Aracaju/Se,

segunda-feira, 9 de março de 2015

Colheita Maldita

Artigo pessoal
Colheita Maldita
Clóvis Barbosa
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Já contei aqui neste espaço o ataque que sofri quando no twitter me solidarizei com o povo da Somália (“Honra teu pai”, edição de 25 e 26 de dezembro de 2011, Caderno A, pág. 7). Relembro: irresignei-me com a situação dos refugiados de Badbaado, o maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália. Viam-se bebês de poucos meses de nascidos, em pele e osso, olhos vidrados, com moscas passeando sobre os seus rostos cansados pela fraqueza causada pela fome, que não lhes davam força, sequer, para chorar. A África possuía 10 milhões de famintos, distribuídos em Djibuti (120 mil), Etiópia (4,6 milhões), Quênia (2,4 milhões) e Somália (2,8 milhões). Os jornais informavam que um cidadão, Iman Abdi Noono, de 60 anos, caminhou com a família por dez dias para escapar da seca que matou todo o seu rebanho garantidor da sua subsistência. Seguiu em direção à capital da Somália em busca de alimentos e na caminhada viu seis dos nove filhos morrerem de fome. “Carreguei o último nas costas e achei que iria salvá-lo. Mas ele morreu pouco depois de chegarmos”. A Somália tinha uma população de 9,9 milhões de habitantes. Está localizada no chifre da África.  A mortalidade infantil atingia, em 2011, 105,6 mortes a cada mil nascidos vivos, o saneamento básico chegava à apenas 23% da população e a renda per capita era de US$ 600. Havia uma insana disputa armada que rachou o país ao meio, de um lado um governo incapaz, de outro o fanatismo da milícia islâmica Al Shabab. Para piorar, os problemas climáticos ligados à seca assolavam o país de norte a sul sem qualquer perspectiva de solução em curto prazo. Pobre África, continente dos nossos antepassados. Passam-se os anos e a situação continua cada vez mais piorando. Pobre planeta onde se prevê para 2020 uma massa de 1 bilhão e 300 milhões de pessoas passando fome. As crianças subnutridas somarão 132 milhões, um pouco abaixo dos 166 milhões de 1997.
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O jornalista Philip Gourevitch mora em Nova York. Integra o quadro de escritores da revista The New Yorker e é editor do Paris Review. É dele a obra “Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias”, onde ele conta a história de um dos maiores genocídios ocorrido na humanidade, comparável apenas ao Holocausto. Numa guerra civil insana, patrocinada pelo governo de Ruanda, um país sem costa marítima e situada na região dos Grandes Lagos da África, vizinha de Uganda, Burundi, Congo e Tanzânia, a maioria hutu massacrou a minoria tutsi. Mais de um décimo de sua população foi exterminado; 800 mil pessoas foram mortas em apenas 100 dias do ano de 1994, geralmente cortadas com facão. Fatos como os de Ruanda, um dos episódios mais terríveis de nosso tempo e de tantos outros ocorridos durante a história universal nos leva a uma conclusão terrível: a de que a humanidade faliu. O próprio Gourevitch, quando começou a viajar para Ruanda, a partir de 1995, conheceu um pigmeu com quem manteve um diálogo impressionante. Dizia o pigmeu: - “Existe um romance. O livro é O morro dois ventos uivantes. Está me acompanhando? Esta é minha teoria mais geral, Não interessa se você é branco ou amarelo ou verde ou um negro africano. O conceito é o homo sapiens. O europeu está num estágio tecnológico avançado, e o africano está num estágio mais primitivo de tecnologia. Mas toda a humanidade precisa se unir na luta contra a natureza. Este é o princípio de O morro dos ventos uivantes. Essa é a missão do homo sapiens. Concorda comigo?”. O jornalista respondeu: “estou ouvindo”. E o pigmeu continuou: “A luta da humanidade para subjugar a natureza é a única esperança. É o único caminho para a paz e a reconciliação; toda a humanidade unida contra a natureza”. Retrucou o jornalista: “Mas a humanidade faz parte da natureza, também”. “Exatamente”, disse o pequeno ruandês. “É exatamente esse o problema”.
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A gente sabe que a indústria do extermínio teve o seu auge na Alemanha com a ajuda de aliados sinistros que também torciam o nariz para os judeus. A maldade humana ainda predomina. Tudo está perdido? Não, há quem reaja, há quem sonhe. Existem pessoas que dão o melhor de suas vidas em tudo que fazem. Outros vivem, como parasitas, para se aproveitar. Lennon, que fez parte dos Beatles, escreveu uma música que é um hino pela paz de todos os tempos: Imagine. Veja a letra: Imagine que não exista nenhum paraíso. É fácil se você tentar. Nenhum inferno abaixo de nós, sobre nós apenas o firmamento. Imagine todas as pessoas vivendo pelo hoje. Imagine que não exista nenhum país, não é difícil de fazer. Nada porque matar ou porque morrer, nenhuma religião também. Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz. Imagine nenhuma propriedade, e eu me pergunto se você consegue. Nenhuma necessidade de ganância ou fome, uma fraternidade de homens. Imagine todas as pessoas compartilhando o mundo todo. Você talvez diga que sou um sonhador. Mas eu não sou o único. Eu espero que algum dia você junte-se a nós, e o mundo viverá como um único. Como seria bom que nós sonhássemos este sonho juntos. Não tenho dúvida que o mundo seria bem melhor: Lembre-se de Tiago na sua epístola. “Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a nossa vida? Sois, apenas, como a neblina que aparece por instante e logo se dissipa”.  Não precisamos aliciar as nossas crianças para matar os adultos objetivando assegurar uma grande colheita, como no filme que empresta o seu nome ao título deste artigo. Esta será sempre uma colheita maldita. Se for verdade que o ser humano teria uma propensão para o mau, como diz Kant, apesar de uma disposição original para o bem, este, o bem, é que temos de explorar.  Ainda há tempo para mudar, a não ser que queiramos que de cada criança morta, nasça um fuzil com olhos que termine por nos achar o coração.

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 9 e 10 de junho de 2013, Caderno A, página 7.
- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE,  em 9 de junho de 2013, às 15:42horas:
http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=5829&t=colheita-maldita

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