Aracaju/Se,

terça-feira, 31 de maio de 2011

Mulheres da antiguidade - KUBATUM

Isto é História

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
KUBATUM
Vicki León

Depois de abrir caminho a custo através de versos sem fim de “A procriou B”, o Cântico de Salomão no Velho Testamento vem como um choque. Gerações de leitores têm pensado: amor espiritual coisa nenhuma – de onde vem todo esse erotismo? Agora a resposta parece ser: da Suméria. Embora os sumérios tenham inventado a escrita cuneiforme para facilitar a confecção de listas, logo se voltaram para tópicos mais excitantes, como sexo e amor. Um dos favoritos era o mito de Dumuzi, um ser humano que era pastor, apaixonou-se por Inanna, a deusa da lua, e conquistou seu coração e sua cama. Mesmo os eruditos usam palavras como entusiasmo erótico para descrever a literatura religiosa suméria.

Kubatum, uma sacerdotisa da cidade de Ur em torno de 2030 a.C, reviveu esse mito e escreveu sobre ele. A cada primavera, no Ano-Novo Sumério,ela e o soberano reinante faziam uma reencenação instantânea do Casamento Sagrado de Dumuzi e Inanna, para garantir que tanto as colheitas como a população local prosperassem. Kubatum tornou-se uma favorita especial do rei Shu-Sin; talvez ela o fizesse recordar sua avó Abisimti, uma mulher dinâmica que ajudou a governar Ur durante quarenta e sete anos e viveu até a idade de oitenta anos. Shu-Sin cobriu Kubatum de lindas jóias e, evidentemente, passou muito mais tempo em sua cama do que aquela única noite ardente regulamentar por ano, no alto do templo de múltiplos andares.

Em troca, além de entusiasmo erótico, Kubatum deu a Shu-Sin a imortalidade. Ela escreveu diversas canções de casamento sobre o ritual de namoro que eles compartilharam, de cujos ritmos, temas e fantasias os escritores hebreus, mais tarde, se apropriaram generosamente para compor o Cântico de Salomão. Aqui está um pedacinho típico de um verso de Kubatum:

Meu doce amado, banhe-me com mel –
No leito cheio de mel,
Vamos desfrutar o nosso amor,
Leão deixe-me acariciá-lo,
Meu doce amado, banhe-me com mel.

Embora uma cama cheia de mel possa soar como um pesadelo de lavagem a seco, Kubatum, a poeta, era evidentemente uma mulher que sabia o que queria; referências a leite e mel são eufemismos sexuais padrão na poesia romântica do Oriente Próximo.

(*) – Na próxima terça-feira, dia 7 de junho de 2011, conheça AMAT-MAMU, uma escrivã de carreira, cujo mandato estendeu-se por quarenta anos na época do Rei Hamurábi, aquele do Código de Leis, do século XVII a.C.

A Autora
Vicki León


terça-feira, 24 de maio de 2011

Leila Diniz

Grandes Personagens

Leila Diniz
Escrito por Bruno Hoffmann
Para Almanaque Brasil

Toda mulher quer ser feliz

Ela passou a breve vida em busca da felicidade, mas encontrou muitos obstáculos nessa empreitada. Sua postura libertária incomodou a direita e a esquerda, num tempo em que a patrulha ideológica dava plantão 24 horas por dia. Depois da morte, tornou-se mito. “Sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de 20 anos presas ao tronco de uma especial escravidão”, sentenciou Drummond.

Setenta e dois. Esse foi o número de asteriscos que substituíram os palavrões proferidos por Leila Diniz numa histórica entrevista ao Pasquim, em 1969. Escândalo nacional. Não só pelas palavras, mas também pela postura libertária da entrevistada de apenas 24 anos: “Tive casos mil. Na minha cama dormem algumas noites, mais nada. Nada de estabilidade”; “Você pode amar muito uma pessoa e ir pra cama com outro”; “Censura é ridículo, não tem sentido nenhum”. Por causa dessa edição, os militares baixaram um decreto que autorizava a censura prévia à imprensa – apelidado de “decreto Leila Diniz”.

A sua maneira espontânea – num tempo de patrulhas ideológicas para todos os lados – angariou antipatias. Os militares diziam que a atriz atentava contra os bons costumes. Os telespectadores prometiam nunca mais assistir a novelas em que ela estivesse presente. As feministas esbravejavam. Uma líder feminista afirmou: “Ser mulher é mais do que sair dando por aí”. Um diretor da Globo foi além: “Não estamos pensando em colocá-la na próxima novela. Não tem papel de prostituta”.

A beleza fora do comum, talento nas interpretações e carisma hipnotizante atraíam os holofotes. Mas a Leila de fora das telas sempre provocou mais comentários. Em 1971, causou escândalo novamente ao aparecer em capas de revista de biquíni, com uma enorme barriga de seis meses de gravidez. No livro Ela É Carioca – Uma enciclopédia de Ipanema, Ruy Castro descreve: “As grandes massas nunca tinham visto aquilo. Hoje pode soar absurdo, mas choveram protestos, indignação e repulsa contra o gesto de Leila. Falou-se
em deboche contra a maternidade, em afronta à Virgem Maria. Mas o grande problema não era a gravidez nem o biquíni. Era Leila Diniz”.

De professora a mito

Leila nasceu em 25 de março de 1945, em Niterói. Aos 15 anos, tornou-se professora de maternal e jardim de infância. Quem via a linda professora, rodeada de anjinhos e pestinhas, não poderia imaginar o furor que causaria poucos anos depois. Mas já havia indícios. Na sala de aula, aboliu a mesa de professor e adotou uma igual à dos alunos. Mesmo com reclamações dos pais, tratava os pimpolhos de igual para igual. Ela os adorava, e a recíproca era verdadeira.

Domingos
de Oliveira
Aos 17 anos, conheceu o cineasta Domingos de Oliveira, apaixonou-se e foram viver juntos. Pouco tempo depois faria a sua primeira peça de teatro. Também passou a ser convidada para novelas, principalmente da Tupi, Excelsior e Globo. Mas o cinema era a sua paixão. Fez parte de muitos filmes: Todas as Mulheres do Mundo, O Homem Nu, A Madona de Cedro. Sem preconceitos, atuava em filmes históricos como Corisco, o Diabo Loiro, de Carlos Coimbra, e comédias deslavadas, como O Donzelo, de Stefan Wohl. “Eu faço qualquer coisa que me dê alegria e dinheiro, seja Shakespeare ou Glória Magadan”, dizia. Ao todo, participou de 14 filmes.

Lá pelo fim dos anos 1960, Leila já era uma pessoa conhecida, mas depois da entrevista ao Pasquim, a coisa mudou de ares. Os convites para novos papéis passaram a ficar raros, e ela se assustou. O dinheiro minguava a cada dia. A moça até aceitou ser jurada do programa de Flávio Cavalcanti, dando notas aos aspirantes a cantores.

A carreira no cinema continuava. No começo dos anos 1970, assumiu papéis de destaque em filmes como Mãos Vazias e Amor, Carnaval e Sonhos. A despeito do preconceito que sofria, continuava a viver com liberdade. Saiu com os homens que quis – e não foram poucos. Seu jeito avançado atraía muitos interessados. Alguns desinformados a viam como uma mulher fácil. Não percebiam que era ela quem escolhia com quem sairia, não o contrário. Houve até quem oferecesse dinheiro por uma noite com ela. Para um empresário paulista, deu uma resposta categórica: “Eu me deito com todo mundo. Mas não com qualquer um”.

Toda mulher é meio Leila Diniz


Um dia, Leila decidiu que era hora de ser mãe. Escolheu o cineasta Ruy Guerra como pai, escandalizou o País com a barriga de fora, foi eleita a grávida do ano no programa do Chacrinha e deu à luz a Janaína. O amor pela filha era de devoção – talvez uma forma de compensar ter sido abandonada pela mãe aos sete meses de vida. Em junho de 1972, viajou para receber o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema da Austrália por Mãos Vazias, de Luiz Carlos Lacerda. Adiantou a volta em um dia, por saudade de Janaína. Mas o avião em que viajava explodiu sobre Nova Déli, na Índia. Tinha apenas 27 anos; Janaína, sete meses – por uma coincidência trágica, a mesma idade em que a mãe de Leila a abandonara.

A morte comoveu o País. Surgiram canções em sua homenagem: Leila Diniz (Martinho da Vila e Nei Lopes), Coqueiro Verde (Erasmo Carlos). Em Todas as Mulheres do Mundo, Rita Lee canta: Toda mulher quer ser amada / Toda mulher quer ser feliz / Toda mulher se faz de coitada / Toda mulher é meio Leila Diniz. Tornou-se também uma espécie de símbolo da liberdade feminina. O poeta Carlos Drummond de Andrade resumiu: “Sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de 20 anos presas ao tronco de uma especial escravidão”.


Almanaque Brasil


Mulheres da Antiguidade - Enheduana

Isto é História

Mulheres Audaciosas da Antiguidade
ENHEDUANA
Vicki León
Há mais de 4.300 anos, a primeira autora do mundo a ser conhecida por nome iniciou seu trabalho criativo. Poeta e sacerdotisa, ela era filha do rei Sargão de Acad, um grande nome dos primórdios da história da Suméria.
As pequenas cidades independentes da Suméria tinham prédios de telhados planos agrupados ao redor do complexo de um templo com uma pirâmide em degraus denominada zigurate. Nesses dias distantes, dois grupos raciais manobravam para se colocar numa situação melhor – os sumérios e os semitas. No tempo de Enheduana, os semitas governaram graças a seu pai. Um garoto de fazenda, Sargão, de um pulo passou a copeiro real e depois a rei da Suméria e Acad. Além de seu status de “princesa judia” antes mesmo que os judeus existissem, Enheduana herdou uma parte leonina da ambição e energia do papai. Como suma sacerdotisa do deus da lua Nanna de Ur, ela ocupou a posição mais alta, do ponto de vista religioso, por mais de duas décadas. Além de preces e profecias, a alta sacerdotisa era estrela de um drama a cada primavera. No último andar do templo onde Enheduana vivia, ela e o rei vigente brincavam de noivo e noiva, reencenando o “casamento sagrado” para garantir a contínua prosperidade da cidade.
Esse rito do casamento sagrado era complicado; os participantes realmente o consumavam, mas apenas certos comportamentos de alcova eram considerados kosher (a sacerdotisa não devia ficar grávida, portanto “kosher” queria dizer coito anal e estratégias similares). Certa vez, Lugalanne, governante e sumo sacerdote da cidade vizinha de Uruk, e cunhado de Enheduana, desempenhou o papel de noivo com um entusiasmo excessivo. Mais tarde Enheduana escreveu sobre seu comportamento e ainda por cima amaldiçoou sua cidade. Ela não era uma mulher para brincadeiras, casamento sagrado ou não.

Além de seus deveres sacerdotais, Enheduana escrevia poesia e prosa; seus quarenta e dois hinos em louvor aos templos da Suméria e Acad ainda existem. Além de possuir mérito poético, eles ajudam a explicar as crenças teológicas sumérias. Seus poemas eram muito populares, tanto em sua época como mais tarde. Registradas em argila, foram encontradas cinqüenta “cópias” de um de seus poemas – quase o dobro do número de cópias descobertas de outros hinos mais conhecidos.
Após a morte de seu pai, os misteriosos irmãos gêmeos de Enheduana, que não se sabe de onde saíram se revezaram no trono, seguido de seu perverso sobrinho Naram-Sin, que a expulsou do seu posto – bum! Nem benefícios, nem nada – e instalou sua própria filha como suma sacerdotisa. Sem se deixar abater, Enheduana usou seu expulsor como matéria-prima para seu trabalho, provando mais uma vez que a caneta é mais poderosa do que o bilhete azul da demissão:

(A mim) que uma vez sentei triunfante, ele expulsou do santuário.
Fez-me voar da janela como uma andorinha,
Minha vida está destruída.
Ele me despiu da coroa apropriada ao sumo sacerdócio.
Deu-me punhal e espada – e me disse: “Caem-lhe bem”.

(*) – Na próxima terça-feira, dia 31 de maio de 2011, conheça KUBATUM, uma sacerdotisa da cidade de Ur, na Suméria, que viveu em 2.030 a.C. e que se tornou a favorita especial do rei Shu-Sin.

A Autora
Vicki León

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Mulheres da antiguidade - Kubaba

Isto é História


Mulheres Audaciosas da Antiguidade
KUBABA
Vicki León



Os sumérios que viviam entre os barrentos rios Tigre e Eufrates, na plana e quente como pimenta jalapeño Mesopotâmia (hoje em dia Iraque), adoravam a ordem. Eles eram grandes escritores de listas, e todo esse esforço despendido com escritas parecia lhes dar uma intensa sede que saciavam com cerveja de cevada. Homem, mulher e criança, os sumérios adoravam suas cervejas espumantes. Eles até tinham um slogan: “A cerveja faz o fígado feliz e enche o coração de alegria”. Havia um fundamento lógico razoável para tal entusiasmo. Nos tempos antigos, havia uma grande possibilidade de que a água fizesse com que todo o seu organismo se sentisse infeliz. Por outro lado, a espessa cerveja de cevada era relativamente livre de germes e também nutritiva, mesmo que você tivesse de bebê-la através de um tubo. A religião era popular entre os sumérios, mas eles provavelmente freqüentavam mais as tavernas do que os templos. As mulheres dominavam o ciclo da cerveja: elas produziam e vendiam a maior parte dela, e bebiam sua justa parcela.
Kubaba, uma senhora esperta e robusta que tinha uma taverna na cidade suméria de Kish, vivia a mais ou menos oitenta e oito quilômetros da moderna Bagdá. Naquela época, como hoje, as tavernas tinham fama de turbulentas, cobrar preços altos e servir bebidas aguadas. Embora as sacerdotisas tivessem tanta sede quanto qualquer outro sumério, elas eram proibidas por lei de fazer uma parada para tomar uma geladinha. A penalidade era um pouco severa: morte! Contudo, como mostram as listas de rações, as sacerdotisas bebiam cerveja diariamente, assim, era provável que os botequineiros fizessem entregas de cerveja nos templos.
A própria Kubaba tinha ambições mais elevadas do que ficar tirando chope e encenar a versão local do seriado Cheers. Possivelmente com a ajuda de promessas de alguma campanha regada a cerveja, ela conseguiu se tornar rainha de Kish, conquistando o trono em torno de 2500 a.C. (A falta de maiores detalhes não é fora do comum – do mesmo modo ninguém tem a menor pista de como Sargão, o Grande, saiu de suas origens humildes para se tornar em determinada época um dos reis mais famosos da Suméria). Não sendo do tipo de cair no barril de cerveja, soberana de um mandato, Kubaba chegou ao auge e lá ficou. Seus filhos a sucederam, e a dinastia por ela fundada durou cem anos.
Durante seu mandato, Kubaba “fortaleceu as fundações de Kish”. Soa como um reassentamento pós-terremoto, mas isso significa que ela estendeu seu controle político a outras partes da Suméria. Mas a dona do barril nunca esqueceu seu passado de cervejaria. Na lista oficial de reis sumérios, que permanece até hoje, ela simplesmente se autodenominou “Kubaba a mulher da cerveja”. Contrastando com a linguagem bombástica de “Ei! Eu sou a maior!” da maioria dos soberanos antigos. Isso é que é classe.

(*) – Na próxima terça-feira, dia 24 de maio de 2011, conheça ENHEDUANA, poeta e sacerdotisa, filha do rei Sargão de Acad, que viveu na Suméria há mais de 4.300 anos.

Adendo
Durante séculos, o local mais refrescante (literalmente e de outras formas) no belo centro comercial da Babilônia eram os Jardins Suspensos, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Freqüentemente, a rainha Semíramis recebe crédito por sua criação, mas, como o Taj Mahal, os jardins foram construídos por um homem pelo amor de uma mulher. Amytis, uma moça natural da Média que se casou com o rei Nabucodonozor e se tornou rainha da Babilônia, sentia saudades das verdes colinas de sua terra natal, assim, o rei pôs mãos à obra, a fim de lhe oferecer uma realidade virtual na versão do século VI a.C. Os jardins podem ter parecido um zigurate suavemente esmeralda, pirâmides em degraus que os babilônios construíam tão bem. Depois das planícies de calor escorchante da Babilônia, Amytis deve ter chamado as fontes, flores e terraços cheirosos dos jardins de um pedaço do paraíso.


A Autora
Vicki Leon

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Foro versus Floro-O crime precipitado pela vítima

Artigo pessoal

Floro versus Floro
O Crime Precipitado pela Vítima
Clóvis Barbosa 
Floro Calheiros
A bíblia ensina que “assim como algumas moscas mortas podem estragar um frasco inteiro de perfume, assim também uma pequena tolice pode fazer a sabedoria perder todo o valor” (Ec 10,1). É o caso ocorrido recentemente com a morte do polêmico Floro Calheiros, que viveu em Sergipe e é acusado de se envolver com vários crimes ocorridos no Estado, como os assassinatos do ex-deputado estadual Joaldo Barbosa e do agiota João Vieira da Mota, o Motinha, do atentado perpetrado contra o desembargador Luiz Mendonça, então Presidente do Tribunal Regional Eleitoral e do roubo de urnas no município de Canindé. Também é acusado da prática, como mandante, de vários crimes ocorridos no Estado da Bahia. Com várias prisões preventivas decretadas, foi por duas vezes preso e por duas vezes fugiu cinematograficamente de Sergipe. Era um homem caçado pelas polícias militares e civis da Bahia e Sergipe e pela Polícia Federal. Repentinamente, com a proximidade do júri do crime de Motinha, do qual ele era um dos réus, tido como mandante, era preciso armar uma estratégia que o privilegiasse e desmistificasse todo o arsenal de acusações que existia contra ele, divulgando que tudo seria uma armação de autoridades sergipanas ligadas ao judiciário, ao Ministério Público e ao aparelho policial do Estado. Era preciso passar a imagem de um homem que era vítima do sistema. Era o discurso da vitimologia, em uso no nosso arcabouço penal desde o fim da Segunda Grande Guerra e que teve no caso Doca Street um de seus maiores exemplos.

Ângela Diniz e Doca Street
Todos se lembram do crime da pantera Ângela Diniz, assassinada pelo seu marido Doca Street. No julgamento pelo Tribunal do Juri, na cidade de Cabo Frio, Rio de Ja-neiro, o advogado de defesa, saudoso Evandro Lins e Silva, sustentou, com êxito, que a vítima influenciou de forma decisiva para o evento, dada as suas ações provo-cadoras, representadas por afrontas, humilhações e insultos direcionados ao acusado. A expressão vitimologia, ou o crime precipitado pela vítima, foi pela primeira vez utilizada por Marvin Wolfgang, que publicou na Philadelphia, em 1956, um trabalho de pesquisa intitulado Patterns in Criminal Homicide, onde demonstra, empiricamente, de que há pessoas com tendências a se converter em vítimas, sempre desempenhando um papel de incitador da violência contra si mesmo, contribuindo com a ação do criminoso, seja pela inspiração ou facilitação do crime. Portanto, a vítima é sujeito ativo no crime perpetrado contra ela própria. Ela é partícipe e desenvolve forte influência no evento. Pois bem, no caso Floro, era preciso utilizar-se de um meio de comunicação, de preferência um jornal de grande circulação, que pudesse levar aos sergipanos depoimentos bombásticos contra autoridades e passar a imagem de um homem perseguido. Em três edições, o jornal Cinform publicou a longa entrevista da vítima, que negava a prática de todos os crimes de que era acusado e que tudo não passava de uma trama urdida para incriminá-lo, chegando a citar nomes de autoridades que tinham interesse em destruí-lo.

Sigmund Freud

Mas não bastava a entrevista. Era preciso dá-la repercussão. Os programas radiofônicos matinais foram bombardeados por entrevistas de porta-vozes e assessores da pretensa vítima das autoridades sergipanas. Em todas elas, tentava-se resgatar a “dignidade” de Floro Calheiros, colocando-o como um homem bom, um exemplar pai de família e que só estava tentando se defender de toda uma armação insana prepa-rada em Sergipe para denegrir a sua imagem. Mas deu tudo errado e o resultado foi a sua morte na cidade baiana de Barreiras. E por que nada deu certo? É que os engenheiros da estratégia não leram Freud, mais precisamente O Mal-Estar na Cultura, escrito por volta de 1930, considerado um dos mais perturbadores ensaios sobre o desenvolvimento cultural da humanidade. Toda e qualquer mudança no status quo deve ser precedida de um período chamado de amadurecimento cultural. A sociedade não está preparada para engolir goela abaixo decisões e conceitos inesperados. Ela precisa de um tempo para se adaptar à nova realidade. Como, de um dia pra noite, toda uma historia de crime patrocinado por Floro iria acabar no subconsciente coletivo? Nada se acaba num estalar de dedos. Segundo Freud, o indivíduo é inimigo da civilização, já que em todos os homens existem tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais, ela, a civilização, é obrigada a travar uma luta constante contra o homem isolado e sua liberdade, até para substituir o poder daquele, o indivíduo, pelo poder da comunidade.
Millor Fernandes
Foi desastroso, portanto, todo o esquema utilizado no caso Floro. Esqueceu-se que do outro lado tinha um grupo de estudiosos e competentes Promotores de Justiça. Esqueceu-se que do outro lado tinha a sociedade, ainda traumatizada com o inexplicável atentado sofrido, não pelo Desembargador Luiz Mendonça, mas por um Poder instituído e imprescindível na democracia, o Judiciário. Sim, porque o crime foi ousado, desmoralizante, e pela segunda vez. Na primeira, atingiram o símbolo da vontade e da soberania popular – a urna, que foi roubada e depois queimada no município de Canindé do São Francisco. A democracia, nesses dois crimes, foi ultrajada e vilipendiada. O resultado da estupidez foi o adiamento do júri e o aperto do cerco a Floro Calheiros, culminado na sua morte no interior da Bahia. Se Floro nada devia, não participou de todo e qualquer crime, como dito nas entrevistas, o bom senso aconselhava a ele se entregar e responder aos processos instaurados. Se não acreditava nas autoridades sergipanas, que o fizesse perante o Ministério da Justiça. Preso e talvez mais tarde respondendo em liberdade, ele continuaria a dirigir os seus negócios. Floro, ao lançar mão do crime para justificar a perseguição sofrida, terminou justificando o principio da vitimologia na sua própria morte, contribuindo, ele próprio, para a ocorrência do evento. A estratégia arquitetada foi inopinada, despreparada, muito rápida e destituída de qualquer anteparo psicológico e, como bem dito por Millôr Fernandes, “chama-se de decisão rápida nossa capacidade de fazer besteira imediatamente”.

** Publicado no Jornal da Cidade, Edição de domingo e segunda-feira, 17 e 18 de abril de 2011, Caderno A, p. 7.
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