Aracaju/Se,

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Retratos da Vida

Artigo pessoal

Retratos da vida
Clóvis Barbosa
Clarice Lispector

Conta-se que em maio de 1976, o jornalista José Cas­te­llo, colaborador de O Globo, recebe a mis­são de entrevistar a escritora Clarice Lis­pec­tor, que torcia o bico para esse tipo de pedido. Mas Castello cumpriu a missão. A primeira pergunta que ele fez foi, Por que você escreve? – Vou lhe responder com outra pergunta, disse ela, - Por que você bebe água? - Por que bebo água? Porque tenho sede. Ela redarguiu, concluindo: - Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva. Era assim a nossa Clarice (1920-1977) que, embora nascida Haia Pinkhasovna Lispector, em Tchetchelnik, Ucrânia, tinha orgulho em se declarar brasileira e pernambucana. Ela escrevia para não morrer. A vida é assim. Cada qual com o seu cada qual. Eu, por exemplo, passo a vida fazendo o que gosto, e o faço para me manter, também, vivo. Gosto do meu trabalho, da minha família, dos meus amigos, de correr, caminhar e, como dizem os franceses, de flanar. Reflito, penso, falo sozinho e converso com o mar. Como é bom conversar com o mar! Quantas verdades são atiradas em nossa cara! Toda vez que experimento a dor, lembro-me de uma frase do escritor e ocultista francês Eliphas Lévi (1810-1875): “Um sofrimento é sempre uma advertência, pior para quem não sabe compreendê-la. Quando a natureza puxa a corda, é porque caminhamos ao contrário; quando ela nos castiga, é que o perigo está perto. Desgraçado então de quem não reflete!"
 
Quando meus pais faleceram, tive uma conversa comigo mesmo e cheguei à conclusão que eles foram o veículo que produziu o meu físico. Comecei a rezar e agradecê-los de forma bastante profunda e respeitosa, como o faço até hoje. Não me deixaram bens materiais, mas me deram como herança um corpo com isenção de doenças que hoje chamamos "males da civilização". Esse foi o grande presente que eles deixaram para os seus filhos. É claro que o que sofremos hoje é graças a nós mesmos, que lamentavelmente, os atraímos, muitas vezes irresponsavelmente. Mas, não podemos esquecer que a parte interior (nossa), a alma, é uma bênção de Deus. Aqui estamos para ganhar experiência e aprimorar a nossa personalidade. Portanto, “Decifra-te ou te devoram”, frase lapidar para que você possa lidar com o sentido da vida. As doenças da alma são causadas pela falta de conhecimento daquela pergunta tão necessária no nosso dia-a-dia: o que é e pra que serve a vida? Daí as experiências de história de vida que assistimos todos os dias, onde as pessoas se redescrevem e melhoram para se manterem vivas. Manoel Condez, 60, é pai de Marco Aurélio, 26, que possui seqüelas graves de paralisia cerebral. Durante os últimos quatro anos a sua rotina é dar banho no filho, pentear os seus cabelos, carregá-lo no colo até o carro e levá-lo para a faculdade de jornalismo a 17 km de onde mora. O pai assistiu a todas as aulas, anotou lições e viu o seu filho ser diplomado na semana passada na Universidade São Judas em São Paulo.      
Teresa Beatriz Veiga e sua nora

Já contei essa história em outra crônica aqui publicada: Teresa Beatriz Viega era uma quase septuagenária de semblante descaído, pernas inchadas e passos curtos. Uma sacola na mão. Antes, ela virava a madrugada à procura do seu filho pelas ruas de São Paulo. No início conversava com ele, depois deixou de achá-lo. Ele estava preso. Foi acusado de tráfico. A polícia cidadã encontrou o suposto delinquente com algumas pedras de crack. “Eu saía do serviço e vinha toda noite para cá ver João. Nem sempre o encontrava. Mas que filho não gosta de ver a mãe?” Dona Tereza permaneceu indo à Cracolândia. Não para ver o filho. Mas a barriga de Desirée, sua nora, e sonhar com o neto que estava ali. Grávida de quatro meses, Desirée, 35 anos, também era viciada em crack. “Não sei nem se esse é o nome verdadeiro dela, mas não vou abandoná-la”, sussurrava Tereza Beatriz. Dois jornalistas da Folha de S. Paulo acompanharam a procissão dos aflitos à qual Teresa se somou. Ela andou durante cerca de três horas à busca de Desirée. Achou-a numa pensão, perto da Estação da Luz. Desirée fumava crack desde os 12 anos. Achava difícil largar o vício. Teresa, porém, não perdia a esperança: “Você vai formar uma família comigo. Vai deixar tudo, sim.” Teresa era faxineira e recebia na época uma pensão de R$622 e ganha R$70 por dia de trabalho. Ninguém sabe do desfecho dessa história, mas Teresa deu um sentido à vida e o que ela fazia era para se manter viva.
Aracy e Guimarães Rosa

Dois outros grandes exemplos vindos de duas mulheres extraordinárias. Uma brasileira, nascida no interior do Paraná e que ficou conhecida como “O anjo de Hamburgo”. Aracy Moebius de Carvalho, nome de solteira, e Aracy Carvalho Guimarães Rosa, de casada. O seu nome está escrito no Jardim dos “Justos entre as Nações”, no Museu do Holocausto (Yad Vashem) em Israel e no de Washington (EUA). Dona Aracy, como era conhecida, trabalhou no Consulado do Brasil em Hamburgo, Alemanha, onde conheceu o escritor Guimarães Rosa e com ele se casou. Salvou judeus na Alemanha nazista, enfrentou as leis antissemitas do Estado Novo e escondeu perseguidos políticos durante a ditadura militar brasileira, como intelectuais, artistas, compositores e músicos. Quando morreu aos 102 anos, em São Paulo, sofria do mal de Alzheimer. Outra era a polaca Irena Sendler, conhecida como “O anjo do Gueto de Varsóvia”, que durante a Segunda Guerra trabalhava no Gueto de Varsóvia como especialista em canalizações. Salvou muitas crianças judias, aproximadamente 2.500, as quais eram transportadas em uma caixa de ferramentas. Descoberta, foi presa pela Gestapo e levada para a prisão de Pawiak, onde teve os ossos dos pés e das pernas quebrados. Embora condenada à morte, ela conseguiu fugir da prisão, ajudada por um soldado alemão. Morreu em 2008. Essas duas mulheres, assim como Oskar Shindler, fizeram da salvação de judeus a razão de suas vidas.
 
O grande cineasta alemão, Wim Wenders, dizia que muita coisa nos diverte, mas o que vale são as experiências que nos transformam. Todos esses exemplos e milhares de outros foram possíveis porque todos eles fizeram de todos os dias que viveram como o primeiro dia do resto de suas vidas.

Post Scriptum
Ele era sergipano e não sabia

Aos 63 anos, morreu em São Paulo, no dia primeiro deste mês, o jornalista Zoroastro Sant'Anna, que entre 2003 e 2010 viveu intensamente em Sergipe, participando umbilicalmente dos movimentos de vanguarda do jornalismo e da cultura. Zorô, como era carinhosamente chamado, tinha uma paixão frenética por Aracaju. E logo ele que viveu em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Frankfurt, Paris, Londres, Nova York, Los Angeles, Madrid, Lisboa e Roma, não se cansava de dizer que a brisa de Aracaju era única no mundo, porque ela tem o poder de nos acariciar. Interessante é que Zorô frequentou, na sua mocidade, os mesmos lugares que frequentei em Salvador: Instituto Cultural Brasil-Alemanha e Instituto Goeth, no Corredor da Vitória, Teatro Vila Velha no Campo Grande, Clube de Cinema da Bahia e o bar Na tonga da mironga do kabuletê, no Rio Vermelho. Nunca nos bicamos, o que veio somente acontecer aqui em Aracaju a partir de 2006. Antes da sua última vinda a Aracaju, no ano passado, estive com ele várias vezes no Rio de Janeiro, frequentando os lugares que ele tanto amava, como o Tio Sam, um boteco do Leblon. Ele estava fissurado com o seu projeto de realizar um longa-metragem sobre o cangaceiro Lampião. Zorô era um homem de princípios. Morreu pobre. Mas era um homem rico. Sua riqueza e seu legado foram suas idéias, ora contundentes, ora sutis, mas carregada de um senso de humor extraordinário. Zorô deixou saudades!  Era sergipano e não sabia!


- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 14 e 15 de abril de 2013, Caderno B, página 11.
- Postado no Blog Primeira Mão, em 15 de abril de 2013, domingo, às 08:07::57. Site:
- As fotos deste ensaio, para divulgação, foram retirados do google. 


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Mulheres da Antiguidade - Babata

Isto é história
Mulheres Audaciosas da Antiguidade
BABATA

Vicki León
 
Ao longo deste milênio, os judeus têm passado por alguns séculos péssimos, mas os anos 50-150 d.C. foram os piores. Para começar, eles perderam a autonomia e se tornaram uma província romana; depois Jerusalém foi sitiada e transformada em poeira, e o imperador Adriano construiu um templo para Zeus e uma cidade romana sobre suas ruínas. Àquela altura só restava um bruxuleio de resistência, liderada por um agitador chamado Simon Bar Kochba. Entre seu exército de partidários estava uma mulher dolorosamente sacrificada chamada Babata, que por fim foi uma vítima da última guerra que os judeus travaram, antes de serem dispersados por aproximadamente 2.000 anos.
 
Babata morava com seus prósperos pai e mãe em Mahoza, uma vila no extremo sul do mar Morto, a apenas um pulo de distância de Sodoma e Gomorra. Naquela época as pessoas apreciavam as mesmas coisas que hoje: ter uma casa, casar, preservar o que você construiu por meios legais e fugir dos impostos. Por meio de escrituras de doação, seus astutos pais lhe deram uma série de casas, átrios, jardins, bosques de tamareiras e direitos hidrográficos enquanto ainda estavam vivos. Até aí tudo bem. Então, Babata se casou e teve um filho. Pouco tempo depois seu marido faleceu, deixando mais propriedades para ela. Por motivos que só ela sabia, o seu filho Ieshua foi entregue aos cuidados de um homem corcunda. Foi nesta época que os processos começaram – alguns registrados por Babata relativos a seu filho; outros registrados contra ela por uma variedade de parentes enraivecidos de seu falecido marido. Acrescentando mais infortúnio, Babata se casou outra vez, mas o Sr. Sucessor durou pouco mais que a cerimônia de casamento. Mais complicações apareceram, desta vez partindo de sua enteada. Logo o arquivo de processos de Babata estava ficando parecido com o de Woody Allen.
 
Então estourou a guerra, que deve ter parecido quase um alívio para Babata, que vinha lutando suas próprias batalhas particulares. Simon Bar Kochba e seus seguidores lutaram durante três anos; a mesma quantidade de sangue romano e judeu foi derramada. Por um breve período, os judeus pensaram que tinham uma chance de vitória. Mas esta não estava destinada a acontecer. Muitos judeus abandonaram a área; outros optaram por ficar e se esconder. Babata escolheu se refugiar, uma oportunidade que surgiu através de seu embaralhado parentesco matrimonial. Acompanhada por outros, ela fez uma escalada até uma gruta gigantesca e quase inacessível, abastecida para servir como abrigo, trazendo consigo uns poucos pertences preciosos. Lá, elas e seus companheiros aguardaram, com esperanças de que os romanos não os perseguissem. Mas eles não puderam fugir da sede e da fome, mesmo tendo ficado reduzidos a comer os corpos daqueles que morreram antes.
 
Muito mais tarde, outros judeus retornaram às cavernas, enterraram seus ossos, e arrumaram caprichosamente os objetos que tinham tanto valor para eles: sandálias, roupas, facas, utensílios de cozinha e, acredite ou não, os arquivos legais de Babata meticulosamente organizados.



Às vezes os contos de fadas se tornam realidades. Apolônia era uma adorável plebeia, que com seu elegante charme estilo Grace Kelly conquistava a todos que conhecia. Ela casou com o rei Átalo I, soberano do gigantesco reino de Pérgamo na Ásia Menor. Durante um reinado de quarenta anos (269-197 a.C.) eles foram ovacionados como o casal ideal.  Os historiadores falavam carinhosamente de Apolônia, as cidades publicavam decretos em sua homenagem, e epigramas poéticos adornavam um monumento feito para ela (ainda preservados na antologia grega). Após a morte de seu marido, ela manteve o estreito relacionamento com seus quatro filhos, que se revezavam no governo. Ela e os rapazes até visitaram juntos a sua cidade natal, Cízico; de braços dados, ela lhes mostrou os pontos de atração turística. Por que a vida brilhante de Apolônia foi por água abaixo? Como qualquer produtor de cinema lhe diria, simplesmente não existem conflito e ação suficientes na virtude verdadeira.


A Autora
Vicki León
 

- A próxima postagem de Mulheres Audaciosas da Antiguidade vai falar de “AS QUATRO JÚLIAS”. Elas eram duas duplas de irmãs – todas chamadas Júlia, que se revezaram colocando seus filhos no trono do Império Romano.

– Do livro “Mulheres Audaciosas da Antiguidade”, título original, “Uppity Women of Ancient Times”, de Vicki León, tradução de Miriam Groeger, Record: Rosa dos Tempos, 1997.


- Todas As imagens foram extraídas do Google.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O Corsário do Rei

O corsário do rei
Clóvis Barbosa
 
A primeira vez que vi Darcy Ribeiro foi numa palestra que ele veio fazer na Universidade Federal de Sergipe, onde eu exercia o cargo de Procurador Federal. Após o término de seu compromisso, ao lado de alguns professores e estudantes, fomos todos a um restaurante na praia de Atalaia. Passamos aproximadamente quatro horas juntos, tempo necessário para ele se apaixonar perdidamente por uma estudante que estava conosco e para o conhecermos como uma figura fascinante. A mim, impressionou seu talento, seu raciocínio rápido e a capacidade de discutir todo e qualquer assunto. Toquei num tema tabu dentro do meio acadêmico de então, que era o livro do filósofo José Arthur Gianotti, publicado alguns anos antes pela Editora Brasiliense, “A Universidade em ritmo de barbárie”. Este ensaio foi uma crítica feroz ao processo de degradação que passava a universidade brasileira, chegando o autor a afirmar que um pacto da mediocridade havia sido firmado na comunidade de ensino superior, onde o professor fingia que ensinava, o aluno fingia que estudava e o servidor fingia que trabalhava. Gianotti dizia que "Se não se apostar no poder acadêmico, se não se lhe abrir um espaço próprio, a universidade será enervada por suas convulsões. E como o país não pode dispensar institutos de pesquisa que alimentem o desenvolvimento tecnológico, e escolas que formem suas elites, ela será marginalizada e posta em banho-maria, enquanto uma burocracia ilustrada, apoiada no estado, tratará de criar centros de excelência destinados a cumprir as tarefas que a universidade não soube desenvolver. Uma enorme rede de ensino universitário servirá para enganar a demanda das massas, enquanto o verdadeiro conhecimento tomará outros rumos”, profetizava.
Quem esperava que Darcy fosse de encontro às teses de Gianotti quebrou a cara, pois, além de ratificar, em parte, os argumentos, levantava outros, como o pagamento de salário igual aos professores independentemente de sua produtividade, a falta de extensão e pesquisa, o despreparo dos professores, o péssimo percentual de doutores, etc. Darcy falava sem parar, ao tempo que investia com palavras dóceis e poéticas na beleza juvenil que aflorava em uma das estudantes que nos acompanhava. Fui levá-lo no hotel e no caminho ele falava maravilhas da encantadora jovem que acabara de conhecer. Falava da boca gulosa, dos olhos tristes, do sorriso e do seu charme. No dia seguinte fui levá-lo ao aeroporto. Ele não se esquecera da estudante da noite anterior. Queria um telefone, um contato. Prometi que conversaria com ela. Mas não falei. Ela namorava um colega estudante e ambos militavam num partido de esquerda. Depois, tive uns 3 ou 4 contatos pessoais com ele, sempre em reuniões do PDT em Brasília e Rio de Janeiro. Sempre se lembrava de perguntar de sua musa “sergipense”.  Era gostoso conversar com Darcy. Ele sempre deixava uma dúvida, uma frase de efeito, uma tese que a gente carregava para reflexão. Era um homem tremendamente preocupado com o Brasil. Por que o Brasil ainda não deu certo? Era a pergunta que ele fazia ao chegar ao exílio, no Uruguai, em abril de 1964. Com essa idéia na cabeça começou a pensar numa forma de responder à pergunta. Trinta anos depois produziu, talvez, a sua maior obra, com o título de “O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, que, para ele, foi a melhor forma de influenciar as pessoas que aspiravam ajudar o Brasil a se encontrar como nação. Mas, infelizmente até hoje, sua pergunta continua sem resposta?
 
Na manhã do dia 18 de fevereiro de 1997 soube de sua morte em Brasília. Imediatamente segui para o Rio de Janeiro, local do enterro, para lhe dar o meu último adeus. Na viagem e antes de chegar à Academia Brasileira de Letras, no Castelo, onde seu corpo foi velado, um filme passou em minha mente e passei a me lembrar das nossas conversas durante os parcos momentos de convivência. Desde 1995 que ele enfrentava um câncer nos ossos. No nosso último encontro até falamos sobre o assunto e eu falei de alguns amigos que tive e também sofria desse mal. Depois da doença, conheci um Darcy que tinha pressa em terminar alguns projetos, como a fundação que levaria o seu nome e que teria a sede na sua residência, em Copacabana. Lá estava eu, anonimamente, no Salão dos Poetas Românticos da ABL observando as pessoas e autoridades que vieram prestar a última homenagem. O escritor Dias Gomes foi quem melhor traçou o seu perfil: “O Darcy era um homem feito só de amor. Ele não tinha ódio no coração”. Enquanto o som de Bach contribuía para a nossa melancolia, chegava uma coroa de flores mandada por Fidel Castro com a frase “ao eterno amigo”. Era um cenário de tristeza, principalmente quando a presidente da ABL, escritora Nélida Piñon, fez o discurso de despedida. Na hora do enterro, ainda na sede da Academia, um quiproquó foi marcado pela falta de um veículo que levaria o caixão. Foi o que bastou para ataques e xingamentos serem desferidos contra o então governador do Rio de Janeiro, Marcelo Alencar. Os ânimos foram acalmados e o enterro saiu da ABL até o Cemitério São João Batista, num trajeto de 7 km, onde no mausoléu dos acadêmicos, já à noite, Darcy foi enterrado.
Sim, mas o que tem a ver Darcy Ribeiro com a peça “O corsário do rei”, texto e direção do teatrólogo Augusto Boal? Em 1982, eleito vice-governador na chapa de Leonel Brizola do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro vivenciou em Paris a experiência do Centro de Teatro do Oprimido da capital francesa e convidou Boal, então exilado, para que aplicasse nas escolas públicas do Rio de Janeiro uma atividade similar, dentro daquela perspectiva revolucionária no âmbito da educação, tendo inclusive sugerido que o mesmo montasse um espetáculo na capital carioca. Depois de 14 anos no exílio, Boal montou a peça que trata das aventuras do corsário francês, Duguay Trouin, que invadiu o Rio com o propósito de ocupá-lo e depois revendê-lo aos portugueses e brasileiros. Para ele, era perder tempo e dinheiro com as meras operações de pirataria. O rei da França autorizou a empreitada. Daí por diante, muita sátira e denúncias da corrupção da administração e do clero, a exploração do capitalismo e todas as mazelas do Brasil de ontem e de hoje. A peça não foi bem recebida pela crítica. Armou-se um “bafafá" no cenário cultural brasileiro, de um lado defensores do talento de Augusto Boal, de outro, um segmento atrasado, provinciano, cujo espírito estaria marcado pelo chamado jequismo. Na verdade, uma postura preconceituosa contra um brasileiro que viveu no exílio. O sarrafo sofrido por Boal respingou em Darcy e impossibilitou as crianças das escolas do Rio viver a experiência do teatro do oprimido, tão bem explorado na Europa e com efeitos positivos.
 
Darcy disse certa vez: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”. Perdeu, também, na ânsia de amar um amor juvenil “sergipense”, mas neste caso, o fracasso não significa que ele fracassou; significa que não venceu. Ou, quem sabe, ela é quem perdeu!

- Publicado no Jornal da Cidade, edição de domingo e segunda-feira, 31 de março e 1º de abril de 2013, Caderno B, pág. 5.

- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, em 31 de março de 2013, domingo, às 14:21 horas:


- As fotos são do Google. 
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