Aracaju/Se,

sábado, 27 de julho de 2019

Em Nome do Pai


Opinião pessoal
Em Nome do Pai
Clóvis Barbosa
Alguns anos atrás, mandei um twitter me solidarizando com os refugiados de Badbaado, o maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália, onde se via bebês, de poucos meses de nascidos, em pele e osso, olhos vidrados, com moscas passeando sobre os seus rostos cansados pela fraqueza causada pela fome, que não lhes davam força, sequer, para chorar. A África, à época - e continua até hoje - possuía mais de 10 milhões de famintos, distribuídos em Djibuti (120 mil), Etiópia (4, 6 milhões), Quênia (2,4 milhões) e Somália (2,8 milhões). Lembrei-me daquele poema de um autor desconhecido: “De cada criança morta, nascerá um fuzil com olhos que terminará por lhe achar o coração”. Os jornais nos informam que um cidadão, Iman Abdi Noono, de 60 anos, caminhou com a família por dez dias para escapar da seca que matou todo o seu rebanho garantidor da sua subsistência. Seguiu em direção à capital da Somália em busca de alimentos e, na caminhada, viu seis dos nove filhos morrerem de fome. “Carreguei o último nas costas e achei que iria salvá-lo. Mas ele morreu pouco depois de chegarmos”. A Somália, hoje, tem uma população de 9,9 milhões de habitantes, está localizada no chifre da África, mortalidade infantil que atinge 105,6 mortes a cada mil nascidos vivos, e saneamento básico disponível a apenas 23% da população e a renda per capita é de US$ 600. Há uma insana disputa armada que rachou o país ao meio, na qual de um lado está um governo incapaz e, de outro, o fanatismo da milícia islâmica Al Shabab. Para piorar, há problemas climáticos ligados à seca que assola o país de norte a sul, sem qualquer perspectiva de solução em curto prazo. Grito com Castro Alves, evocando o porquê de tanto sofrimento durante vários séculos: “Deus! Ó Deus onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu te escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito.../ Onde estás, Senhor Deus?”.
 
Somos filhos da África. Para aqui, como escravos, vieram os nossos antepassados para, com sua força de trabalho, submeter-se a uma exploração do homem pelo homem. Ao chegar ao Brasil, eram açoitados de forma severa para, de logo, acostumar-se no contexto da opressão institucionalizada. Foram tripudiados, espancados, explorados, animalizados em sua dignidade e autoestima. A chibata era o símbolo do instrumento da tortura a ser aplicada àqueles que não se conformavam com o establishment.
 
Pois bem. Um engraçadinho, pelo twitter, me mandou às favas, dizendo que eu deveria era me solidarizar com os pobres e oprimidos daqui, e não querer ser um pai de povo que eu sequer conhecia. O que fazer?! A mediocridade e a insensibilidade são irmãs gêmeas, até porque o que a realidade complica, a ficção elucida com muita clareza. Ou será o contrário? A verdade é que o meu seguidor de twitter desconhece o que foi a carnificina escravocrata em nosso país. Esquece, por exemplo, que o Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, chegando ao ponto de em 1820 - dois anos antes da Independência - ter uma população com  dois terços de escravos. Só nesse ano, desembarcaram no Rio de Janeiro 700 mil africanos. Documentos demonstram que a “Cidade Maravilhosa”  foi a maior escravista do mundo desde a Roma antiga. E para arrematar: De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos vieram para o Brasil, dez vezes mais, por exemplo, que a quantidade levada para América do Norte. Quer saber mais? Compre e leia “O Navio Negreiro – Uma História Humana”, de Marcus Rediker, professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs. Mas, interessante, gostei do epíteto da vontade que supostamente eu teria de pretender ser o pai do povo somaliano, como dito pelo twitteiro. Quem me dera! Mas estou satisfeito por ser filho da África e, seja ela pai ou mãe, é minha pretensão honrá-la.

Post Scriptum
O Personagem
Tontonho passou a infância entre Capela e Maruim, com direito a algumas passagens em Rosário do Catete. Sua vida era ordenhando vacas, daí o apelido Tontonho Leiteiro, mas o que ele adorava mesmo era ir aos cinemas locais, nas sessões únicas, onde os seus atores prediletos eram os cowboys Roy Rogers e Rocky Lane. Sabia tudo da vida dos artistas: que Roy Rogers tinha como nome verdadeiro Leonard Franklin Slye, nascido em Cincinnati, Ohio, EUA, em 1911; que era cantor e que a sua terceira mulher, a atriz Dale Evans, era conhecida como a “Rainha do Oeste” e ele “O Rei dos Cowboys”; que sabia de cor e salteado os mais de cem filmes do ator e batia no peito para dizer que tinha assistido mais de quarenta. Tinha como meta e razão de sua vida assistir todos os filmes. À sua vaca de estimação deu o nome de Bullet, em homenagem ao cão de Roy. O seu cavalo tinha o mesmo nome do cavalo do seu ídolo, Trigger. Sobre Rocky, embora a admiração não fosse a mesma, acompanhava a sua vida e história: a cidade onde nasceu, Mishawaka, Indiana, nos EUA, em 1904; o seu nome verdadeiro, que era Allan Lane; os mais de cem filmes em que ele participou. Muitos anos depois, o seu amor era tão grande que mandou comprar nos EUA toda a série de Mister Ed, que fez muito sucesso na década de 1960 na televisão americana. Nessa trama, Rocky fazia a voz do cavalo. Tontonho tinha o sonho de um dia ser mocinho no cinema. Aos amigos do interior, à família e nas conversas que ele mantinha com a vaca Bullet e com o cavalo Trigger, dizia que um dia o seu nome iria brilhar nos letreiros dos cinemas. – Esse pessoal daqui de Capela vai morrer de inveja quando vir o meu nome no cast dos filmes!
 
Sua obsessão era tanta que, vindo morar em Aracaju, logo conheceu a chamada “Turma do Parque”, que abrigava artistas e lúdicos arruaceiros comandados pelo legendário Cabo Tripa, formada, dentre outros, por Cidão, Mascarenhas, Chato, Arono, Alencar, Amaral, Luiz Bom de Bola e até Nestor Amazonas. Soube de um curso de teatro que estava sendo promovido pela SCAS, a Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, entidade que agitava a vida cultural da cidade, trazendo para Sergipe os maiores espetáculos apresentados no sul do país. O sergipano, na década de 60, assistiu óperas, orquestras internacionais, peças teatrais, musicais e filmes clássicos. O teatro fervia com apresentações dos atores João Costa, Luiz Antônio Barreto e tantos outros. Durante o curso, cujas aulas foram dadas pelo famoso ator, poeta, teatrólogo e diplomata Pascoal Carlos Magno, conheceu um contrarregra que fazia sucesso numa companhia de teatro de São Paulo e que estava se apresentando no Atheneu. Após o espetáculo, foi jantar no restaurante São Carlos, que ficava na rua da frente, bem defronte à Gazeta de Sergipe. Aproximou-se do contrarregra e firmou uma amizade que se tornaria firme na capital paulista. Fez questão de revelar a sua obsessão em ser ator de cinema. Tontonho, então, juntou dinheiro e foi morar em São Paulo um ano depois. Encontrou-se com o amigo e este começou a apresentá-lo ao alto clero artístico. Começou fazendo algumas pontas em novelas e aos poucos foi sedimentando o seu nome. Mudou de nome, ao invés de Antônio Serapião, passou a ser chamado de Anthony Light, como tinha sugerido o amigo contrarregra. Começou a fazer sucesso na televisão, teatro e cinema.
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Tontonho era um mulherengo inveterado. Namorou muitas atrizes, algumas que estavam começando a carreira, outras já consagradas. Era um verdadeiro urubu. Também namorou muitos colegas atores, diretores e gente do mundo artístico. Conta-se que, certa vez, saiu com um amigo e mais três homoafetivos, sendo um destes deficiente físico. Na relação que se formou, dois a dois, ele sobrou. Fez um escândalo e passou a atacar Tontonho e o amigo: - Não vou aceitar, isto é discriminação. Por que vocês não querem fazer amor comigo? Tontonho interrompeu o discurso do deficiente e lhe disse: - Calma, menina! Depois que terminar aqui, eu lhe pego. O tempo passou e as coisas foram mudando para Tontonho. A sua inconstância nas relações fizeram como que, aos poucos, ele fosse perdendo espaço no mundo artístico paulista. Passou a fazer “biscate” até ir parar na famosa “Boca do Lixo”, a meca do cinema brasileiro. Logo se enturmou e foi fazendo pequenos papéis em pornochanchadas. Tinha, então, as portas fechadas da televisão, teatro e cinema. Estava obstinado a começar tudo de novo. Certo dia conheceu um cineasta francês que vinha fazer filmes de sexo explícito. Dizia que era a coqueluche na Europa. Milhões de dólares corriam por conta do cinema pornô. O francês era um verdadeiro conhecedor da história do cinema. Conhecia todas as escolas cinematográficas. O cinema burlesco americano da década de 20, o naturalismo da Escola Poética Sueca, o expressionismo alemão, o documentarismo inglês, o realismo poético francês, o filme noir americano, o neorrealismo italiano, o realismo intimista japonês, a nouvelle vague francesa e o cinema novo brasileiro, com Glauber Rocha e sua visão revolucionária.
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O francês falava sem parar e dizia cada uma das características dessas escolas, seus cineastas e os filmes que as representavam. Gostava de citar frases óbvias, como “Um filme só pode existir a partir do momento em que é exibido”; “Todo bom filme deve saber exprimir, ao mesmo tempo, uma concepção da vida e uma concepção do cinema”; “Ver um filme é como ler um livro e ver um vídeo é como consultar um livro”. Tontonho ficou embasbacado pelo francês. Conseguiu ser escalado para um filme no papel principal. Era uma oportunidade de ouro. O filme era “O entregador de linguiças”, onde ia encarnar o papel de Severino, o nordestino retirante que foi trabalhar num açougue e era um exímio fazedor de linguiça. Fazia e entregava aos clientes numa lambreta. Como todo filme pornô, o roteiro misturava a linguiça com os dotes do rapaz. Nas entregas, as mulheres se apaixonavam e o sexo explícito rolava solto, até que um dia acaba sendo “descoberto” por um marido traído, que resolve aprontar uma com o rapaz. Manda a mulher se fazer totalmente apaixonada e, com a luz apagada, pede que Severino fique deitado esperando sua triunfal subida na cama. Mas, no lugar dela, quem vai no escuro é o marido, um “negão” desses “tipo armário”, que, sem piedade, faz o entregador de linguiças virar o “recebedor” de linguiça. Nas filmagens, Tontonho teria que ceder ao marido traído e literalmente aceitar a cópula anal. Perguntou então ao diretor: - E cadê o dublê?. “Aqui não tem dublê não, é tudo com o ator”, disse o diretor. Tontonho deu uma de brabo! Disse que era nordestino macho, que jamais faria aquela cena. O diretor prontamente voltou-se para a produção e disse: - Vamos ter de mudar de ator, gente! Tontonho quase enfarta. Buscou tanto aquela oportunidade.
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E agora? - Diretor, e minha reputação? – Que reputação, menino? Você já viu personagem ter reputação? – Como assim? Perguntou. E o diretor, sem pestanejar disse: É simples! Quem faz o papel é você, mas não é você, entende? Tontonho ficou mais doido ainda. E o diretor: - Veja, Anthony, tudo que você fizer não é você, é o personagem. Nada vai abalar sua reputação. Você continuará o mesmo macho nordestino. O personagem é que muda de lado. Quem está dando não é você, mas o personagem. E Tontonho encarou o “negão”. O cinema pornô acabou com a sua carreira e ele terminou voltando para Sergipe. Até hoje, a sua vida é tentar explicar o motivo de ter aceitado aquele papel. Mas ele nega peremptoriamente que não foi ele quem se sujeitou... foi o personagem.


Colaboraram com o Post Scriptum Luiz Eduardo Oliva e Paulo Lobo

- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de fim de semana, de sábado à segunda-feira, dia 24 a 27 de junho de 2016, Caderno A—7.
- Postado no Blog Primeira Mão, Aracaju-SE, em 26 de junho de 2016, às 15:20:01, conforme site: 
 


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