Aracaju/Se,

segunda-feira, 25 de março de 2019

AMIGO INIMIGO

Opinião


AMIGO INIMIGO

Clóvis Barbosa
Resultado de imagem para amigo inimigo 
Estou particularmente seduzido pelo insight do governo pluripartidário. A lição não é nova. Barack Obama, todavia, rejuvenesceu a ideia. Reconheçamos que a iniciativa não partiu dele, mas de Colin Powell, que identificou no democrata o perfil ideal para o futuro presidente ianque. Nada demais, não fosse o fato de Powell ter sua ideologia tracejada segundo o cânon do republicanismo. Isso sem mencionar que ele ocupou o destacado cargo de secretário de estado numa administração pré-cambriana como a de George Bush. Numa palavra, Obama e Powell, pelo menos até antes da assunção do primeiro ao governo norte-americano, eram adversários. Até que Obama, sem sucesso, tentou contar com o general da reserva no seu governo. Mas por quê? Elementar. Porque, como ensinava o ex-presidente Abraham Lincoln, a melhor maneira de aniquilar um inimigo é transformá-lo num amigo. A história está repleta de lições nesse sentido. 22 de junho de 1941, Londres. Dia em que Churchill manifestou irrestrita solidariedade aos soviéticos, cujo país acabara de ser invadido por Hitler. John Colville, secretário do premiê, entretanto, assombrado com a teórica incoerência do chefe – consistente em aliar-se com os comunistas que, no passado, quis ver esganados – censurou Churchill antes de ele começar o pronunciamento pelo rádio. Diante disso, o experiente primeiro-ministro, na altura dos seus 66 anos, não poderia perder a oportunidade de dar uma lição no assessor. “Meu filho, se Hitler invadisse o inferno, eu, no mínimo, faria uma referência favorável ao diabo”. Qual a lógica de Churchill? Compor com um antigo inimigo (Stalin) para assegurar a governabilidade mundial. Ambos tinham encontrado um inimigo externo comum, que afetava interesses também comuns. Daí a inevitabilidade da coalizão, até como garantia de manutenção da paz pós-guerra. 
Resultado de imagem para amigo inimigo
A chave do poder, em situações desse naipe, está consubstanciada na permanente vigília que o inimigo impõe. Mas não só. O matiz de governabilidade, que busca formar um correligionário no inimigo, também parte da premissa segundo a qual este apresentará mais produtividade do que aquela que seria contabilizada pelo amigo. Por quê? Porque o amigo supõe que a contrapartida que ele tem para oferecer ao governante estimado é, única e exclusivamente, a amizade. Acontece que, em política, as relações são de complexidade subliminar. Seu feixe enrijece-se na medida em que elas se aperfeiçoam, encontrando fundamento na capacidade e na competência. Malgrado a etnia os aproximasse, a aliança entre ingleses e americanos foi posterior àquela que se testemunhou entre ingleses e russos, inimigos de antanho. Naquele momento, era útil gerir a guerra com os soviéticos, que demonstrariam gratidão no futuro. Eis a acepção da coisa. Um inimigo agraciado por sua capacidade de produzir e por sua competência em formular jamais quererá sequer passar a impressão de que perdeu tais atributos. O amigo, no entanto, que é agraciado sem que algum critério técnico acompanhe uma nomeação para um cargo qualquer, fatalmente se tornará um ingrato. Sua psique não enxerga a obrigação de provar constante fidelidade. Para ele, a fidelidade sempre esteve provada. Essa proposição, porém, não encontra respaldo antropológico. Fidelidade é algo que se prova dia-a-dia. Um inimigo congraçado por ser capaz e competente transpira serventia e indispensabilidade. Ele não jogará fora a oportunidade de manter estendido o rol de asseclas. Como preconizam Robert Greene e Joost Elffers, “guarde os amigos para a amizade, mas para o trabalho prefira os capazes e competentes”. No fundo, congraçar tão-somente amigos é desgraçar-se.
Resultado de imagem para henryk sienkiewicz 
Prêmio Nobel de literatura em 1905, o escritor polonês Henryk Sienkiewicz (autor do festejado romance Quo vadis?) atesta o quanto é temerário entregar postos de relevante vulto a amigos, simplesmente porque eles são amigos. Quer uma evidência de tal ponto-de-vista? Imagine o leitor que está na Roma governada por Nero. O único pilar vivo do cristianismo é Pedro, a quem Cristo chamou de pedra angular da sua igreja. A matança de cristãos no obelisco do circo de Nero leva o psicopata ao êxtase. Pedro, de personalidade sempre oscilante (já havia negado o mestre três vezes no passado), resolve fugir da cidade. Já na via appia, tem uma visão. Cristo, carregando sua cruz, caminha em direção a Roma. Assim, Pedro, aturdido, indaga o rabi: “Quo vadis, domine?” (Aonde vais, senhor?). Jesus, de acordo com sermão de Santo Ambrósio, responde: “Venio iterum crucifigi” (venho ser novamente crucificado). A rigor, Cristo quis dizer algo do tipo: “já que não pude contar com o único amigo que tinha para apascentar meu rebanho, vim eu mesmo”. Envergonhado, Pedro voltou. Diz a patrística que foi crucificado de cabeça para baixo. Por outro lado, Paulo (talvez o maior inimigo que o cristianismo já teve), após converter-se, nunca temeu a morte e jamais fugiu dela. Por isso foi chamado apóstolo das nações, escolhido a dedo por Jesus para difundir seus ensinamentos. Um inimigo que se tornou o maior de todos os aliados, porquanto fosse capaz e competente. São Pedro que me perdoe, mas não abrirei mão da tese. Quando nos depararmos com um oponente talentoso, devemos perguntar-lhe: “Quo vadis?” e trazê-lo para o nosso lado. Coligar-se com quem digladiávamos é usar o aço da espada na armadura. Por conseguinte, faço minhas as palavras de Voltaire: “Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”.

Post Scriptum
Venceslau, o metódico
Resultado de imagem para Kant o metódico
Ninguém pode falar em filosofia sem mencionar um dos seus nomes mais representativos, Immanuel Kant. Nascido em 1724, em Königsberg, na Prússia oriental, era amante da forma e da precisão. Dizia aos alunos que o momento exato em que ele iria produzir as obras que o deixaria no panteão da história, seria no decênio 1780-1790. Dizia isso muito antes dessa década. E foi verdade. A “Crítica da Razão Pura” foi escrita em 1781, “Crítica da Razão Aplicada”, em 1788, e “Crítica da Faculdade do Juízo”, em 1790. Dizem que os habitantes de Königsberg acertavam os seus relógios segundo as saídas de Kant de sua residência. Acordava exatamente quando faltavam cinco minutos para as cinco, tomava seu chá pontualmente às cinco horas e às sete saía de casa para ir à universidade. Almoçava pontualmente às onze horas. Gostava também de convidar amigos para o jantar, nunca superior a nove e nunca menos de três. “O número deles não deve superar o das Musas nem ser inferior ao das Graças”, dizia. Tive muitos amigos metódicos, um que era tão formal que certa noite, num bar de Aracaju, foi cantado por uma bela mulher que se ofereceu para uma noite de amor. A sua resposta: - Requeira, que vou avaliar se defiro ou indefiro o seu pleito. Mas, de todos eles, o mais original era Venceslau, autoridade de uma importante instituição de controle. Morava em Aracaju e trabalhava no interior da Bahia, numa cidade fronteiriça. Para se ter uma ideia do seu comportamento, certa vez a instituição pública designou três assessores para cada autoridade no interior do estado. Ao se apresentarem a Venceslau, este, de imediato, devolveu os servidores à chefia imediata, localizada na capital baiana, com um ofício alegando que não tinha interesse em ter em sua Comarca qualquer tipo de assessoria. Perquiri Venceslau sobre este ato, pois a intenção do Órgão era contribuir para a melhoria dos serviços e ajudá-lo no desempenho de suas funções. Ele me respondeu que aquilo era luxo e gasto desnecessário. - Aqui na minha Comarca eu tiro cópia, distribuo senhas, atendo a população, redijo as minhas petições, distribuo no Fórum, organizo a agenda das audiências. Enfim, não preciso de ninguém. O mesmo comportamento ele teve quando a instituição encaminhou para as Comarcas equipamentos dos mais modernos da área de tecnologia da informação. Devolveu tudo alegando que a obrigação de ter tais equipamentos era do próprio servidor público. E que estava satisfeito com aqueles comprados por ele. O seu maior orgulho era com os seus mais de trinta mil Termos de Ajustamento de Conduta firmados com pais que deixavam seus filhos sem estudar. Foi objeto de uma matéria de repercussão numa grande revista nacional sobre o assunto, ganhando notoriedade em todo país. E, é verdade, a sua atuação fez com que o município tivesse um dos mais baixos índices de analfabetismo. Nunca requereu remoção da Comarca para a qual foi nomeado, estando ali há dezesseis anos. Nas sextas-feiras, exatamente às dezenove horas, sai da Comarca e vem para Aracaju onde passa o fim de semana com a família. Aos sábados, religiosamente às treze horas, ele chega num restaurante da Praia 13 de Julho e, ao sentar à mesa, já tem uma cerveja em lata, sempre da mesma marca, dentro do isopor, à sua espera. O garçom que lhe atende sempre é o mesmo. Não admite ser servido por outro. Quando chega na quarta cerveja, com as latas vazias enfileiradas à sua frente, todas no isopor, é que inicia o almoço variado semanalmente, sempre nessa mesma ordem: peixe-frito, moqueca de peixe ao molho de camarão, peixe escabeche e moqueca de camarão. Só admite três tipos de peixe: robalo, pescada amarela ou carapeba. O dono do restaurante tem que se virar. Sai sempre às quatorze horas e trinta minutos, acompanhado de uma quentinha que, segundo ele, é destinada ao porteiro do seu prédio. Às dezesseis horas, que chova ou faça sol, sai com os seus filhos para o Shopping Center, retornando às dezoito. – Sou sim, o maior metódico do mundo. Não tem ninguém igual a mim. Gosto de ser metódico e exerço tal comportamento até na hora de fazer amor.                    

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de 13/03/2016.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...