Aracaju/Se,

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O Direito achado na rua


Opinião pessoal


O Direito achado na rua
Clóvis Barbosa

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Em dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Resultado das atrocidades testemunhadas na 2ª Guerra, a Declaração deu especial atenção à dignidade humana como postulado. Quarenta anos depois, o Brasil promulgaria uma constituição. A Carta de Outubro, como é chamada por aqui, ali no art. 1°, III, estabelece ser um dos fundamentos da república a dignidade da pessoa humana, associando a ela os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Interessante que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. XXIII, n° 1, diz que toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho, bem como à proteção contra o desemprego. Há outros direitos sociais mencionados no mesmo dispositivo. Contudo, o art. XXV parece ser mais contundente, ao determinar que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego...”. Escandaloso é que, no Brasil, mais de 40 milhões de pessoas acham-se vivendo abaixo da linha de pobreza. Isso, segundo o IBGE, significa ganhar, por dia, menos de US$ 0,25 (vinte e cinco centavos de dólar), o que equivale, mensalmente, a algo na casa dos R$ 27,75 (vinte e sete reais e setenta e cinco centavos). Em julho de 2003, foi sancionada a Lei n° 10.695, que deu nova redação ao art. 184 do Código Penal. Esse artigo trata da criminalização da conduta de quem viola direitos autorais: a chamada pirataria. As penas variam de três meses de detenção a quatro anos de reclusão e multa. Como se vê, pirataria dá cadeia, malgrado muitos dos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, e até alguns que vivem acima dela, façam desse ilícito uma profissão. Ora, mas quem quereria viver com um salário de R$ 0,93 (noventa e três centavos) por dia? Noventa e três centavos são capazes de oferecer condições justas e favoráveis de trabalho? Garantem direitos sociais, como saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos?  
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Por coisas como essas foi que, em 1987, um ano antes da promulgação da CF de 88, intelectuais da UNB fundaram o chamado “Direito Achado na Rua”. Fruto de pesquisas concentradas no âmbito do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, essa corrente teve como grande scholar o prof. Roberto Lyra Filho, para quem o direito só teria significado se partisse de uma análise da prática social, fincado no empirismo e na disputa aberta pela vitória da justiça sobre a lei. Lyra Filho consubstanciava seus pontos de vista em pensamentos alternativos, heterodoxos e  não-conformistas. Numa palavra, a escola do Direito Achado na Rua realiza uma “leitura dialética do fenômeno jurídico”, mas esse modelo de pensamento não é invenção exclusivamente nacional. Os anglo-europeus já haviam formulado o people’s law of the streets e os franceses já tinham concebido o droit qu’on trouve dans la rue. Flexibilidade é a palavra-chave do direito achado na rua. Plagiando o próprio prof. Lyra Filho, “o direito só pode ser compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. Para ele, o direito “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem, nas normas costumeiras e legais, tanto pode gerar produtos autênticos, quanto produtos falsificados”. Produtos falsificados, para Lyra Filho, seriam, por exemplo, “as leis que representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito”. Essa concepção marxista, também cognominada “humanismo dialético”, detecta na metáfora da rua (que aponta para a polis) a metamorfose da “multidão de solitários urbanos em povo”, conclamando “a rua da cidade para a vida humana”, consoante preconiza Marshall Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Em suma, o operador do direito deve “reivindicar a rua para a vida”. A vida nasce na rua. O direito nasce na rua. O povo idealiza a rua. Em O povo ao poder, Castro Alves canta: “A praça! A praça é do povo, como o céu é do condor”. De modo bem simplista, o direito achado na rua pugna por uma recriação do ordenamento, tendo nas massas seu centro gravitacional de criatividade.
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A edificação de uma cidadania sócio-jurídica é a meta do Direito Achado na Rua, o qual ambiciona “relações de trabalho mais livres”; deseja pôr um termo na opressão que um indivíduo lança sobre outro. Disso, advêm algumas reflexões: estimativas dão conta de que aproximadamente três milhões de pessoas assistiram à versão pirata do filme “Tropa de Elite”. Ao invés de dar um tratamento criminal a esses indivíduos, os produtores da obra foram buscar o direito na rua e, dentro de uma concepção humanisticamente dialética, vislumbraram a alternativa de propiciar-lhes a expiação pelo “pecado” que cometeram. Abriu-se uma conta, na qual cada um dos “infratores” poderia fazer um depósito, idêntico ao valor do ingresso de cinema, o qual seria revertido em favor do Instituto Nacional do Câncer. Bela e criativa sociabilização. O fisco e setores policiais que desconhecem o direito achado na rua, entretanto, lançam mão de outra postura. Durante algum tempo apreenderam CDs e DVDs piratas que estiveram sendo comercializados no itinerário das festas, bares e onde ocorria aglomeração de pessoas, enquadrando os “marginais” nos rigores da lei. Não é assim que quer o art. 184 do Código Penal? Parabéns ao fisco, a setores da polícia e do judiciário que não acharam o direito na rua, mas nos códigos. Não deixa de ser uma perspectiva. Nada zetética; totalmente dogmática. Esses servidores, certamente, cumpriram a lei. Difícil é saber se aperfeiçoaram o os ditames da justiça, em face de um povo que vive abaixo da linha de pobreza e que perscruta na rua os seus direitos. Essa dicotomia, todavia, é intransponível. Historicamente, cobradores de impostos sempre foram colocados ao lado de prostitutas e pecadores. Que o diga a Bíblia (Mateus 21,32 e Marcos 2,16). Ainda assim, como todos sabem, Cristo hospedou-se na residência de Zaqueu, considerado um dos mais contumazes e fervorosos cobradores de impostos de Jericó. Sucede que Zaqueu arrependeu-se das extorsões e acusações falsas que praticou para arrancar tributos. Jocosamente, talvez tenha achado, na rua, o direito das suas vítimas.
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Em verdade, o fisco federal, a polícia, o judiciário não extorquem e tampouco acusam os cidadãos que vivem abaixo da linha de pobreza. Quem faz isso é a lei. Mas a lei é menor do que o ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, tutelou-se a Teoria Social da Ação, oriunda dos gênios de Jescheck e Wessels. Para essa teoria, ação “é a conduta socialmente relevante”. Daí perguntar: é socialmente relevante a conduta de quem pirateia por viver abaixo da linha de pobreza, procurando, assim, sobreviver com dignidade, como quer a Declaração Universal dos Direitos Humanos? É razoável exigir conduta diversa dessa pessoa? Em 1998, Luiz Vicente Cernicchiaro, então ministro do STJ, ao relatar o Recurso Especial nº 112.600, disse: “Cumpre considerar o sentido humanístico da norma jurídica. E mais. Toda lei tem significado teleológico. A pena volta-se para a utilidade”. Pois bem, qual a utilidade em reprimir aquele que, vivendo abaixo da linha de pobreza, vende um CD ou DVD pirata? Por conta disso é que se trata o fisco como leão. Sucede que a mesma Bíblia, que apresenta um Cristo que come com cobradores de impostos, preconiza: “como um leão furioso ou um urso feroz, assim é o governo mau que domina um povo pobre” (Provérbios 28,15). Seria precipitado dizer que o governo é mau. As leis brasileiras, no entanto, por não terem sido achadas na rua, são más. Esses setores de funcionários públicos (fisco, polícia, ministério público e judiciário), porém, embora cumpram leis más, agem de boa-fé, dando cabo de uma norma que foi achada em qualquer lugar, menos na rua, menos nas praças. Uma lei talvez achada no gabinete de um performático esquizofrênico, que pensa sob o pálio de um ar-condicionado. Ainda assim, um conselho para o pessoal do fisco e aos demais servidores, também tirado da Bíblia: “já vi de tudo em minha vida vã: o justo que perece, apesar da sua justiça, e o ímpio que sobrevive longamente, apesar de sua maldade. Não sejas demasiado justo e nem te tornes sábio demais: Por que arruinar-te?” (Eclesiastes 7,15 e 16). Portanto, por que arruinar-se? Já não é ruína bastante ganhar menos de R$ 0,93 por dia?

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 13/09/2015, Caderno A-7. 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Mulheres da antiguidade - Justa Honoria


Isto é História’

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
Resultado de imagem para justa honoriaJUSTA HONÓRIA
Vicki León
Ninguém deixou sequer um retrato de Átila, o Huno, de fato um dos grandes homens malvados do mundo, mas temos um retrato de sua queridinha numa moeda romana. Por mais estranho que possa parecer, o Flagelo de Deus tinha uma namorada chamada Justa Grata Honória, e ela também não era nenhuma garota fogosa de baixo nível louca por hunos – Justa era a irmã de Valentiniano III, imperador da metade ocidental do Império Romano.
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Pensando bem, talvez Justa fosse só uma criança rebelde. Solteira, supostamente devotada ao celibato cristão, ela conseguiu ficar um tantinho de nada grávida em 434 d.C. Átila ainda não havia entrado em cena. O orgulhoso papai era um plebeu, o administrador de sua fazenda. Todos na corte imperial em Ravena, inclusive seu irmão, pensavam que Justa planejava se candidatar ao governo do Império. Afinal, suas parentas tinham assumido funções importantes no governo durante as folgas da imperatriz. Assim, o irmão mais velho pôs Justa de castigo para valer, banindo-a para a corte de um membro da família, Teodósio II em Constantinopla, a metade oriental do Império. Para reforçar, ele deu ao amante de Justa – e possivelmente ao bebê – um descanso permanente. Quando finalmente justa foi autorizada a retornar para a Itália, seu irmão mandão então a inscreveu para casar com alguém de confiança, um sujeito de boa família, mas sem nenhum tipo de ambições cansativas.
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A astuciosa Justa conseguiu colocar os sinos matrimoniais permanentemente suspensos. Ela tinha outros planos para o futuro. Felizmente, Val, seu irmão mais velho, ainda não tinha despedido nenhum de seus criados particulares, assim ela mandou um de seus eunucos ir, audaciosamente, aonde ninguém havia ido – ao campo de Átila, o Huno, que ultimamente andava mastigando as bordas enfraquecidas do Império Romano. O eunuco levou consigo o anel de Justa e um recado meloso dizendo como ela o achava fabuloso, e se ele estaria interessado num pouquinho de vingança – por uma generosa gratificação, é claro. Átila, um velho romântico no fundo do coração, disparou de volta um sim e uma proposta de casamento. Inevitavelmente, o irmão Val farejou o que estava acontecendo e tentou separar os correspondentes dizendo a Átila: “Minha irmã já está comprometida e, além disso, de qualquer modo ela não tem qualquer direito ao trono – portanto se manda”.
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Átila, o Huno, o Flagelo de Deus 

Não sendo o tipo de bárbaro que aceita um “não de jeito algum”, como resposta, Átila invadiu a Gália para demonstrar o que estava sentindo, aparecendo mais tarde na Itália para reclamar sua pouco promissora noiva. Como naquela época a Itália não tinha uma equipe da SWAT, o Papa Leão pulou no meio para negociar com o huno número um e evitar que ele queimasse Roma até os alicerces. Só Deus sabe o que poderia ter acontecido se a irascível Justa tivesse conseguido galopar para longe com Átila. Todavia, o destino sorteou o número de Átila, e ele morreu em 453 d.C., antes que esse casal estranho pudesse forjar um relacionamento ou mesmo desafogar o desejo de uma pequena vingança sórdida.   


IAIA
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Iaia de Cízico 

Nos tempos romanos, os pintores pintavam por motivos grandiosos. Certamente não era por dinheiro (uma quantia miserável na maioria dos casos) ou reconhecimento (a maioria dos pintores nem sequer podia assinar suas obras, sendo confundidos com artesãos). Iaia quebrou o molde. Originária de Cizico (hoje Turquia) no mar de Mármore, ela passou a sua vida em Roma, especializando-se em retratos pintados a óleo e gravações em marfim. Solteira e sem bolsa do Ministério da Educação, Iaia venceu por mérito. Ela tinha tantos adeptos que suas obras eram vendidas por preços mais altos do que os de seus dois contemporâneos mais conhecidos. Iaia também ficou famosa como a artista romana que desenhava mais rápido, uma benção quando se trabalha por comissões. Um século após sua morte, essa mulher com uma história de sucesso artístico ainda recebia glórias por seu autorretrato e seus estudos com letras.

- Esta foi a última postagem das “MULHERES AUDACIOSAS DA ANTIGUIDADE”, encerrando o ciclo dessas figuras femininas que fizeram história. Agradecemos à autora da obra, Vicki León, a sua tradutora Miriam Groeger, à Editora Rosa dos Tempos, por permitirem que publicássemos o teor do livro “UPPITY WOMEN OF ANCIENT TIMES”, título original inglês.
- A próxima postagem vai iniciar novo ciclo de temas do cotidiano. Agora, do livro “ARACAJU PITORESCO E LENDÁRIO”, do escritor Murillo Melins, vocês vão conhecer as principais figuras que viveram e fizeram história na capital Sergipana. O primeiro personagem explorado será INÁCIO BARBOSA, numa crônica de Zózimo Lima. Inácio, foi o fundador de Aracaju.  
- Do livro “Aracaju Pitoresco e Lendário”, de Murillo Melins, Empresa Gráfica da Bahia, 2015
- As imagens aqui reproduzidas foram retiradas do Google. 

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