domingo, 29 de setembro de 2019
Morte e Poesia
Opinião
Morte e Poesia
Clóvis Barbosa
A morte de Cleomar
Brandi, no dia 17 de julho de 2011, um dos melhores textos do jornalismo
sergipano, comoveu a tudo e a todos, não somente pela figura cheia de vida que
era, mas, também, pelo inusitado velório realizado na Colina da Saudade. Ao ser
sepultado, no dia seguinte, uma chuva repentina misturada com um sol ardente
transformou-se num arco-íris encantador, como que quisesse a natureza também
prestar a sua homenagem. Andei um tempo
com Cleomar pelos quiosques 39, de Eliseu, e 40 da antiga orla da Atalaia, ladeado
por Eugênio Nascimento, jornalista, o José Eduardo Souza, médico,
Arlinda, então musa de Cleomar, Lula Andrade, cinegrafista, Américo, um dos
melhores técnicos em rádio e TV, e sua Dinha, além de outros companheiros.
Estava vivendo um momento tenso de minha vida. Como
presidente da OAB-SE e advogado militante, criei confusão com alguns criminosos
do aparelho policial do Estado, com comerciantes e com o status político da época. Trabalhava pelo dia e à noite tentava
descobrir a autoria das diversas ameaças sofridas, culminada por um tiro de escopeta
desferido contra a janela de minha residência. Nessas andanças noturnas,
encontrava-me com Cleomar e amigos para beber e trocar ideias sobre o
cotidiano. Ali, aprendi “que era melhor morrer de vodca do que de tédio”, como
diria Maiakovski. Depois, os afazeres profissionais me afastaram e só
esporadicamente os encontrava nos bares da vida e de Aracaju. Mas Cleomar,
antes de partir, deixou uma carta sob o título “A última saideira”, na qual ele
se despedia da vida, da sua velha “bahêeêa”, da sua Aracaju e dos seus amigos. Ao
final, sentenciou poetizando: “Um dia, o velho barril de carvalho pinga sua última
gota de conhaque. E o poeta se despede de tudo sem tristezas nem vexames”, mas
“Apenas sabendo que cumpriu seu papel com dignidade, com honestidade e com um
brilho de criança nos olhos. Quem sabe, eu encontre o amarelo dos girassóis
nesse novo caminho?”. Abaixo, um post-scriptum:
“os amigos estão convidados para a última saideira no Bar do Camilo, assim que
terminar o sepultamento. Já está pago”. E o Bar do Camilo recebeu os amigos de
Cleomar Brandi após o sepultamento, oportunidade em que todos tomaram, naquele
dia, ao som de boa música, a última saideira com o “guerreiro”.
Essa criatividade
de Cleomar me faz lembrar outros casos pitorescos ocorridos com o segundo
evento mais importante do homem: a morte. Os sumérios, por exemplo, não davam
muita importância à vida após a morte. A rainha Shudi-Ad, rainha de Ur, que viveu
no ano 2.500 antes de Cristo, preparou antecipadamente o seu próprio funeral,
marchando para o seu túmulo com sessenta e quatro criadas, uma carruagem de
madeira contendo ornamentos em ouro e prata, puxada por dois bois, quatro
mulheres harpistas e seis soldados. Cada um dos membros da festa-funeral
recebia uma bebida numa pequena taça, inclusive a rainha que estava à época com
quarenta anos de idade. Todos os corpos, ou esqueletos, foram encontrados em
sereno repouso, sem um diadema ou adorno sequer fora do lugar. Arqueólogos identificaram
na Suméria vários casos de enterros em massa precedidos por supostas festas. A
paixão também tem sido lembrada no momento do velório, como na música do genial
Noel Rosa, “Fita amarela”, onde ele diz: Quando
eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome
dela. Se existe alma, se há outra encarnação, eu queria que a mulata sapateasse
no meu caixão. Não quero flores, nem coroa com espinho, só quero choro de
flauta, violão e cavaquinho. Estou contente, consolado por saber, que as
morenas tão formosas a terra um dia vai comer. Não tenho herdeiros, não possuo
um só vintém, eu vivi devendo a todos, mas não paguei a ninguém. Meus inimigos
que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.
Em Porto Rico ,
David Morales Colón, de 22 anos, foi velado em cima de sua moto, uma Honda
Repsol, em posição de largada. Também em Porto Rico , Angel Pantoja Medina, de 24 anos,
exigiu, antes de morrer, que se usasse um tipo especial de embalsamento para
manter o seu corpo em pé por três dias durante o velório na casa de sua mãe,
usando um boné do New York Yankees e óculos escuros. Já Jack Benny, um dos
principais artistas norte-americanos do século XX, era casado com Sayde Marks
há quarenta e oito anos. Segundo uma fonte, ela era amarga e muito exigente. E
ele, por sua vez, era bastante mulherengo. Após o funeral de Benny, um florista
passou a entregar uma única rosa vermelha a Sayde, dia após dia. Aborrecida,
após algum tempo, exigiu do florista que lhe dissesse quem estava mandando as
flores.
É que Benny cuidou
para que a esposa recebesse uma rosa todos os dias pelo resto de sua vida. Ela
ainda viveu nove anos. Malba Tahan, heterônimo do professor Júlio César de
Mello e Souza, autor da festejada obra “O homem que calculava” - que narra as
peripécias do calculista persa Beremiz Samir na Bagdá do século XIII, cujo
problema do pagamento dos oito pães com oito moedas já foi objeto de artigo de
minha autoria neste jornal - achava horrível a literatura funerária que cunhava em coroas de flores
expressões tipo homenagem eterna, recordação sincera, o último adeus. Antes de morrer, aos 79 anos, após ministrar uma
palestra em Recife, deixou uma carta para a família a instruindo como deveria
ocorrer o seu velório. Rejeitava qualquer tipo de coroa ou flores com esse tipo
de mensagem. E se alguém insistisse, a coroa deveria ser devolvida com um
“delicado cartão” para que o ofertante fizesse da coroa o uso que quisesse. O
funeral, como exigido pelo escritor, deveria ser o mais modesto possível, com
um caixão de terceira classe. Ao seu enterro, no Cemitério do Caju, no Rio de
Janeiro, compareceu grande número de pessoas, todas religiosamente comportadas
e obedecendo às exigências do falecido e, se algumas flores constavam do ato,
as mesmas foram ofertadas anonimamente, sem qualquer dedicatória. Também, na
oportunidade, foi lida uma mensagem de Malba Tahan, onde ele renovava a sua defesa
pelo fim do isolamento e do preconceito contra os doentes de hanseníase. Por
fim, citava a letra da música “Silêncio de um minuto”, de Noel Rosa, como
imperativo da sua ojeriza ao luto: “Roupa
preta é vaidade para quem se veste a rigor. O meu luto é a saudade e a saudade
não tem cor”. Mas volto a Cleomar Brandi para registrar uma bela homenagem
que lhe foi prestada por Marcelo Déda, então Governador do Estado, já falecido,
e que esteve presente no velório e enterro de Cleomar, comparecendo para
bebericar no Bar do Camilo A última
saideira. Sete dias após a morte de Cleomar, no dia 24 de julho de 2011,
Déda escreveria o mais espetacular dos seus poemas, dedicado ao amigo morto.
Antes de ser uma dedicatória a Cleomar, era um grito contra a morte que também
lhe espreitava: “O Lobo”:
Nativo da noite,
Procurei abrigo
No porto da madrugada:
Despachei em navios
De madeira e linho
Os últimos medos
E engarrafei em vasos sagrados
Minha safra de lágrimas.
Com as mãos nuas
Despi as ilusões
Vestindo-me com um sorriso
Que ganhei da lua
Quando plantava
Marés cheias.
Chorei a agonia
De mil crepúsculos
E esperei feliz
As manhãs serem paridas
Para acalentá-las
Em braços de sal e ondas.
Soldado de tantos deuses,
Sepultei velhas fés
Para que a esperança
Pudesse ser amante
Do meu cotidiano.
Revoguei o futuro
Do meu cálculo
E fiz de presentes
O tempo dos meus verbos.
Zombei da dor
E doei-me
Em nacos de carnes.
Quando roubaram
Minha estrada
Corri com as asas
Que herdei de uma
Cigana de seios fartos
E juízo curto.
(aprendi a caminhar na brisa
deixando pegadas no sereno).
Fiz-me corsário
Sem naus e sem ódios.
Surpreendi amores
Em desertas ilhas
E guardei um tesouro
De carícias e afetos,
Perfumes e madeixas,
Peles de ébano,
Pernas de alabastro,
Lábios de veludo,
Línguas vorazes...
Descartei a ira de Aquiles
E a astúcias de Odisseus:
Quando ouvi o canto das sereias
Soltei-me do mastro
E brinquei com a morte.
Vendo-me assim,
Ainda pensas que sou metade?
Pois, saibas,
Nunca ninguém foi tão inteiro:
Levantei acampamento
Em remotos bares
E lá hasteei meu estandarte
De sangue e perdões.
Fiz dos amigos
Meu invencível exército
E da fé no homem
Meu derradeiro credo.
Compartilhei o maná
Dos sonhos
E pus a letra
Numa canção de exílio
Desafiei da lei
Todos os interditos:
Imprimi na alma
Uma crônica alegre
Para que assim
Os cegos a lessem.
Certa madrugada
De breu intenso
Matei a covardia:
Ateei fogo em minhas barbas
E vivi a alegria sagrada
De Lavrar a luz
Num campo soturno de trevas.
Agora devo sangrar a alvorada;
Pisar sem medo a praia derradeira
Lanço meu uivo numa gargalhada,
Sorvo, tranquilo, a última
saideira.
Post Scriptum
Quarta-Feira de Cinzas
Gosto de brincar com os amigos. Tornei-me
especialista em xeretar o conhecimento científico alheio. Coisa lúdica. Certa
vez perguntei ao amigo Luiz Eduardo Oliva o que era felicidade. Ele me
respondeu com esta bela crônica à qual deu o título de “Quarta-Feira de Cinzas”:
Na quarta-feira de cinzas cai o pano. A vida volta à realidade. Os bacantes
recolhidos salivam o sabor azedo da ressaca. Há ainda uma confusão na mente,
ressoa o eco dos dias da tríade momesca. Vem a velha canção carnaval desengano, deixei a dor em casa me
esperando e brinquei e gritei e fui vestido de rei, quarta-feira sempre desce o
pano! Ah, a felicidade... e afinal, o que é a felicidade? Indagava-me ontem
o velho Clóvis ao brindar um Pinot Noir
numa cantina ítalo-sergipana nada momesca. Eis a pergunta para nenhuma resposta
convincente. A única que me ocorre é que a felicidade é a festa do coração,
dura enquanto durar a festa. Lembrei-lhe o grande J.Inácio, o mágico pintor do
amarelo, da luz do sol e das bananeiras nas terras Del Rey que um dia,
exaltando o pintor de paredes no seu ofício numa manhã nos anos oitenta dum
festival de arte de São Cristóvão, disse-me: - Não sei porque os homens fazem festas. Para mim a festa é o sol que
invade meu quarto trazendo todas as cores quando acordo e me diz: homem, vai
pintar... Então lembrei a canção de Haroldo Barbosa e Luiz Reis ... eu abri a janela e esse sol entrou... de
repente, em minha vida já tão fria e sem desejos... estes festejos, esta emoção...
luminosa manhã... porque tanta luz, tanto azul... é demais pro meu coração...
Vejo o quadro "Quarta-feira de cinzas", obra do pintor alemão Carl
Spitzweg, e observo quanta verdade há nele para retratar o fim do carnaval... Um
pierrot e sua realidade: finda a
festa, de volta à prisão da vida, uma tosca moringa d'água e um exuberante raio
do sol da esperança a atravessar as grades da prisão da vida... carnaval
desengano... Volto à pergunta do velho Clóvis: E a felicidade...? Uma luminosa
manhã...
- Publicado no
Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de fim de semana, de 20 a 22 de agosto de
2016, sábado à segunda-feira, Caderno A-7.
- Postado no
Blog “Primeira Mão”, em 21 de agosto de 2016, às 09:50, site:
http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=11250&t=morte-e-poesia
domingo, 22 de setembro de 2019
Tipos Populares - Zé de Raul
Isto é História
Aracaju Romântica que Vi e Vivi
Tipos Populares
Murillo
Melins
José
Sandes Lago, homenzarrão com um metro e oitenta e tantos de altura,
ex-expedicionário que desfilava garbosamente no 7 de Setembro, ostentando a
bela farda da Força Expedicionária Brasileira. É o Zé de Raul, funcionário da
Prefeitura de Municipal, aposentado como Fiscal de Tributos. É um tipo popular
que todo mundo aprendeu a gostar. Aonde vai faz as pessoas rirem, porém é muito
irreverente. Quando tem de falar, fala sem medo. Além de muitas peripécias, foi
em carnavais passados eleito Rei Momo.
No
auge do seu reinado, desfilando num carro alegórico improvisado, cujo trono era
armado em cima de um velho jeep, a cadeira do rei balançava perigosamente. O rei,
de vez em quando, chamava a atenção do motorista. – Devagar com o andor. O motorista, que também tinha tomado umas e
outras, distraiu-se e freou o carro bruscamente. O rei todo paramentado com
capa, coroa e cetro, foi à lona, levantou-se, deu uns carões no motorista
irresponsável e em seus súditos, e continuou o desfile a pé.
Bem
crescido já na idade de trabalhar, através de muito esforço e de pedidos,
conseguiu um emprego no DENERU. Quem viveu a época se lembra do que era um mata-mosquito: um
guarda com farda cáqui portando uma bandeirola amarela, que colocava na porta
da casa que estava visitando. Munido de um martelo, ia furando todas as latas
que encontrasse nos quintais, ou colocando cloro em porrões e porções de
petróleo em água estagnada. No fim do
expediente, o mata-mosquito tinha que apresentar à chefia um quadro com a
relação das casas visitadas e algumas observações sobre focos dos pernilongos.
Acontecia,
porém, que no relatório que ele apresentava diariamente, constava um número
excessivo de visitas às casas em relação aos seus colegas. Por isso, sempre
recebia elogios da chefia que dizia aos companheiros de José: - Vejam o exemplo desse funcionário que prima
pela erradicação do mosquito, visitando mais casas que vocês dois juntos.
Até
que um dia “a casa caiu”. Zé de Raul apareceu triste sem farda e sem emprego. O
chefe tinha descoberto que ele anotava na papeleta as visitas, sentado na praia, tomando banho
de sol.
Quando
a draga San Pablo chegou em Aracaju
trazida por Doutor Leandro Maciel. Governador do Estado, para mandar abrir a
famosa barra, o Zé de Raul, desempregado, estava sentado em um dos bancos do
sinuca Ponto Exato, quando leu em um jornal que a draga estava precisando de um
cozinheiro com larga experiência. E eis que o Zé de Raul decidiu se apresentar
para o cargo. Para nós, ele alegou que sabia fazer alguns pratos, mas que para
cozinhar para uma tripulação de gringos era moleza, pois os filipinos não
manjavam nada da cozinha brasileira.
Ele
sumiu dos pontos de nossos encontros por uma semana. Dias após, reapareceu no
sinuca e explicou, a seu jeito: - Olha
turma, o emprego até que era bom, mas quando chegamos em alto mar, um gringo
cismou que eu era bicha, pois no conceito deles, todo cozinheiro é “marico”.
Quis me agarrar, aí foi um pega pra
capar. Eu quis jogar o filipino no mar. E na volta da draga ao ancoradouro na
Ponte do Imperador, fui despedido; aí desisti de uma vez de ser cozinheiro.
Geralmente
nas noitadas de domingo o Cinema Rio Branco era casa lotada. A soirée era
frequentada pela “nata” da sociedade de Aracaju. Em certo domingo, à noite, Zé
de Raul chegou quase na hora de começar a sessão. Procurou um lugar nas
cadeiras, que estavam lotadas. Olhando bem, viu uma, bem no meio da sala que
estava vazia. O nosso herói se encaminhou para o local e depois de mil pedidos
de desculpas chegou ao lugar desejado. Para sua surpresa, a cadeira estava
ocupada por uma bolsa que uma senhora colocara para reservar o lugar para
alguém. Cinicamente, Zé de Raul pegou a bolsa, entregou à senhora e sentou-se
na cadeira. A madame irritou-se e disse: - O
senhor não tem mesmo vergonha de sentar-se com essa cara safada na cadeira que
reservei? Retrucou o Zé: - Estou
sentando, minha senhora, não com a cara safada, mas com essa bunda safada.
O autor
Murillo Melins
- Na próxima postagem você vai conhecer BISSEXTINO, um músico que agitou as
noites de Aracaju e de Salvador.
-
Do livro “Aracaju Romântica que vi e vivi”, de Murillo Melins, 4ª. Edição,
2011, Gráfica J. Andrade.
-
As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google.
domingo, 15 de setembro de 2019
A Cultura do Golpe
A Cultura do Golpe
Clóvis Barbosa
O impeachment contra a presidente Dilma
Rousseff causou um reboliço impressionante no mundo político brasileiro. Primeiro,
a intolerância odiosa entre os grupos pró e contra o governo e o PT, o partido
da presidente; segundo, a patente ignorância histórica de um povo que se
esqueceu de ler, de conhecer a sua história e de adorar colocar embaixo do
tapete as suas angústias, anomalias e psicopatias. Somos um povo que não tem
tradição democrática. Temos medo de mudar. Quando falamos em mudança é para
continuar tudo como está. Adoramos uma benesse
vinda do erário, a viver à custa do dinheiro de todos, e por ser de todos, não
é de ninguém. Neste momento histórico, nunca se viu tanto gangsterismo,
oportunismo e falta de amor ao Brasil e ao seu povo. Uma voz, apenas uma voz,
não se ouviu em defesa da normalidade política e econômica. O povo que se lixe!
Uma alcateia de homens sujos tomou conta do país, fazendo da corrupção a regra
de comportamento.
O corrupto é sumamente perigoso. Ele não
conhece a fraternidade ou a amizade, mas só a cumplicidade, como disse o Papa
Francisco, onde, para ele, a corrupção é proselitista, se disfarça de
comportamento aceitável, como Pilatos, que faz de conta que o problema não é
com ele, e por isso lava as mãos, mesmo que no fundo seja para defender a sua
zona corrupta de adesão ao poder a qualquer preço. Alguém já disse que "a desgraça dos que não se interessam
por política é serem governados pelos que se interessam". O nosso ministro
Carlos Ayres de Britto, diz que a nossa história é ruinzinha; o nosso DNA
coletivo não é dos melhores. Enquanto nos Estados Unidos a sociedade civil
chegou antes do Estado, aqui, no Brasil, o Estado chegou antes da sociedade
civil. Somos sequelados política e juridicamente por causa desta chegada do
Estado em primeiro lugar, assumindo a estrutura de todo o processo colonizador
e civilizatório.
Temos
resquício de um Estado imperial, como a prepotência, a arrogância e a confusão
entre tomar posse no cargo e tomar posse do cargo. Por que o Brasil não
deslancha, sob os aspectos éticos? Por que o Brasil ainda não deu certo?
Perguntas já registradas por vários autores da literatura sociológica e
antropológica. Para explicar o porquê do Brasil não deslanchar, sob os aspectos
éticos, são inúmeras as obras escritas por cientistas políticos e sociais. Destaco
algumas delas: Caio Prado Júnior (Formação
do Brasil Contemporâneo), Darcy Ribeiro (O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil), Moreira
Leite (O Caráter Nacional Brasileiro – A
História de uma Ideologia), Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto), Josué de Castro (Geografia da Fome), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) e Nelson Werneck Sodré (Introdução à Revolução Brasileira). Por que o Brasil ainda não deu
certo?
Era a
pergunta que Darcy Ribeiro, um dos homens mais extraordinários que tive a honra
de conhecer, fazia ao chegar ao exílio, no Uruguai, em abril de 1964. Com essa
ideia na cabeça começou a pensar numa forma de responder à pergunta. Trinta
anos depois produziu, talvez, a sua maior obra, que tomou o título de “O povo
brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, que, para ele, foi a forma que
encontrou para influenciar as pessoas que aspiram a ajudar o Brasil a se
encontrar. Mas, infelizmente, a sua pergunta continua sem resposta? Único país
de colonização portuguesa em todo o continente americano, com uma área de 8
milhões e 500 mil quilômetros quadrados, o Brasil ocupa quase a metade da
América do Sul. Tem a sua população formada por três raças básicas: o negro, o
índio e o europeu. Os portugueses mandaram uma mistura do lusitano, do romano,
árabe e negro. Os negros foram trazidos da África como escravos, entre o século
XVI até meados do século XIX, sendo o país considerado o mais escravocrata do
mundo.
Já os
indígenas pertencem ao chamado grupo de paleoameríndios, cujo estágio, quando
da descoberta, era o neolítico, ou seja, o da pedra polida. Mais tarde, vieram
os italianos, espanhóis, alemães, eslavos, japoneses, chineses e sírios, além
de imigrantes de outros países em menor escala. Descoberto no início do século
XVI (1500), o Brasil foi colônia de Portugal durante três séculos, exatos 322
anos (1500 a
1822). Durante 77 anos (1822
a 1899), embora independente, viveu sob a forma
monárquica, governada por Dom Pedro I e II. De 1899 a 1930, exatos 31 anos,
já sob a forma republicana, no período cognominado de Primeira República. Foi
uma etapa da vida brasileira muito tumultuada, onde as forças dominantes, civis
e militares, eram bastante heterogêneas e onde a cultura do golpe campeava. Veio,
em seguida, a Segunda República, de 1930 a 1937, com o cargo sendo ocupado por
Getúlio Vargas após a renúncia imposta ao Presidente Washington Luís, com a
interferência do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme.
Foi uma fase
bastante conturbada da vida brasileira, dominada pelo extremismo de direita e
de esquerda que se polarizavam influenciados pelos acontecimentos que ocorriam
na Europa, com o nazismo, fascismo e comunismo. Redundou tudo isso numa das
ditaduras mais violentas das Américas, de 1937 a 1945, o chamado
Estado Novo, onde, depois de 7 anos no poder, Getúlio Vargas abiscoitava mais oito
anos como o ditador que mais vivenciou o poder no Brasil, em exatos 15 anos.
Veio a redemocratização em 1945 e que permaneceu até 1964, durando 19 anos.
Mais uma vez o Brasil não encontrou o seu caminho. Golpes e contragolpes eram
tramados diuturnamente, sendo a fase mais radical das facções políticas
existentes. Getúlio, Kubistchek, Jânio e Jango tiveram dificuldades em assumir
o cargo de presidente, apesar de terem sido eleitos pelo povo. Veio a ditadura militar, de 1964 a 1985, vivendo 21 anos
entre nós. Mais uma vez o Brasil parava no tempo e no espaço, sem vivenciar o
estado de direito democrático.
A
normalização institucional só veio a partir de 1985 com a sua redemocratização.
Somos, como se vê, ainda imberbes em democracia. Não sei se essa influência
histórica tenha contribuído com essa nossa formação arrogante. A democracia
perfeita é aquela que beneficia os nossos interesses egoísticos. O diálogo não
é o instrumento de convencimento, mas o de imposição. E quando o nosso
interesse se confronta com o do Estado, aí é que a coisa se transforma em pandemônio. Para
nós o Estado não se estabelece para atingir o bem comum, mas o nosso. É a
chamada viúva que não tem marido, e que todos se acham no direito de
usufruí-la, ou como diz Chico Buarque, que dorme tão distraída, sem perceber
que é subtraída vergonhosamente em inúmeras e intermináveis tenebrosas
transações. É também assim com o Estado na relação com todos nós. Esquecem os
mentecaptos, ou não querem saber, que o Estado somos todos nós.
A tática
das corporações de servidores públicos no estabelecimento de seus pleitos, por
exemplo, sempre norteados por aumentos salariais, é de estarrecer qualquer
perspectiva de civilidade e de seriedade na condução da coisa pública. Uma
corporação ameaça investigar gestores ligados ao Poder Executivo; outro,
manipula a classe e mente para a sociedade de que não está recebendo
determinado reajuste, mas nunca recorre à Justiça para ver reconhecido o seu
suposto direito. Aquele outro vive de processar os próprios órgãos que deveria
defender. Ameaçam as instituições, os seus dirigentes, a ordem democrática,
estimulam a criminalidade quando deveriam controlá-la, a morte nos hospitais
quando têm a obrigação de evitá-la, enfim, o caos é instaurado. Repentinamente,
a mentira, a peta, o logro, a corrupção, passam a ser regra. A decência, o respeito
aos recursos públicos, à democracia e ao contribuinte, a exceção.
Por outro
lado, os políticos que gerem a máquina pública fazem de conta que o assunto não
é com eles, até porque, carreiristas como são, não pretendem prejudicar o seu
caminhar na busca de novos postos. É estabelecido, pois, um pacto de
mediocridade entre esses atores da vida pública. Raymundo Faoro, na sua obra,
“Os donos do poder”, aborda as relações de poder sobre duas óticas, uma de
natureza do estamento, outra de ordem patrimonialista. Para ele, acima das
classes sociais e do interesse público, está o estamento burocrático que se
apropria da coisa pública a fim de sustentar os seus privilégios. A verdade é
que é preciso mudar urgentemente esse modelo que não deu certo em lugar nenhum,
nem no comunismo. Não se pode pagar salários iguais a desiguais. Não se pode
pagar o mesmo salário a quem trabalha e a quem nada produz, a não ser, como na
fábula de Ludwig Bechestein, você também acredite no burro que espirrava
dinheiro.
Ludwig Bechestein
Aliás, quando ele publicou O burro que espirrava dinheiro, ele supôs que apenas as crianças
acreditariam na estória. Afinal de contas, seu papel era entreter os jovens
leitores. Passados cento e cinquenta anos da sua morte, é possível ver que
alguns adultos, mais burros do que o burro da fábula, acham que é possível espirrar
dinheiro. A cultura do golpe está impregnada no DNA de grupos elitistas que
pensam o Estado como se fosse propriedade de alguns em detrimento da esmagadora
maioria. É preciso entender, como referido na obra “Ensaio sobre a Dádiva”, de
Marcel Mauss, que os dons devem ser compartilhados entre os integrantes de uma
sociedade, ou seja, dinheiro, comemorações, víveres – tudo aquilo que a
sociedade adquire e acumula – deve ser repartido entre os seus membros, sob
pena de esfacelamento das instituições. Um acontecimento marcante da nossa
história: nos anos que antecederam o suicídio de Vargas, em 1954, forças
golpistas lideradas por Carlos Lacerda tocaram fogo na administração getulista.
No dia 23 de agosto de 1954, o Brasil estava
endoidecido de ódio a Getúlio; no dia do suicídio, 24 de agosto, o mesmo povo
estava enlouquecido de paixão e saudade.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 6 de agosto de 2016, Caderno A-6
-
Postada no Blog Primeira Mão,
Aracaju-SE, em 7 de agosto de 2016, às 17:12:23, site: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=11200&t=a-cultura-da-mediocridade
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