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quarta-feira, 6 de março de 2019

A Teoria dos Sistemas, a Operação Lava Jato e a Carta Aberta de 104 Juristas

Opinião pessoal



A Teoria dos Sistemas
A Operação Lava Jato
A Carta Aberta de 104 Juristas

Clóvis Barbosa e Adir Machado
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Em 1925, o biólogo Ludwig Von Bertalanffy começou a traçar as primeiras linhas da chamada teoria de sistemas. Uma de suas principais contribuições para humanidade foi o rompimento com a visão cartesiana do universo, substituindo-a por uma visão sistêmica, onde o organismo é um todo maior que a soma de suas partes. Propôs a superação de um conhecimento fragmentado por estudos globais, de forma a perceber todas as interdependências dos seus elementos. Assim, dentro do sistema, as partes assumem qualidades que não as tinha quando consideradas isoladamente. Cientistas como William Ross Ashby, Robert L. Kahn e Alan Turing levaram esta inovação para outras áreas do conhecimento como a medicina, a administração e a ciência da computação. Não demorou muito e surgiram juristas como Claus Wilhelm Canaris, Niklas Luhmann, José Joaquim Gomes Canotilho e Tercio Sampaio Ferraz Junior, dentre outros, afirmando também o direito como sistema. Os tradicionalistas kelsenianos entendem o direito como um sistema fechado, ou seja, que não sofre influência do meio ambiente no qual está inserido, de tal forma que se alimenta dele mesmo. Como diz Tercio, nesse sentido, o direito basta a si mesmo, não precisa de mais nada, pois tem dentro de si todas as condições para realizar aquilo a que se propõe. O jusfilósofo ainda ressalta que essa concepção do direito gera uma incapacidade da teoria jurídica compreender a interação do sistema com seu meio ambiente. Modernamente, o pensamento majoritário é no sentido de que o direito é um sistema aberto, que sofre influências do ambiente onde está inserido. Interações estas que podem ser positivas ou negativas, gerando a necessidade de uma auto regulação regenerativa. Os sistemas abertos têm como características, dentre outras, a resiliência, a morfogênese, o comportamento probabilístico, a homeostasia e a adaptabilidade.
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Professor J.J.Gomes Canotilho
Por resiliência se entende que o sistema jurídico tem a capacidade de superar o distúrbio imposto por um fenômeno externo. Aliás, tem o poder de se modificar e se corrigir para obter melhores resultados (morfogênese). Tudo isso sem que se possa falar de uma relação de causa e efeito determinista, vez que as variáveis externas muitas vezes são desconhecidas e imprevisíveis. Portanto, as consequências das variáveis externas no ambiente jurídico são probabilísticas e não determinadas. É isso que se chama comportamento probabilístico. Contudo, destaca-se aqui a homeostasia. Ela garante ao sistema aberto a tendência e a capacidade de se manter em equilíbrio. Vale dizer, o sistema se auto regula garantindo a sua própria permanência. Esta mesma permanência muitas vezes depende de uma ruptura, de mudanças e de inovações. A capacidade do sistema de utilizar-se da novidade e do atendimento a novos padrões para se manter viável dá-se o nome de adaptabilidade. Rotina e ruptura. Estabilidade e mudança. Ambos os processos precisam ser levados a cabo pelo sistema para garantir a sua viabilidade. O tema é complexo, mas Canotilho é exemplo de clareza ao expor os motivos de sua defesa do sistema jurídico constitucional como aberto. Para o mestre português isto ocorre porque as normas constitucionais têm disponibilidade e “capacidade de aprendizagem” para captarem as mudanças da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da “verdade” e da “justiça”. Depreende-se da lição que o tido como “verdadeiro” ou “justo” é mutável. Já Niklas Luhmann e Tercio Sampaio possuem idéias mais rebuscadas acerca da matéria, exigindo maior esforço para a compreensão. Luhmann entende o direito como um sistema autopoiético, autônomo e dinâmico, que se mantém interagindo com o meio onde este desencadeia mudanças na estrutura daquele realizadas pelo próprio direito e não por um agente externo.
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Professor Tércio Sampaio Ferraz
Tercio vê o direito como um sistema circular, formado por conjuntos de elementos ou sistemas relacionados entre si, a partir de regras de relacionamento. O sistema constitui limite entre limites, revelando um aspecto interno e outro externo. O aspecto externo é um outro sistema, isto é, todo sistema é limitado por outros sistemas. Mas ao está limitado por outro sistema, ele está aberto para o mesmo, na medida em que estão em comunicação. Essa idéia de sistema não é dedutiva e piramidal como tradicionalmente apresentada para traduzir o fenômeno jurídico. A primeira característica desse sistema circular é a importação de energia do meio ambiente, utilizando-a como ponto de partida. Isso significa dizer que o direito tira elementos do sistema externo e os traz para dentro de si. Além disso, esse sistema circular transforma a energia importada em novo produto e a lança para fora. Uma terceira característica é a entropia negativa, ou seja, enquanto sistema vivo e tendente à morte e à desintegração, se mantém ativo por meio da retro informação, obtida em contato com o seu meio ambiente. Este sistema se estabelece por meio da diferenciação e autonomia. Diferencia-se porque cria uma história própria, mas sem isolamento, pois o direito continua em comunicação com o mundo circundante. A autonomia significa a seleção das informações que vem de fora, controladas pelo próprio sistema. Os acontecimentos do mundo circundante deixam de ser automaticamente aceitos no momento em que o sistema está diferenciado. Por sua vez, autonomia não significa autarquia, mas tão somente regulação do que entra e sai do sistema, sem se bastar. Além disso, para Tercio, não basta diferenciação e autonomia, é necessário que haja diferença real de sentido. Ter sentido realmente diferenciado significa estabilizar o sistema em dois níveis diferentes de generalização.
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Lenio Luiz Streck explica a Carta
O primeiro reclama que o sistema seja reconhecido genericamente como instituição e não dependa de cada procedimento particular para que ele subsista, de tal forma que as falhas existentes não perturbem o sistema institucionalizado. “Pode haver um processo em que se constata uma falcatrua, mas, nem por isso todo o processo está condenado.” O segundo nível de generalização impõe que cada procedimento particular, apesar da institucionalização, tenha certa margem de liberdade de ação. Se o sentido e a certeza para toda e qualquer procedimento fossem rígida e fixamente estabelecidos, sem qualquer margem de liberdade e flexibilização dos procedimentos particulares, o sistema deixaria de ser autônomo e autorregulado para ser dirigido de cima pra baixo, ou mesmo controlado por outro sistema. “Se criarmos um sistema em que o juiz está obrigado a decidir daquele jeito, que já foi decidido previamente, o sistema não é autônomo.” É necessário ter em mente toda esta visão do direito como sistema aberto quando se pretende analisar a “carta aberta em repúdio ao regime de supressão episódica de direitos e garantias verificado na operação lava jato”, escrita por 104 grandes advogados, professores e juristas brasileiros, dentre eles Aury Lopes Jr., Celso Antônio Bandeira de Mello, Cezar Roberto Bitencourt, Fernando da Costa Tourinho Neto, Gilson Dipp, Gustavo Badaró, Lenio Luiz Streck, Wedy Nabor Bulhões e Nilson Naves. Sem uma análise sistêmica corre-se o risco de dar razão aos juristas ou a Sergio Moro sem considerar o conjunto dos elementos e suas relações entre si no sistema jurídico nacional. O título da carta é emblemático quando se refere ao caráter episódico da alegada supressão de direitos. Estamos, pois, tratando de algo que os juristas subscritores da carta admitem pontual e não de uma característica fundamental do sistema.
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Por sua vez também importa entender que a Lava Jato é episódica, vez que é uma “operação” e não um procedimento comum, dentro da curva. Aliás, não é nem mesmo uma operação como outra qualquer. É, nas palavras do Ministério Público Federal, “a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve”. O documento reclama basicamente de um sistemático desrespeito à presunção de inocência, ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da jurisdição e ao princípio do juiz natural. Repudia ainda o desvirtuamento do uso da prisão provisória, o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e o desrespeito às prerrogativas da advocacia. O contra ataque da defesa tem conteúdo grave e merece atenção. Percebe-se da carta ainda um ressentimento concentrado no uso indevido da mídia como suporte para as medidas tomadas pelo juiz Sergio Moro e pelos Procuradores da República atuantes na Operação Lava Jato, inclusive como instrumento da conquista da sociedade em apoio à manutenção das prisões decretadas. Alguém tem dúvida que o caso de corrupção apurado pela Lava Jato, sob o ponto de vista dos valores e pessoas envolvidas, é um ponto fora da curva? Há dúvidas que os bilhões roubados desse país é o maior escândalo criminoso apurado por um magistrado de primeiro grau? Há dúvidas de que é o caso com o maior número de poderosos, política e economicamente, no banco dos réus? Há dúvidas de que não fosse o apoio da sociedade as pressões sobre Moro teria muito mais força? Se as respostas às questões anteriores forem negativas, ter-se-á de admitir que a organização criminosa ali envolvida se constitui num elemento que desequilibrou o sistema, tanto que suas ações e persecução repercutem no presente e futuro político e econômico do país.
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Mas para analisar o tema sistemicamente não podemos focar nossa atenção apenas no elemento corrupção e na indignação que ela nos provoca. Isso corresponderia a uma análise fragmentada e não global, gerando o risco da repetição de um erro histórico que é a defesa de que os fins justificam os meios. Seria dar razão ao juiz Moro sem analisar o fenômeno sistemicamente. Alguém duvida que o juiz Sergio Moro é um exemplo de coragem e obstinação ao decidir tão duramente contra pessoas hiper poderosas? Alguém duvida que os réus da Lava Jato dominam parte da estrutura do próprio Estado, dificultando esse mesmo Estado na busca por suas responsabilizações? Se a resposta para as indagações anteriores forem negativas ter-se-á de admitir, como fez Canotilho, que o direito captou a realidade que se apresentava e se adaptou, modificando o que era justo para manter vivo o sistema. Havemos de lembrar que é de se esperar que o sistema busque eliminar os fatores que o deteriore para se manter em equilíbrio. Se as atitudes e o poder dos réus desequilibraram o sistema, as medidas repudiadas pela carta mencionada não foram um abuso em si, mas uma auto regulação. As medidas inovadoras e episódicas tomadas na Lava Jato foram rupturas necessárias para atender um ponto fora da curva. É razoável pensar, com apoio na teoria dos sistemas, que diante de situação excepcional, cabe medidas não usuais de igual natureza como resposta, ao menos até que o sistema volte à normalidade. Não falamos aqui de um direito penal do inimigo, mas de uma homeostase natural, própria dos sistemas abertos. Não se trata de defender que os fins justificam os meios, mas compreender que o direito e suas normas não se bastam em si mesmos. Pelo contrário, interage com os demais sistemas e se adapta.
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Pudéssemos limpar a corrupção com a velha vassoura deixada por Jânio e dispensar o moderno Lava Jato, a carta aberta faria todo sentido.


Clóvis Barbosa de Melo é advogado. É atualmente conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe.
Adir Machado Bandeira é advogado. 


- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, domingo, 15 de fevereiro de 2016, Caderno A-7. 
- Postado no site NE Notícias, Aracaju-SE, em 15 de fevereiro de 2016, às 04:44:


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