores e torcedores afirmavam certo e não veio – justifica o juiz em seu texto.


Confira a íntegra da sentença:


“Primeiro registro que é absolutamente incrível que o Estado seja colocado a trabalhar e gastar dinheiro com uma demanda como a presente, mas... ossos do ofício! Ressalto, desde já, estarem presentes todos os pressupostos de regular desenvolvimento do processo e as condições para o legítimo exercício da ação. O autor é capaz e está bem representado, o juízo é competente e a demanda está regularmente formada.

As partes são legítimas, há interesse de agir, já que a medida é útil na medida em que trará benefício ao autor, necessária, já que sem a intervenção judicial não poderia ser alcançado o que se pede, e o pedido, por sua vez, é juridicamente possível, tratando-se de compensação por dano moral e pedido de retratação. O que não existe nem de longe é direito a proteger a absurda pretensão do reclamante. A questão é de direito e de mérito e assim será resolvida evitando-se maiores delongas com esse desperdício de tempo e dinheiro do Estado.

O reclamante, cujo time foi derrotado na final da Libertadores, sentiu-se ofendido com matérias publicadas pelo jornal reclamado, que, segundo ele, ridicularizavam os torcedores, incitavam a violência e traziam propaganda enganosa. As matérias, no entanto, são apenas publicações das diversas gozações perpetradas pelas demais torcidas do Estado em razão da derrota do time do reclamante. Tais gozações são normais, esperadas e certas de vir sempre que um time perde qualquer partida, quanto mais um título importante que o técnico, jogadores e torcedores afirmavam certo e não veio. Mais. As gozações são inerentes à existência do futebol, de modo que sem elas este não existiria porque muito de sua graça estaria perdida se um torcedor não pudesse debochar livremente dos outros.

É certo que o reclamante "zoou" os torcedores de outros times da cidade em razão de derrotas vergonhosas na mesma competição em que seu time foi derrotado, em razão de um dirigente fanfarrão ou em razão de uma choradeira com renúncia, e nem por isso pode o mesmo ser processado. Ressalto que se o reclamante viu tudo isso e ficou quietinho, sem mangar de ninguém e sem se acabar de rir, – não ficou, mas utilizo-me dessa (im)possibilidade para aumentar a argumentação – deve procurar outros esportes para torcer, porque futebol sem deboche não dá!

Ainda que a matéria fosse elaborada pelo jornal reclamado, é possível à linha editorial ter um time para o qual torcer e, em conseqüência lógica de tal fato, praticar "zoações", o que, em se tratando de futebol, é algo necessário e salutar à existência do esporte. Registro que há jornais que não só têm a linha editorial apoiando um ou outro clube, como há os que são criados pelos torcedores para, dentre outras coisas, escarnecer os rivais, o que é perfeitamente viável. Evidente, por todo o ângulo em que se olhe, que não há a menor condição de existir a mínima lesão que seja a qualquer bem da personalidade do reclamante. "Zoação" é algo inerente a qualquer um que escolha torcer por um time de futebol e vem junto com a escolha deste. O aborrecimento decorrente do deboche alheio é inerente à escolha de uma equipe para torcer e, portanto, não gera dano moral, ainda que uma pessoa, por excesso de sensibilidade, se sinta ofendida e ridicularizada.


Continua o reclamante na sua petição afirmando que o reclamado incita a violência com sua conduta. É engraçado, porque o próprio reclamante afirma que teve que dar explicações à diretoria de seu local de trabalho em razão de desavenças com seus colegas. A inicial não é clara neste ponto, mas se houve briga em razão do reclamante não aceitar as gozações fica ainda mais evidente que o mesmo deve escolher outro esporte para emprestar sua torcida, porque, como já dito, futebol sem deboche, não dá! E o que é pior! O reclamante, se brigou, discutiu ou se desentendeu foi porque quis, porque é de sua vontade e de sua índole e não porque houve uma publicação em jornal. Em momento algum o jornal sugere que haja briga, o que só ocorre em razão de eventual intolerância de quem briga, discute ou se desentende.


Por fim, o argumento mais surreal! A propaganda enganosa! Chega a ser inacreditável, mas o reclamante afirma que houve propaganda enganosa porque na capa do jornal há um chamado dizendo existir um pôster do seu time rumo ao mundial, mas no interior a página está com "uma foto com os jogadores (...) indo em direção a uma rede de supermercados". Ora, e a que outro mundial o time do reclamante poderia ir se perdeu o título da Libertadores? Qualquer um que leia a reportagem, inclusive toda a torcida de tal time e em especial o reclamante, sabe, por óbvio, que jamais poderia existir foto da equipe indo à disputa do título mundial no Japão, porque isso nunca ocorreu. A pretensão é tão absurda que para afastá-la a sentença precisaria apenas de uma frase: "Meu Deus, a que ponto nós chegamos??!!!", ou "Eu não acredito!!!" ou uma simples grunhido: "hum, hum", seguido do dispositivo de improcedência.

É difícil encontrar nos livros de direito um conceito preciso do que seria uma lide temerária, mas esta, caso chegue ao conhecimento de algum doutrinador, será utilizada como exemplo clássico para ajudar na conceituação. O reclamante é litigante de má-fé por formular pretensão destituída de qualquer fundamento, utilizar-se do processo para conseguir objetivo ilegal, qual seja, ser compensado por dano inexistente, além de proceder de modo temerário ao ajuizar ação sabendo que não tem razão e cuja vitória jamais, em tempo algum, poderá alcançar.

Isto posto, julgo improcedente o pedido.

Condeno o reclamante como litigante de má-fé ao pagamento das custas, nos termos do caput do artigo 55 da Lei 9.099/95.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Após as formalidades legais, dê-se baixa e arquivem-se.
Rio de Janeiro-RJ, 31 de julho de 2008.
José de Arimatéia Beserra Macedo
Juiz de Direito"

TRANSCRITO DA GLOBO.COM

Os Portões da OAB.

Artigos Pessoais

Os portões da OAB, a escadaria de Odessa
e a actio libera in causa


Cinco anos distanciam o “Encouraçado Potemkin” da OAB. Gravada em 1925, a obra de Eisenstein retrata a rebelião de marinheiros russos aos quais ofereceu-se comida estragada. Tudo se deu em 1905, quando um cachaceiro governava a Rússia: o czar Nicolau II. Atracado no Mar Negro, mais precisamente na Baía do Tendra, o encouraçado protagonizou a gênese de uma série de rebeliões que resultaria na Revolução Russa de 17. Vinculada à revolta dos militares soviéticos, estava a insatisfação das massas, que, também em 1905, encaminharam-se até o Palácio de Inverno de Nicolau, sob o comando de um sacerdote (o padre Gapone), no sentido de entregar ao monarca um como que de manifesto, reclamando a observância de direitos civis, a exemplo da jornada de trabalho, sufrágio universal, salário mínimo etc. A passeata contou com algo em torno de duzentas mil pessoas. Termo da passeata: mais de noventa mortos, entre homens, mulheres e crianças. A lente de Eisenstein fotografou o massacre dos populares, que se eternizou como “domingo sangrento”, dando notada ênfase à cena da “escadaria de Odessa”, tocante principalmente pelo fuzilamento de duas mães, uma das quais conduzia um carrinho de bebê. Em “Os Intocáveis” (1987), Brian DePalma tentou, sem êxito, imitar Eisenstein, na cena da mãe que larga o carrinho com o neném. De qualquer maneira, entre ambas as obras cinematográficas imperam duas tênues similitudes: em primeiro lugar, os intocáveis combatiam o crime; o povo de Odessa, o totalitarismo, que não deixa de ser um ilícito. Em segundo lugar, os intocáveis enfrentavam Al Capone, mafioso que vendia cachaça durante a lei seca, instituída pela 18ª emenda à constituição americana; o povo de Odessa, o despotismo, não de um contrabandista de cachaça, mas de um autêntico cachaceiro. E, como todo cachaceiro, pusilânime quando sóbrio, mas valente quando ébrio.
         
          A escadaria de Odessa
                          
Em 1930, foi criada a OAB, cujo rito histórico não tinha nada a ver com cachaça. Isso, até 7 de dezembro último, data da consulta pública aos advogados sergipanos, realizada a fim de que fosse concretizada a lista sêxtupla com os candidatos à vaga de desembargador do Tribunal de Justiça. Engraçado. A OAB até que teve sua biografia estilhaçada por bombas. Que o diga agosto de 1980, quando radicais de extrema-direita enviaram uma carta-bomba à sede da Ordem, na avenida Marechal Câmara (RJ), para matar seu então presidente, Seabra Fagundes. Terminaram assassinando a secretária, Lyda Monteiro. A história de D. Lyda também não guarda qualquer sintonia com cachaça. Ela morreu lúcida. Especialmente, com lucidez cívica. De fato, civismo e civilidade não são ingredientes muito comuns aos cachaceiros. Cachaceiros, efetivamente, gostam mesmo é de cachaça. A história da cachaça é a história da bagaceira. Estudiosos afirmam que ela nunca gozou de muito prestígio. Seu consumo sempre foi ligado a escravos e miseráveis. Na Rússia de Nicolau II, um fraco, a cachaça, que por lá é chamada vodka, produz-se a partir de centeio. A cachaça brasileira vem da cana. O intrigante é que a cachaça, de tão associada que está à esculhambação, terminou por ver sua matéria-prima atrelada à noção de cadeia. Daí, dizer-se: “entrar em cana”. É, parece que cachaça é um troço do diabo. Quando Cristo se apresentou a Herodes, o governante estava cheio de “cana”, tal qual Nicolau II. Deu no que deu. Massacre na Rússia. Crucifixão em Jerusalém. Nicolau II também era anti-semita. Todo cachaceiro gosta de tachar os outros com algum epíteto depreciativo. Os nazistas, quase todos cachaceiros, referiam-se aos judeus, valendo-se do adjetivo “imundo”. Já outros cachaceiros se deliciam com o adjetivo “picareta”. Complicado saber qual o pior.

          
Sepulveda Pertence, vice-presidente à época do atentado à sede da OAB, 
em frente à mesa da funcionária Lyda Monteiro. Sepulveda estava no exercício da presidência no dia da explosão da carta-bomba.
                                                                                                                              
O cachaceiro Nicolau II mandou exterminar o povo de Odessa. Os cachaceiros alemães, que denominam a bebida como kirsch, prenderam os judeus em Ausch-witz-Birkenau, Bergen-Belsen, Dachau, Mauthausen, Treblinka etc. Os cachaceiros do 7 de dezembro trancaram Henri Clay e César Britto na OAB. Se havia advogados entre os cachaceiros, que fique claro desde logo: advogado cachaceiro não é advogado, é cachaceiro. O adjetivo é tão ultrajante que ofusca o profissional. Mas não ofusca a profissão. Se uma bomba não maculou a OAB, o que dizer de umas garrafas de cachaça. Se o massacre de Odessa não espezinhou a ideologia do povo russo, o que dizer de umas garrafas de cachaça. Se o nazismo não dizimou a nobreza do povo judeu, o que dizer de umas garrafas de cachaça. A cachaça só acaba com um tipo de gente: os cachaceiros. A cachaça é uma coisa tão miserável que o direito penal cunhou a expressão actio libera in causa para designar o estado de quem se põe bêbedo para delinqüir, na expectativa de não ser censurado. Pois bem, vai “em cana” do mesmo jeito. Em alguns casos, isso é até agravante, conforme já decidiu, em 2003, a 5ª Turma do TRF da 2ª Região, através de voto do desembargador federal Antônio Ivan Athié: “Independentemente de se cuidar aqui da famosa teoria da actio libera in causa, o que se verifica é um ato em que a própria bebida, em tese, pelo menos, não exclui a responsabilidade e nem o dolo, podendo até agravar”. Como se percebe, o direito também não gosta dos cachaceiros. A justiça não gosta dos cachaceiros. E por que, então, a OAB haveria de tolerar cachaceiros? E nem se diga que aquilo foi um ato de indignação. Não. Foi um ato de indignidade. O argumento de que a OAB deveria divulgar os votos não passa por uma análise primária, nem se levada a cabo por um cachaceiro.                              
  Sede da OAB sergipana
                              
Por exemplo, nas eleições para governador, Toeta teve a candidatura indeferida porque não se teria desincompatibilizado das atividades sindicais no momento certo. Candidatura indeferida, candidatura nula. Ainda assim, como a questão não tinha feito coisa julgada, ele pôde participar das eleições. Quantos votos Toeta teve? Ninguém sabe. Por quê? Porque sua candidatura era nula (TSE, RO 1092, Relator: Carlos Britto). Querem algo mais óbvio? A consulta aos advogados não atingiu o quorum. Consulta sem quorum, consulta nula. Nulo é o que não almeja seus objetivos. Como, pois, divulgar os votos de uma consulta nula? Mas ainda que a reivindicação fosse razoável, ela deveria ter vindo à tona com outra postura, e não com cachaça. A rigor, essa história de consulta não atende aos ditames da lei, nem aos ditames da sobriedade. Uma consulta que consegue ser afetada pelo hálito de um bando de cachaceiros não pode mesmo prosperar. Certo estava quem pretextou que desembargador não precisa de voto. Desembargador precisa de mérito. Eleição não mede mérito de ninguém. Pode até medir popularidade. Mas popularidade Hitler também teve na Alemanha, embora a História tenha comprovado que nunca exibiu méritos quaisquer. Há uma sentença latina que diz: “vinum saepe facit quod homo neque ‘bu’ neque ‘ba’ scit”, ou seja, “o vinho age de tal modo que o homem não sabe nem ‘bu’ nem ‘ba’”. Ora, se o cachaceiro não entende de “bu” e “ba”, quanto mais de OAB.
                
Bertolt Brecht, em Histórias do Sr. Keuner, preleciona que “o que é sábio no sábio é a postura”. Segundo Brecht, não interessa o objetivo daquele que não tem postura. Um cachaceiro não tem postura. Quando reivindica, fá-lo sem postura. Mal fica de pé, embora consiga chamar um colega de picareta. Mas haverá um outro escrutínio. E lá estarão os cachaceiros. Malgrado tudo isso, os cachaceiros se acham os melhores. E, citando novamente Brecht, um dia indagaram de um homem, que se achava o “melhor”, qual seria seu próximo passo. A resposta foi: “Tenho muito o que fazer. Preparo meu próximo erro”. É só esperar para ver.



01. Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 23 e 24 de dezembro de 2007, Caderno B, p. 11.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Estupro: Decisão de 1833

Curiosidades

Observação: Capadura feita a "MACETE" consiste em prender os testículos da vítima entre dois pedaços de madeira roliça e bater neles com outro porrete de madeira mais grosso (o macete) várias vezes, para esmagá-los (CB). 

As núpcias da princesa cigana.

As núpcias da princesa cigana, o julgamento de Frinéia e a valoração paralela na esfera do profano.


Nada mais extasiante do que o espetáculo de uma mulher nua. Pela nudez feminina, o rei Davi viu-se encurralado. Enquanto Israel sangrava na guerra e os soldados judeus verberavam suor, Davi meditava pela varanda de seu castelo. De lá, avistou uma jovem a banhar-se. Nua. Deliciosamente nua. A limpidez arquitetônica daquele singelo corpo o hipnotizou. O monarca, possesso, indagou quem seria tão rara espécime. Responderam tratar-se de Betsabéia, esposa de Urias, filha de Eliam. O rei, ainda assim, não se conteve. E mandou trazer-lhe a moça, embora casada, para o seu quarto, onde a estuprou. Sucede que Betsabéia engravidou e mandou dar ciência a Davi da tragédia. Ele empalideceu. A coisa piorou ainda mais com a maldição que lhe foi irrogada pelo profeta Natã. Quem quiser conhecer toda a história, que se debruce sobre os capítulos 11 e 12 do segundo livro de Samuel. Relevante, por enquanto, é reconhecer que a perdição de Davi principiou com a delirante nudez de uma mulher. E que mulher!

Mas isso foi há cerca de mil anos antes de Cristo. Todavia, de lá para cá ninguém resiste ao perfume que a nudez feminina é capaz de borrifar. Quase três mil anos depois de Davi ter sido enfeitiçado por Betsabéia, a princesa cigana Ana Maria atiçou a volúpia de outro membro da realeza desse especial povo (também conhecido sob a denominação romas): Birita Mihai. Ela, com doze anos; ele, com quinze. O episódio passou-se na Romênia em 2003. Foi um pandemônio. Gente ligada aos direitos humanos, com o apoio de uma parlamentar européia, pugnou pela anulação do casamento. O rei cigano Florin Cioaba, pai da noiva, não esmoreceu, mesmo diante dos protestos de quem bradava, durante a cerimônia: “Abaixo Birita”. Ana Maria, uma ninfa cigana de áurea exuberância, estava aos prantos. Mas teve que aceitar os desígnios da cultura dentro da qual foi gerada. Casou e, naquela mesma noite, foi desvirginada.

A imprensa dá conta de que, soberbamente, a família do nubente exibiu um lençol branco ensangüentado, comprovando que a virilidade de Birita Mihai subjugara a adolescente, a qual se viu compelida à consumação do cerimonial. Quem encontrar uma foto da princesa Ana Maria talvez compreenda a concupiscência de Birita Mihai. Ela é de uma lindeza egípcia. De uma pintura parnasiana que só os dedos de Michelangelo seriam capazes de conceber. A perfeição de Ana Maria, por si só, já absolveria Birita Mihai. O problema é que Birita não apenas teria pecado. Para muitos, ele delinqüira. Por quê? Fácil. Porque a lei romena só autoriza que garotas com mais de quinze anos tenham relações sexuais, sem ressaltar que tão-somente aquelas que exibem mais de dezesseis podem convolar núpcias. Numa palavra, Birita, em tese, estuprara Ana Maria. E, tal qual Davi, ele também teve o seu Natã: os intelectuais dos direitos humanos, que, às vezes, se esquecem de estudar direito penal.

Na época de Davi, falar em direito penal era gracejar com o pentateuco: “olho por olho; dente por dente”. Nada de humanitário nessa filosofia! Mas em pleno século XXI? Os europeus desaprenderam tudo sobre a teoria do crime? Olvidaram os blocos de composição da culpabilidade? Desprezaram o erro de proibição? Não deram sequer a mínima importância para o fato de que o vestido da noiva custou quatro mil euros! Esse pessoal, de quando em vez, extrapola os marcos da sensatez e descamba para o universo da esquizofrenia. De qualquer maneira, é salutar dar umas pinceladas na doutrina penal, a fim de que os acusadores de Birita Mihai tenham uma chance de rever esse posicionamento ordinário e moralista. Com efeito, crime é fato típico, ilícito e culpável. Os dois primeiros componentes levam em conta o comportamento reprovável; o último se concentra na reprovabilidade do sujeito.

Fato típico, integrado por conduta, resultado (nos crimes materiais), nexo causal e tipici-dade, é o encaixe da ação humana na lei penal. Assim, por exemplo, o art. 121 do código penal diz: “matar alguém”. Dessa forma, se A mata B, o fato é típico, pois se amoldou ao mandamento proibitivo contido na lei incriminadora. À perfeita subsunção dá-se a denominação tipicidade. Mas isso não significa poder prognosticar que A cometeu um crime. É que, além de típico, o fato deverá ser ilícito. Veja-se que outros dados relevantes estão sendo aqui postos de escanteio, a exemplo das teorias da conduta, buriladas ao longo de anos por cientistas do naipe de Liszt, Beling, Radbruch (causalismo), Welzel (finalismo), Jescheck e Wessels (teoria social da ação), sem falar no funcionalismo (Claus Roxin e Günter Jacobs), até porque o propósito é enfrentar a culpabilidade, acerca da qual ainda se discorrerá. Retorne-se, por conseguinte, à ilicitude, segundo bloco do comportamento criminoso. Ilícito é, genericamente, todo fato típico que vem à tona sem o pálio das excludentes, hajam vista estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.

Portanto, se A mata B, mas mata porque B queria assassiná-lo, antes e sem justa razão, A não comete crime, embora tenha aperfeiçoado um fato típico. É que A agiu em legítima defesa. Logo, seu comportamento não é ilícito. Mas não é só. Ainda há a culpabilidade. Culpabilidade é a possibilidade de impor uma censura àquele que praticou fato típico e ilícito. Várias escolas tentaram diagramar a culpabilidade: o talião, o direito romano, o bárbaro, o da Idade Média, o da modernidade (onde se destaca o nome de Beccaria), a escola clássica, a imundície que foi a escola positiva italiana, com as lengalengas de Lombroso, Ferri e Garofalo, até a atualidade, com a substancial preponderância de Mezger. Ora, três fatores, aos quais se dá a denominação de dirimentes, laboram na concepção de culpabilidade, quais sejam a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Assim, se A (maior de dezoito anos, mentalmente sadio, cônscio de que seu ato é criminoso, com o adendo de que dele podia exigir-se outra conduta) mata B, isso associado ao fato de que ele não o matou revestido de quaisquer das excludentes de ilicitude (também conhecidas como justificativas), A comete um crime: fato típico, ilícito e culpável.

Imagine-se, porém, que A não tenha a potencial consciência da ilicitude de seu ato. Por exemplo: todos sabem que, na Holanda, o uso da maconha é descriminalizado. Assim, vislumbre-se um turista holandês, que vem a Sergipe, e, na praia de Atalaia, supondo que a legislação daqui não reprime a utilização da cannabis, resolve, abertamente, dar um trago na marijuana. Ora, o fato praticado pelo holandês é típico. Também é ilícito. Mas ele não é culpável, porquanto lhe falte a potencial consciência da ilicitude. Como o ordenamento pátrio adotou a teoria limitada da culpabilidade, essa dirimente é conhecida no direito brasileiro como erro de proibição, vale dizer, uma suposição equivocada de que um dado comportamento (fumar maconha) é lícito. É o caso do príncipe cigano Birita Mihai. Por conta de sua cultura, ele e todos os que compactuaram com o casamento, não são culpáveis. A isso a ciência do direito refere-se como valoração paralela na esfera do profano. Por quê?

Ora, o profano é o não-iniciado na ciência do direito. Suas concepções sobre a ordem normativa em muito são influenciadas por questões sociais, morais, religiosas. O próprio mestre Reale categoriza que o que leva o indivíduo a cumprir a norma jurídica são os valores espirituais, morais, financeiros, culturais etc., em face dos quais ele foi moldado. Assim, o príncipe cigano não cometeu crime algum. Dentro de sua mente, desenhada na conformidade de uma cultura secular, ter relações com uma jovem de doze anos era algo absolutamente tolerável. A cátedra de Immanuel Kant, a propósito, disseca haver uma diferença ontológica entre as coisas como elas são vistas (phenomena) e as coisas como de fato elas são (noumena). Birita Mihai andou pela senda do phenomena, mesmo porque o homem, segundo ensinava o ativista político Ortega y Gasset, é ele e suas circunstâncias. A valoração paralela na esfera do profano, em síntese, isenta Birita Mihai de qualquer pena, malgrado os conservadores europeus quisessem sua cabeça. Coisa de um povo sem capacidade de amar calientemente, sem energia sensual, sem libido. Coisa de quem é oportunista na aplicação da lei penal. Todo moralista, no fundo, é um fanfarrão. Que o diga García Márquez, em “memória de minhas putas tristes”.

Para essa rapaziada, fica a lição que Olavo Bilac deu, em 1888, quando lançou o livro Sarças de Fogo. O primeiro poema dessa obra, intitulado O julgamento de Frinéia, narra a história de uma cortesã grega que foi levada ao Areópago porque estaria corrompendo a moral das famílias helênicas. O acusador, Eutias, exige a condenação de Frinéia, valendo-se de um argumento moral. Afinal de contas, todo acusador que se preze sempre apela para uma moral tão vagabunda quanto ele, a fim de que seus pontos-de-vista, quase sempre tacanhos, prosperem. Passada a acusação, o povo quer Frinéia condenada. Os juízes querem Frinéia condenada. É a vez da defesa. Fala o advogado, Hiperides, cujo timbre de voz se confunde com o sabor da liberdade. Advogados trabalham pela liberdade. Ainda assim, os espectadores permanecem irresignados. Frinéia capitulará. Desse modo, Hiperides apela para o profano. Arranca a roupa de Frinéia, deixando-a magnificamente nua. Nua e reluzente. Tão quanto Betsabéia. Tão quanto Ana Maria. E o Areópago, em apoteose, prolata uma sentença de absolvição. De fato, o profano, sabiamente, às vezes traspassa o jurídico. O argumento profano vem da cabeça do homem ponderado, do homem que enxerga o direito dentro de um sistema que consagra outros valores. O argumento profano, assim como a nudez de Frinéia, deixa a “multidão atônita e surpresa, no triunfo imortal da carne e da beleza”.

(Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 16 e 17 de dezembro de 2007, Cader-no A, p. 5. Publicado no In Consulex Online, n° 18, de 17.04.2008, com a seguinte chamada: AS NÚPCIAS DA PRINCESA CIGANA, O JULGAMENTO DE FRINÉIA E A VALORAÇÃO PARALELA NA ESFERA DO PROFANO - por Clóvis Barbosa"

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Conselheiro é condenado a 14 anos de prisão.

Notícias Juridícas

Antes de iniciar o julgamento que condenou a 14 anos de prisão em regime inicialmente fechado o ex-deputado estadual e conselheiro do Tribunal de Contas de Rondônia Natanael José da Silva, a relatora do processo na Corte Especial, ministra Eliana Calmon, ressaltou a dificuldade para se concluir um processo criminal de competência originária do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em virtude das idas e vindas de petições, requisições, cartas de ordem e outros instrumentos jurídicos. No caso em questão, a denúncia foi recebida pelo STJ em junho de 2005 e o julgamento concluído no dia 5 de maio último. Mas não são raros os casos que levam mais de uma década para serem finalizados.
                 
A conclusão da referida ação penal em “apenas cinco anos” só foi possível graças à questão de ordem suscitada pela ministra Eliana Calmon, para coibir a estratégia claramente protelatória utilizada pelo acusado, que, ao constatar que o processo havia sido incluído em pauta e encaminhava-se para o final, pediu exoneração do cargo de conselheiro do Tribunal de Contas, requereu o reconhecimento da incompetência do STJ para processar e julgar a causa e a imediata devolução dos autos ao juízo de 1º grau de Rondônia.

“Formulo esta questão de ordem por entender que a conduta do denunciado está impregnada de evidente má-fé. Entendo que o STJ tem a oportunidade para firmar, na data de hoje, entendimento sobre importante questão jurídica: quando se considera iniciado o julgamento do processo criminal, com a inclusão em pauta do feito submetido a julgamento ou somente com o efetivo início do julgamento?”, indagou a ministra.

Para Eliana Calmon, o pedido de exoneração de cargo que atribui ao réu prerrogativa de foro perante o STJ não inibe o Tribunal de exercer sua competência nos casos em que o feito criminal já tenha sido incluído em pauta de julgamento. “Manobras como esta não merecem a chancela do Poder Judiciário, sob pena de inviabilizar a prestação jurisdicional e privilegiar o interesse particular em detrimento do interesse público”, enfatizou.

Segundo a ministra, a má-fé foi tamanha que o denunciado chegou a formular o pedido de exoneração em 31/3/2010, mas pediu que este ficasse sobrestado, tendo reiterado o requerimento somente após a inclusão do feito na pauta de julgamento da Corte Especial, “demonstrando, assim, o claro propósito de protelar a aplicação da lei penal com risco evidente de prescrição de alguns delitos”. Ela ressaltou, ainda, que o pedido de exoneração sequer foi publicado no Diário Oficial do Estado de Rondônia.

Como relatora da ação e autora da questão de ordem, Eliana Calmon apresentou as seguintes razões para fundamentar sua posição pelo indeferimento do pedido de incompetência do STJ: falta de notícia nos autos da eficácia do ato de aposentação, que depende de deferimento, publicação e aprovação pelo Tribunal de Contas do estado; o pedido de aposentação chegou a ser sustado, o que foi desfeito quando infrutíferas as tentativas de adiamento deste julgamento; e, embora graves os delitos apurados, o reconhecimento da incompetência pela Corte levará à prescrição de pelo menos um ou dois dos delitos pelo decurso do tempo.

Também ressaltou que a presente ação penal sofreu todas as possíveis procrastinações por parte da defesa, que se esmerou em requerer diligências, provas complementares e arguição de nulidades, e que no sistema constitucional não é o acusado quem escolhe o juiz, já que a competência é preordenada justamente para evitar escolhas de julgadores ad hoc que possam beneficiar ou prejudicar acusados.
                  
O voto da relatora, que possibilitou a conclusão do julgamento pela Corte Especial, foi acompanhado por maioria e fechou a porta do STJ para a manobra de se renunciar tardiamente ao cargo (após o feito ter sido incluído na pauta de julgamento) como estratégia para protelar a aplicação da lei penal.

Do site do STJ. 10/05/2010 - 08h00
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